10 anos de entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade: Memória e reparação

por AJUP Roberto Lyra Filho

Por:  Elma Araújo e Laís Viana

O ano de 2024 foi marcado por duas datas que reforçam a necessidade de valorizar a memória nacional, a primeira delas é a de 60 anos do golpe militar que instaurou o período ditatorial responsável pela morte, tortura, perseguição e desparecimento de milhares de brasileiros. Já a segunda é a de 10 anos desde a entrega do relatório final elaborado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Neste sentido, o artigo visa destacar a importância dos trabalhos da CNV, principalmente as 29 recomendações feitas em seu relatório final e sua relação com dois temas que estão em destaque na atualidade: anistia e tentativa de golpe contra o Estado Democrático de Direito.

As Comissões da Verdade são órgãos criados para apurar e esclarecer crimes que foram cometidos durante períodos de instabilidade política. No caso da América Latina foram instauradas Comissões da Verdade em países como Uruguai, Chile, Paraguai, Argentina e Brasil, com o objetivo de elucidar fatos que podem ter sido alterados e escondidos pelo próprio Estado durante as ditaduras civis-militares. No Brasil, foi criada a Comissão Nacional da Verdade pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011:

“Art. 1º É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”

Cabe mencionar que o período presente no dispositivo diz respeito à data de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, com foco principal nos 21 anos da Ditadura Militar, entre 1964 e 1985. A CNV durante os seus trabalhos realizou e presenciou testemunhos, entrevistas, perícias e audiências públicas com o objetivo de esclarecer crimes como tortura, morte, desparecimentos forçados, violências sexuais e ocultação de cadáveres por ações e omissões do Estado durante o período delimitado. Entretanto, por não ter poder judicial, não pôde julgar nem condenar crimes, mas indicar as circunstâncias e autorias, garantindo o direito à verdade e à memória.

“Ao longo de sua existência, os membros da CNV colheram 1121 depoimentos, 132 deles de agentes públicos, realizou 80 audiências e sessões públicas pelo país, percorrendo o Brasil de norte a sul, visitando 20 unidades da federação (somadas audiências, diligências e depoimentos).”

Em 10 de dezembro de 2014, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, foi entregue o relatório final, dividido em 3 volumes:  Todos os volumes estão disponíveis para consulta pública.

Nos três volumes encontra-se um material detalhado sobre todas as violências, articulações, discursos e mecanismos utilizados durante o período de 1964-1985. Destaca-se o número de mortes e desaparecimentos no período da Ditadura Militar: 434, sendo 210 desaparecidos. Dentre eles, pode-se mencionar Rubens Paiva, ex-deputado federal que teve seu desaparecimento descrito no livro “Ainda estou aqui”, que hoje é um filme de grande sucesso na bilheteria nacional e internacional; Honestino Guimarães, estudante de geologia da Universidade de Brasília (UnB), que recentemente teve seu diploma concedido;Ieda Delgado, bacharel em Direito pela UnB, que hoje dá nome ao Centro Acadêmico de Direito da mencionada universidade; e Paulo Tarso, também formado em Direito pela UnB.

Dos 4 nomes mencionados, apenas Paulo Tarso teve o local de sua morte conhecido, os demais continuam desaparecidos, conforme informações presentes na CNV:

  1. Rubens Beyrodt Paiva: Sequestrado em sua residência na av. Delfim Moreira nº 80, no Rio de Janeiro, RJ. Provavelmente, foi executado nas dependências do DOI-CODI do I Exército.
  2. Honestino Monteiro Guimarães: Rio de Janeiro (GB). A documentação disponível sobre o caso não permite identificar com precisão o local do desaparecimento.
  3. Ieda Santos Delgado: Não foi possível identificar o local da morte.
  4. Paulo de Tarso Celestino da Silva: “Casa da Morte de Petrópolis”, localizado na rua Arthur Barbosa, nº 668, em Petrópolis, RJ.

Diante do exposto no relatório da CNV, o sofrimento vivenciado pelos presos da Ditadura Militar, além dos mortos e desaparecidos, foi tamanha. Métodos diversos de tortura foram utilizados, com destaque ao conhecido como pau-de-arara e o uso de máquinas de eletrochoques. O sofrimento, entretanto, não é apenas subjetivo àqueles, mas também dos familiares e amigos que buscaram, por anos, os paradeiros de diversas vítimas. 

 Por esse motivo, o ato de rememorar o período ditatorial brasileiro é essencial para mitigar a insurgência de ideologias autoritárias capazes de gerar violações análogas, para aprofundar o Estado Democrático de Direito, além de ser uma forma de buscar justiça pelas vítimas. Esse foi o pensamento seguido pela CNV, que recomendou a adoção de medidas institucionais (17), iniciativas de reformulação normativa (8) e medidas de seguimento das ações e recomendações (4), sugeridas por entidades sociais, cidadãos, órgãos públicos e os próprios componentes da Comissão. 

Entretanto, após 10 anos da entrega do relatório final da CNV, o governo brasileiro cumpriu apenas 3, outras 6 foram cumpridas parcialmente. As cumpridas dizem respeito a realização de audiências de custódia, para evitar prisões arbitrárias, instituídas pela Resolução 213/2015 do CNJ e pela Lei 13.964/2019, e a revogação da Lei de Segurança Nacional, que previa crimes abstratos e genéricos.

Dentre as recomendações não cumpridas e que merecem destaque, devido ao contexto atual, estão as recomendações:

  1. “Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985).
  2. Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais. (…)
  3. Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964.”

Como mencionado no início do texto, há uma crescente movimentação com o objetivo de anistiar os condenados pelos crimes cometidos em 8 de janeiro de 2023, que dentre os crimes imputados estão organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado. Crimes estes também presentes no inquérito da Polícia Federal que indiciou 40 pessoas, sendo 28 militares, dentre eles o ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, que tinham como objetivo impedir o atual Presidente de assumir o poder.

Esses recentes acontecimentos, em menos de 40 anos do fim da Ditadura Militar, escancaram a necessidade de dar enfoque à memória nacional e também de responsabilizar aqueles, que durante 1964 e 1985 violaram gravemente os direitos humanos e deixaram marcas profundas e irretroativas em milhões de cidadãos brasileiros. Isso porque ainda é recorrente na sociedade brasileira civis, militares e políticos que mencionam a Ditadura de forma positiva, celebrando datas como o 1 de abril, data que deu início a Ditadura Militar, homenageando torturadores e desrespeitando presos políticos que morreram durante a Ditadura Militar.

Por isso, essa falta de ação possui efeitos evidentes na conjuntura política nacional atual, que em vez de avançar em garantias de direitos, conta com indivíduos que relembram um fatídico período histórico como algo a ser celebrado. Caso as recomendações da CNV tivessem sido devidamente respeitadas e cumpridas, momentos como os mencionados poderiam ter sido evitados, principalmente no que diz respeito às recomendações n. 1,2 e 4.

Os períodos ditatoriais da América Latina foram influência direta do imperialismo norte-americano, que incentivou todo e qualquer tipo de censura para lutar contra ideias que se opusessem aos seus objetivos, inclusive a tortura e a morte da oposição influenciadas pela operação Condor. Por essa razão, em 2012, seis países que tiveram sua história marcada por regimes militares se reuniram no seminário “As experiências das comissões nacionais nas Américas: Comissão Nacional da Verdade do Brasil” para compartilhar suas experiências após os períodos ditatoriais.

O seminário mencionado reuniu Brasil, Argentina, Paraguai, El Salvador, Peru e Guatemala para tratar do enfrentamento ao legado autoritário e influenciar as atuações da CNV brasileira, que foi uma das últimas a ser criada. Entre as experiências bem sucedidas de responsabilização, vale ressaltar a do Peru, que por meio da “Comissão da Verdade e Reconciliação” foi capaz de fundamentar processos a serem tratados pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos e prender o ex-presidente Alberto Fujimori pelos crimes cometidos ao decorrer de seus mandatos

Nesse sentido, a experiência brasileira deixa a desejar em termos de eficácia de responsabilização daqueles que atuaram na repressão realizada pelo regime militar e de respeito à memória dos que sofreram com ela. Conforme mencionado, a Universidade de Brasília foi um grande alvo da opressão ditatorial, por isso é essencial a atuação dos professores que lutaram pela minimização dos impactos deixados pelas atrocidades cometidas. Entre os docentes que participaram dessa luta, destaca-se a professora Eneá de Stutz e Almeida presidiu a Comissão de Anistia e conduziu sessões como a que julgou o caso de um líder grevista demitido de uma empresa por perseguição política, para que ele fosse anistiado e reparado economicamente.

Ante o exposto, a constante reflexão sobre as formas de legitimação do poder estatal se faz extremamente necessária para mitigar insurgências ideológicas autoritárias capazes de gerar violações análogas, para responsabilizar os envolvidos nos atos, além de buscar justiça pelas vítimas. Tais práticas desumanas e violadoras dos direitos fundamentais não podem cair no esquecimento e muito menos  serem comemoradas por líderes políticos e pela população brasileira. A dignidade das vítimas merece ser protegida e respeitada, “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAPTISTA, Rodrigo. No aniversário do golpe de 1964, senadores divergem sobre governo militar. Senado notícias, 2024. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/31/no-aniversario-do-golpe-de-1964-senadores-divergem-sobre-governo-militar>. Acesso em 12 dez. 2024.

 

BRASIL. Congresso Nacional. Lei n.º 12.528, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm>. Acesso em 12 dez. 2024.

 

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Conheça e acesse o relatório final da CNV . Memórias Reveladas, 2014. Disponível em: <https://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv>. Acesso em 12 dez. 2024.

 

INSTITUTO Herzog. Sem impunidade. Disponível em: https://vladimirherzog.org/semimpunidade/. Acesso em: 12 de dezembro de 2024.

 

NERY, Marina. UnB entrega diploma post mortem de Honestino Guimarães. UnB Notícias, 2024. Disponível em: https://noticias.unb.br/institucional/7460-unb-entrega-diploma-post-mortem-de-honestino-guimaraes#:~:text=Ap%C3%B3s%20revogar%20a%20expuls%C3%A3o%2C%20a,Honestino%20foi%20e%20ainda%20representa. Acesso em: 12 de dezembro de 2024.

 

Ponchirolli, Rafaela. O que é a Comissão Nacional da Verdade? Politize!, 2019. Disponível em: < https://www.politize.com.br/comissao-nacional-da-verdade/?https://www.politize.com

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R.D. Recomendações da Comissão Nacional da Verdade são responsabilidade do Estado brasileiro, diz Silvio Almeida no lançamento de relatório que aponta que 93% das recomendações não foram cumpridas, 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/recomendacoes-da-comissao-nacional-da-verdade-sao-responsabilidade-do-estado-brasileiro-diz-silvio-almeida-no-lancamento-de-relatorio-que-aponta-que-93-das-recomendacoes-nao-foram-cumpridas>. Acesso em: 12 dez. 2024.

 

R.D. Por unanimidade, Comissão de Anistia concede anistia política e reparação econômica a mais dois perseguidos pelo Estado brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, 2023. Disponível em:<https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/abril/por-unanimidade-comissao-de-anistia-concede-anistia-politica-e-reparacao-economica-a-mais-dois-perseguidos-pelo-estado-brasileiro-nas-decadas-de-1970-e-1980> Acesso em: 12 dez.2024

 

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