Por Cesar Rodrigues van der Laan*
A adição da eficiência no rol dos princípios constitucionais da Administração Pública, a partir da emenda constitucional no 19, de 1998, criou um importante paradigma de análise sobre ela. Pode-se identificar, desde então, uma preocupação crescente em imprimir eficiência ao agir administrativo, sob moldes distintos da estruturação da administração federal gestada pelo Decreto-Lei 200/67.
Uma das formas de concretização desse aumento da eficiência do setor público esteve na implantação de “agências autônomas” (BRESSER PEREIRA, 1998), espécie de descentralização administrativa até então inédito no país. Nessa reorganização administrativo-constitucional, destaca-se uma tendência crescente de isolamento da política sobre decisões de caráter essencialmente técnico. Isso levou a um novo foco de pesquisa sobre alterações do arcabouço legal da Administração Pública brasileira, visando avaliá-las justamente sob esse novo parâmetro constitucional.
Nesse campo de modernização das estruturas administrativas de Estado, a chamada autonomia do BC ainda constitui um dos temas de maior destaque na pauta pública nacional, pelo centralismo da política monetária dentre as políticas públicas do país. Mais ainda, mesmo sua autonomia já estando positivada em lei, o ineditismo da mudança de presidente da República mantendo pela primeira vez o presidente do BC gera críticas a respeito da legitimidade do novo formato legal.
Essencialmente, há envolvida uma questão de divisão de poder de decisão, que questiona o modelo tripartite clássico, já que a autonomia legal do BC, no âmbito de um novo modelo policêntrico de administração gerencial moderna, cria novo subcentro autônomo de poder estatal. O presente artigo se insere nesse contexto de discussão, para refletir sobre a nova estrutura administrativa do BC, com enfoque sobre a eficiência da política pública que conduz.
1. Estrutura normativa da Política Monetária
A Lei 4.595/64 estrutura a condução da política monetária em duas dimensões: uma gerencial, a cargo do Conselho Monetário Nacional (CMN) e outra operacional, do BC. Desde 1999, com a implantação do sistema de metas de inflação, o CMN define a meta anual de inflação do país e o BC executa seu cumprimento. Porém, o direcionamento (político ou técnico) da autarquia federal influencia a eficiência da política monetária (MAIA, 2014). Assim, qualificar o BC como autarquia especial, indiscutivelmente, lhe concede maiores possibilidades de atuação técnica, isolada de ingerência política.
De fato, entre 2011 e 2015, por ex., a ingerência do Governo Dilma sobre o BC levou à autarquia a não mais perseguir a meta central de inflação estipulada pelo CMN (4,5%), mas seu teto superior (6%). Esse talvez tenha sido o caso mais notório e emblemático da relação entre Executivo e BC que a LC 179 veio a controlar. A ingerência ocorrida ao longo de todo o mandato presidencial alterou de forma relevante a condução da política monetária doméstica, resultando na elevação permanente da inflação doméstica.
Para ser exato, a alteração na condução da política monetária começa antes mesmo do Governo Dilma, durante o período eleitoral no ano anterior. Essa interferência política levou a uma alteração abrupta e inesperada da política monetária. A parada súbita do ciclo de aperto monetário em meados de 2010 acabou elevando o patamar de inflação. A não contenção inflacionária tempestiva levou a uma posterior maior necessidade de elevação de juros em 2011, atingindo patamar mais elevado do que seria necessário se tivesse sido contido o processo inflacionário se o ciclo de aperto monetário em implementação em 2010 não tivesse sido interrompido. Esse episódio de alteração abrupta da política monetária foi registrado por Melo (2019), para o qual a ingerência política dificulta a formação das expectativas inflacionárias e aumenta a volatilidade dos ciclos econômicos.
A formalidade legal de autonomia do BC blinda-o, justamente, em relação ao Executivo, extinguindo seu vínculo hierárquico com o Ministério da Fazenda. Como autarquia de natureza especial, os membros de sua diretoria passam a ter mandatos fixos de 4 anos, suprimida a possibilidade de demissão ad nutum pelo Planalto. A LC criou, ainda, a não coincidência de mandatos do Presidente da República e do BC, com troca escalonada dos demais diretores a cada dois anos.
Assim, a maior autonomia de jure se torna de facto, até porque a não coincidência de mandatos entre o Presidente da República e do BC cria uma situação em que, sempre por dois anos, a política monetária acaba comandada por agentes de grupos políticos distintos (em caso de alternância do poder político federal). Isso, naturalmente, reduz, se não elimina, interferências políticas sobre a execução da política monetária.
2. Benefícios esperados da Autonomia Formal
Como consta na justificação do projeto de lei que deu origem à LC 179, de 2021¹, a autonomia formal do BC impede pressões políticas, criando um ambiente de menor incerteza à condução da política monetária. Além disso, a autonomia formal incrementa a credibilidade do BC, o que amplia a eficiência de sua atuação. A maior credibilidade da política monetária, por si só, tende a despressionar ou reduzir as expectativas inflacionárias e os prêmios de risco inflacionários embutidos nas taxas de juros de mais longo prazo praticados no país. Isso favorece o ambiente dos negócios e gera um círculo virtuoso na economia brasileira. Sob tais circunstâncias, é maior o potencial da política monetária, pois o BC adquire maior capacidade de influir sobre todas as taxas de juros praticadas no país.
A política monetária se concretiza, em grande parte, pelo canal de expectativas dos agentes econômicos, que são afetadas conforme as sinalizações da autoridade monetária acerca da direção da política monetária. Isso significa que muito da atuação do BC depende da qualidade dos sinais que emite e como são recebidos pelos agentes. Se há credibilidade, a autoridade monetária transforma a publicidade de suas ações e intenções em sinais de comando para o mercado, constituindo uma política monetária eficiente, no sentido de alcançar seu objetivo utilizando menos juros e com menor duração.
Essa credibilidade se associa a uma atuação técnica do BC, isolada de ingerência política. Em tese, a sinalização da política monetária gera efeitos desde logo, independentemente da efetiva alteração da taxa básica de juros. Um anúncio de métodos anti-inflacionários eficientes, como a perseguição de metas de inflação, entendidas como críveis pelo mercado, tende a estimular a contenção da inflação per se, sem efetiva elevação da taxa de juros. Isso significa eficiência da política monetária, pois evita custos decorrentes da alteração da Selic nas operações efetivamente realizadas pelo BC no mercado aberto para colocar em prática eventual alteração da taxa de juros.
Outro efeito positivo importante da nova organização administrativa do BC se encontra no aumento da transparência do setor público. Se antes as discussões entre o Planalto e o BC eram conduzidas a portas fechadas, como algo a ser negado, fora da agenda oficial do governo, hoje as manifestações do Planalto sobre os juros são públicas. E mais, carregam o potencial de serem tão ou mais efetivas quanto aos efeitos esperados sobre as taxas de juros e sobre o comportamento esperado da própria política monetária. Em nossa visão, esse aspecto constitui novo efeito positivo derivado da autonomia formal do BC, inaugurada efetivamente apenas em 2023, diante dessa primeira realidade de afastamento político de facto entre Planalto e BC.
As conversas entre a política (Planalto) e a política monetária (BC) passam a ocorrer no âmbito do saudável debate público, e não mais a portas fechadas. Essa mudança pode ser considerada uma transformação institucional positiva, que potencializa a própria política monetária, que se concretiza por meio da transparência da discussão sobre cenários prospectivos de inflação e juros. A anterior ingerência política sobre a política monetária passa a ocorrer de forma transparente. Agora, a influência pública do Planalto passa a influir sobre a visão dos próprios agentes de mercado, afetando a formação de suas próprias expectativas inflacionárias, com efeitos práticos sobre o nível de juros praticados no país. Isso se configura em uma perspectiva positiva para o arranjo institucional em que se desenvolve a política monetária doméstica, tornando-a, portanto, mais eficiente.
De fato, as falas críticas do Presidente Lula nos primeiros meses de 2023 sobre o nível de juros elevados trouxeram uma perspectiva que acabou assimilada pelos agentes econômicos, que reviram suas expectativas inflacionárias para baixo. O resultado se verificou na redução de juros praticados no mercado financeiro doméstico. A curva de juros dos títulos públicos sofreu uma queda de mais de 130 pontos (gráfico 1), algo bastante consistente, também alterando as expectativas sobre o começo da redução de juros pelo BC. Ou seja, reduzindo o horizonte esperado de manutenção da Selic no patamar atual, como já captado pelo boletim Focus divulgado semanalmente pelo BC. Isso também transparece nas taxas de juros praticadas no mercado secundário de títulos privados de renda fixa, que também apresentaram redução significativa.
Gráfico 1. Curva de Juros do Títulos Públicos (fev-mai/23)
Fonte: Tesouro Direto, título pré-fixado LTN 2029 (% ao ano)
Considerações finais
Vislumbra-se uma alteração qualitativa do papel do Planalto sobre a política monetária, em que o poder do Executivo em pautar a agenda pública doméstica passa a auxiliar a própria política monetária. Amplia-se o debate público no lugar da imposição política, hierárquica do Planalto sobre a política monetária, que a LC 179 veio a eliminar. Há, assim, uma política monetária mais funcional sob dois aspectos complementares, de eficiência e transparência. Nesse sentido, há um maior alinhamento do novo formato organizacional do BC aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
Como se procurou indicar, a maior transparência do debate político sobre a política monetária, a partir do Planalto, possui potencial de reduzir a curva de juros do país, o que auxilia a própria atuação do BC. Esse efeito baixista sobre os juros domésticos alivia a pressão sobre os juros praticados pelo BC para manter a estabilidade monetária, o que significa maior eficiência da política monetária.
* Graduado em Engenheiria Civil, Especialista em Direito Legislativo, com Mestrado e Doutorado em Economia pela UFRGS e doutorado-sanduíche na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. É, atualmente, graduando em Direito na UnB.
[1] Projeto de Lei Complementar n° 19, de 2019. Disponivel em <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135147>. Acesso em: 14 jun. 2023.
Referências
BRESSER PEREIRA, L.C. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 120, n. 1, ano 47, p. 7-40, Jan-Abr/1996.
MAIA, F.F.R. (2014). A autonomia do Banco Central do Brasil à luz do Direito. 30 set. 2014. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/208516/a-autonomia-do-banco-central-do-brasil-a-luz-do-direito>. Acesso em: 11 mai. 2023.
MELO, C.O.F. (2019). Ciclos políticos e conduta da política monetária no Brasil 2002 e 2017. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Economia. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2019.