A atual democracia brasileira foi conquistada e concebida pelos movimentos sociais desenvolvidos ao longo do regime ditatorial. Nesse sentido, os protestos das Diretas Já conjugaram inúmeras organizações, justamente em prol de uma eleição direta para a Presidência, ou seja, o exercício do voto, instrumento basilar da cidadania. A partir desse intróito, depreende-se a relevância dos movimentos sociais para a garantia da democracia, assim como, para o exercício pleno da cidadania.
Posto isso, cabe inserir nesse panorama as perspectivas dos Suis e o pensar decolonial. Para tanto, versarei sobre o Movimento Indígena Brasileiro, visto que este reúne sujeitos sociais que representam o cerne do giro epistemológico proposto. Nesse sentido, vale salientar a imensa gama de organizações que constroem tal movimento social, porém pode-se identificar a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) como o pilar central dessa estrutura. Portanto, mostra-se interessante a caracterização desta entidade, através da sua própria perspectiva:
“A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é uma instância de aglutinação e referência nacional do movimento indígena no Brasil, tendo sido criada em 2005 durante a mobilização anual em Brasília, conhecida como Acampamento Terra Livre (ATL). Em sua missão está a promoção e defesa dos direitos indígenas, por meio da articulação e união entre os povos e organizações indígenas das distintas regiões do país.
Aglutinando organizações locais e regionais indígenas, a APIB atua no fortalecimento da união de nossos povos, na articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país, na unificação das lutas dos povos indígenas (pauta de reivindicações, demandas e a política do movimento indígena) e na mobilização dos povos e organizações indígenas contra as ameaças e agressões aos direitos dos povos indígenas.”. [2]
https://apiboficial.org/
Em seguida é importante destacar que nos últimos anos, com os ataques do desgoverno Bolsonaro aos direitos indígenas, o Movimento Indígena angariou mais força. Como evidência desse processo tem-se a proeminência, nacional e internacional, de líderes da luta indígena como: Ailton Krenak, Davi Kopenawa Yanomami, Sônia Guajajara, Joênia Wapichana e Raoni Metuktire Yanomami. Somado a isso, as mobilizações indígenas avolumaram-se e conquistaram destaque na mídia, vide os protestos em Brasília contra o “marco-temporal” em 2021.
Ao se considerar que as epistemologias dos Suis são elaboradas justamente a partir das periferias globais, entende-se a singularidade dos povos indígenas dentro dessa lógica, visto que estes se encontram na periferia das periferias, ou seja, marginalizados dentro de sociedades que, em âmbito global, está à margem do sistema. Nesse cenário, os indígenas apresentam-se como sujeitos centrais para as construções de novas epistemologias que se adequem às condições reais que estruturam os países do Sul e, mais especificamente, o Brasil. Nessa perspectiva, os conhecimentos ancestrais acumulados pelos diversos povos indígenas brasileiros constituem um enorme arcabouço de possibilidades. Para ilustrar essa proposição, cabe comentar o conceito/prática do “Bem-Viver”. Na epígrafe do livro “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos”, de Alberto Acosta, situa-se uma frase de José Maria Tortosa que sintetiza a ideia:
“O Bem Viver [é] uma oportunidade para construir outra sociedade, sustentada em uma convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a Natureza, a partir do conhecimento de diversos povos culturais existentes no país e no mundo.” [3]
Vale destacar que esta conceituação é incompleta, visto que o Bem Viver representa um modo de encarar a vida, ou seja, envolvem inúmeros aspectos, alguns difíceis de serem transcritos.
Inserido nesse horizonte, as cosmologias indígenas enquadram-se perfeitamente dentre as epistemologias dos Suis a serem fortalecidas, em benefício da produção de conhecimento originária e destinadas às sociedades do Sul. Nesse plano, devem-se considerar as reflexões contidas em obras como: “A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami” (Kopenawa, 2015)[4], “Ideias para adiar o fim do mundo” (Krenak, 2019)[5], “A vida não é útil” (Krenak, 2020)[6] e “Amanhã não está à venda” (Krenak, 2020)[7].
Já em relação ao pensar decolonial, a protagonismo indígena é ainda mais evidente, visto que estas populações foram as que mais sofreram com a violência colonial e, além disso, convivem na atualidade com resquícios de tais violências, ou seja, experienciam constantemente a colonialidade. Nesse âmbito, a política de morte implementada pelo desgoverno Bolsonaro é uma demonstração explícita da herança colonial. Essa postura pode ser associada ao conceito de Necropolítica, cunhado por Achille Mbembe[8], o qual define a ação Estatal de “deixar morrer” alguns grupos sociais, como ocorreu com os indígenas durante a pandemia de COVID-19.
A seguir, convém discorrer sobre a relação entre os pressupostos teóricos expostos e as bandeiras erguidas durante os últimos quatro anos. Neste período, foram muito frequentes as seguintes palavras de ordem: “Fora Bolsonaro”, “Terras Protegidas” e “Respeito à Educação”. Com isso em mente, pode-se vincular o primeiro lema a resistência contra a política de morte colocada em prática pelo governo de Bolsonaro. A segunda palavra de ordem refere-se à motivação central dos protestos impetrados em 2021: o PL 490. Este instauraria o marco temporal, o que prejudicará a demarcação de terras indígenas. Essa questão está intrinsecamente associada com a preservação dos saberes indígenas (Bem Vier, cosmologias outras…), visto que o conhecimento ancestral desses povos está ligado ao território em que vivem. Enfim, ao clamar por “Respeito à Educação”, esses grupos estão resistindo à colonialidade do saber (e também, de maneira indireta, do poder e do ser).
Além das pautas dos protestos, cabe destacar a maneira como se protesta, em outras palavras, para além das ideias, sobressai-se a práxis. Nessa esfera, notabilizam-se os diversos rituais, cerimônias e gestos que ocorreram durante as manifestações. Desse modo, pode-se considerar que o Movimento Indígena, além de defender ideais, demonstram, nos atos públicos, o caráter decolonial e suas próprias epistemologias. Com isso, une-se a teoria à práxis, convergência muitas vezes difícil de ser alcançada. A título de exemplo tem-se o Acampamento Terra Livre (ATL) que ocorreu em Brasília no mês de abril. Este evento explicita a potência dos povos indígenas organizados no Brasil.
Por fim, compreende-se que os povos indígenas são negligenciados pelo Estado e marginalizados da dinâmica sócio-político-econômica. Esta situação é um sintoma da precariedade da democracia brasileira e consequente debilidade da cidadania de muitos brasileiros. Posto isso, os movimentos sociais, em especial aqueles compostos pelos segmentos excluídos, têm a capacidade de alterar esse status quo. Conclui-se, portanto, que o Movimento Indígena, através de suas cosmologias, detém a potencialidade de dilatar a democracia e, para, além disso, de transmutar completamente a maneira como concebemos o mundo, a vida, a natureza e tudo mais.
[1] Graduanda em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Membro do PET e da Assessoria Jurídico Popular Roberto Lyra Filho (AJUP).
[2] APIB, Uma anatomia das práticas de silenciamento indígena; Indigenous Peoples Rights International, 2021
[3] ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Elefante e Autonomia literária [co-edição], 2016
[4] KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015
[5] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019
[6] KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020
[7] KRENAK, Ailton. Amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020
Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Vamos supor que você está de acordo com isso, mas você pode optar por não participar, se desejar. Aceitar