Por Ary Matheus Vieira de Melo*
A justiça penal negociada (ou consensual) começa a ganhar espaço no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Lei n. 9.099/95, que instituiu o Juizado Especial Criminal (Jecrim) e que criou duas medidas despenalizadoras: a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89). Com advento da Lei n. 13.964/19, o acordo de não persecução penal (ANPP) foi introduzido na sistemática da justiça negociada sob o rito do art. 28-A, do Código de Processo Penal.
Na lição do prof. Vinicius Vasconcellos, a justiça penal negociada “ (…) é o modelo que se pauta pela aceitação (consenso) de ambas as partes – acusação e defesa – a um acordo de colaboração processual com o afastamento do réu de sua posição de resistência, em regra impondo encerramento antecipado, abreviação, supressão integral ou de alguma fase do processo, fundamentalmente com o objetivo de facilitar a imposição de uma sanção penal com algum percentual de redução, o que caracteriza o benefício ao imputado em razão da renúncia ao devido transcorrer do processo penal com todas as garantias a ele inerentes.” [1]
A transação penal e o acordo de não persecução penal apresentam semelhanças inerentes à própria identidade de razão e de natureza [2], questão bem apontada por Afrânio Silva Jardim: “se bem percebermos, a redação do art. 28-A, com seus incisos e parágrafos, deixou o acordo penal anterior à denúncia com praticamente todos os elementos que já existem no art. 76 da lei 9.099/95. De fato, trata-se mais do que semelhança, tendo existido verdadeira transposição de expressões e frases inteiras da lei 9.099/95 para o CPP” [3].
Nessa perspectiva, embora introduzidos na ordem jurídica em contextos e tempos diferentes, os institutos compartilham de pontos de contato que permitem irradiar ao ANPP soluções jurisprudências e doutrinárias tomadas em relação à transação penal [4].
O que, de certo modo, permite verificar que, com a entrada em vigor da lei n. 13.964/19, em 23/01/2020, houve uma opção legislativa de transferir o modelo consensual para além do Jecrim de modo que possibilitasse atingir a mesma finalidade: impedir a deflagração da ação penal por meio de um acordo entre as partes (acusação e a defesa), sob orientação de critérios de política-criminal, prevalecendo o princípio da oportunidade em face do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.
Tanto na transação penal quanto no ANPP – caso celebrados, homologados e cumpridos – a consequência penal será a extinção da punibilidade, e não importará em reincidência, sendo registrado apenas para impedir novamente o mesmo benefício dentro do prazo de 5 anos (art. 76, §4º, lei n. 9.099/95 e art. 24-A, §2º, III, do CPP).
Tem-se a submissão voluntária à sanção penal, que não significa reconhecimento da culpabilidade, tampouco da responsabilidade civil (Resp n. 1.327.897/MA). No tocante à confissão como pressuposto do ANPP, Rogério Sanches Cunha assinala que “(…) apesar de pressupor sua confissão, não há reconhecimento expresso de culpa pelo investigado. Há, se tanto, uma admissão implícita de culpa, de índole puramente moral, sem repercussão jurídica. A culpa, para ser efetivamente reconhecida, demanda o devido processo legal” [5].
Contudo, havendo o descumprimento, pelo investigado, das condições ajustadas, o Ministério Público poderá retomar o curso da persecução penal com o oferecimento da denúncia. Nesse ponto, o ANPP, na redação do art. 28-A, §10, do CPP, assemelha-se ao que já definido ao descumprimento injustificado da transação penal no teor do enunciado da súmula vinculante n. 35: “a homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial”.
Outro ponto de intersecção entre os institutos diz respeito à eficácia intertemporal e à aplicação aos processos em curso. A lei 9.099/95, no seu art. 90, impedia expressamente a retroatividade da transação penal aos processos penais cuja instrução já estivesse sido iniciada. Frente a isso, foi proposta a ADI n. 1719 impugnando tal dispositivo, sob o argumento, em síntese, de que a nova lei tem natureza híbrida, bem como se trata da lei penal mais benéfica, logo a sua retroatividade é indiscutível.
No caso, o Pleno do STF, confirmando a liminar, entendeu pela retroatividade da transação penal e das demais medidas despenalizadoras. Eis a ementa do pronunciamento: “… o art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade”. Todavia, “as normas de direito penal que contenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição Federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa lei…”
Devido à semelhança entre os institutos, parece ser pacífico na jurisprudência e na doutrina de que o mencionado entendimento se aplica ao ANPP, ou seja, deve retroagir alcançando fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei n.13.964/2019, em razão da sua natureza mista (processual e material), em conformação com o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5º, inc. XL, CF/88).
Entretanto, cabe aqui fazer um breve comentário sobre a divergência jurisprudencial no STF em relação à data limite da aplicabilidade do ANPP. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Segunda Turma, reiteradamente, vem entendendo que “o art. 28-A retroage às ações que estavam em curso quando a Lei n. 13.964/2019 entrou em vigor, ainda que recebida a denúncia ou prolatada a sentença penal condenatório” (HC n. 225.581 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, p. 02.05.2023). Por outro lado, a Primeira Turma entende que “o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia” (ARE n. 1.422.233 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, p. 28.06.2023).
Ante a divergência jurisprudencial das Turmas, o Min. Gilmar Mendes afetou o tema, para julgamento pelo Plenário nos autos do HC n. 185.913/DF, a fim de definir as seguintes questões: “a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/2019? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado? b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou processo?”
Além disso, ao final do TCO e não sendo caso de arquivamento, o art. 76, caput, da Lei 9.9099/95 dispõe que o MP pode oferecer a medida despenalizadora. De modo idêntico, o art. 28-A, caput, do CPP, prevê a possibilidade de celebração do ANPP, caso finalizada a investigação criminal e rejeitada a hipótese de arquivamento. Logo, para a formalização de ambos os institutos é indispensável a presença de justa causa para deflagração da ação penal. Do contrário, os acordos não poderão ser celebrados.
Portanto, percebe-se que, a partir de alguns dos pontos de interação expostos, é inegável que o ANPP é um reflexo da transação penal para além das competências do Jecrim, o que antes se restringia às ditas “infrações de menor potencial ofensivo”, hoje se expande para infrações penais com grau de gravidade mais elevada. É realidade a tendência expansiva da adoção de mecanismos de solução consensual de conflitos, porém há que se ter cautela para não haver um desvirtuamento dos fins do processo penal democrático e acabar violando direitos e garantias fundamentais dos investigados [6].
* Graduando em Direito na Universidade de Brasília. Associado ao Instituto de Ciências Penais (ICP). Membro da Equipe de Direito e Processo Penal da Universidade de Brasília.
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[1] VASCONCELLOS, Vinicius G. Barganhar e justiça criminal negociada. 2ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 50
[2] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. 2ed. Rio de Janeiro: Metódo, 2022.
[3] https://www.migalhas.com.br/depeso/318477/primeiras-impressoes-sobre-a-lei-13-964-19–aspectos-processuais acesso em 17.07.2023
[4] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. 2ed. Rio de Janeiro: Metódo, 2022. p. 160
[5] SANCHES CUNHA, Rogério. Pacote Anticrime. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 129
[6] VASCONCELLOS, Vinicius G. Acordo de não persecução penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
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Referências
REsp n. 1.327.897, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, p. 15.06.2016
ADI n. 1719, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, p. 03.08.2007
HC n. 225.581 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, p. 02.05.2023
ARE n. 1.422.233 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, p. 28.06.2023
https://www.migalhas.com.br/depeso/318477/primeiras-impressoes-sobre-a-lei-13-964-19–aspectos-processuais acesso em: 17.07.2023
https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal acesso em: 17.07.2023
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 (Pacote Anticrime). Salvador: JusPodivm, 2020
LIMA, Renato Brasileiro. Pacote Anticrime: Comentário à lei n. 13.964/19 artigo por artigo. Salvador: JusPodivm, 2020
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
QUEIROZ, Paulo. Acordo de Não Persecução Penal – Lei nº 13.964/2019. Disponível em: https://www.pauloqueiroz.net/acordo-de-nao-persecucao-penal-primeira-parte/ acesso em: 12.07.2023
SANCHES CUNHA, Rogério. Pacote Anticrime. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 129
SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao pacote anticrime. 2ed. Rio de Janeiro: Metódo, 2022
VASCONCELLOS, Vinicius G. Acordo de não persecução penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015.