Por Filipe Gouveia Santos[1] e Marcus Vinícius Ramos Abrantes[2]
No agitado mundo financeiro, informação vale ouro. Mas o que acontece quando aqueles que têm acesso aos bastidores do mercado de ações decidem agir conforme suas próprias regras?
Imagine uma sala de reuniões discretamente iluminada em um edifício corporativo, onde executivos discutem o futuro da empresa, uma aquisição de um concorrente que está para ser anunciada em pouco tempo ou algo que fará com que as ações da empresa tenham uma valorização significativa. O que ocorre quando, na manhã seguinte, um desses executivos abre seu home broker e adiciona uma grande ordem de compra de papéis dessa empresa? Para o público geral, apenas mais uma operação normal, para esse executivo, garantia de lucro fora do padrão, lastreado em informações que permanecem fora do alcance público.
O caso narrado é o típico exemplo de insider trading, amplamente conhecido no mundo financeiro: operação no mercado de valores mobiliários com base em informações privilegiadas[3], mais especificamente, informações das quais o público geral não tem conhecimento, que geram uma vantagem competitiva, e indevida, no mercado.
Primeiramente, para a elucidação do que é essa prática, é necessário determinar conceitos.
O primeiro a ser definido é de informações relevantes, que são aquelas que dizem respeito a fatos ocorridos, na companhia, que possam de algum modo impactar na decisão dos investidores de vender ou comprar valores mobiliários[4].
Outra definição fundamental é da informação privilegiada, que seria o conhecimento de um fato, sobre a companhia, que pode ser utilizado contra a economia popular[5]. Em síntese, é o fato relevante que ainda não foi tornado público.
O último conceito fundamental é o de insider. Antes, porém, é necessário ressaltar que a legislação brasileira não definiu expressamente quem seria o insider. O que há é a interpretação de artigos e uma construção doutrinária sobre quem seria esta pessoa[6].
A Lei n. 6.404/76, na redação de seus artigos 155 e 157, combinados com os artigos 145, 160 e 165, estabelece quem é considerado insider[7], ao abordar o dever de lealdade e de prestar informações, pelos administradores e pessoas a eles equiparados, de maneira implícita.
De forma a corroborar com a construção de quem seria o insider, mais recentemente, em 2017, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM – elaborou a Resolução n. 44, que em seu artigo 13 proibiu a utilização de informações privilegiadas por qualquer pessoa que a elas teve acesso, com o intuito de auferir vantagem, para si ou para outrem, mediante negociação de valores mobiliários[8].
Assim, entende-se que o insider é aquela pessoa, que por determinadas conjunturas, tem acesso à informações relevantes, que ainda não foram à público, de determinadas empresas[9].
Entretanto, a citada Resolução foi além de apenas proibir a utilização dessas informações e, em seu art. 13,§ 1º, incisos II e III, definiu a presunção de que acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração e do conselho fiscal, e a própria companhia, em relação com os negócios jurídicos de própria emissão, têm acesso a toda informação relevante ainda não divulgada. Além disso, estabelece a presunção de que as pessoas mencionadas, bem como aqueles que tenham relação comercial, profissional ou de confiança com a companhia, ao terem acesso a informação relevante ainda não divulgada sabem que se trata de informação privilegiada[10].
Dessa maneira, definiu-se quem é considerado insider, estendeu-se a proibição da utilização de informações privilegiadas a todos e criou presunções de quem tem acesso às informações privilegiadas e de que estas pessoas sabem que lidam com essas informações.
Mas, agora que já se esclareceu quem é considerado insider, o que são informações relevantes e informações privilegiadas, surgem as dúvidas do que é insider trading e em que casos se torna uma prática proibida.
A definição de insider trading, de maneira mais concisa, é a operação (a compra, venda ou qualquer outro tipo de ordem de ativos mobiliários) efetuada por um insider com valores mobiliários de uma companhia, e em proveito próprio[11].
Assim, tem-se que o insider trading, inicialmente, não é necessariamente proibido, pois não há vedação ao insider realizar operações, desde que não se utilize de informações privilegiadas[12], já que o ilícito decorre justamente de se utilizar de informações que ainda não foram divulgadas ao mercado. Mas então, por que utilizar informações privilegiadas para operar no mercado financeiro é proibido?
Um jargão bastante usual é capaz de explicar o porquê da proibição: “o mercado vive de expectativa”. Explica-se. Quando se investe em uma companhia, se deseja o maior rendimento possível, com a maior segurança possível. Assim, a expectativa de crescimento sustentável da empresa é essencial para a decisão do investidor em realizar um investimento.
Imaginemos que uma pessoa teve acesso à seguinte informação: no dia seguinte a sociedade empresária lançará um produto inovador, capaz de alterar a conjuntura do mercado. Com essa informação em mãos, essa pessoa compra ações da empresa antes da notícia vir à público e cria uma vantagem indevida frente aos demais investidores. Justamente por isso, o uso de informações privilegiadas é proibido, pois gera um cenário de desigualdade entre os investidores. Assim, quando alguém faz uma operação antes de uma notícia que pode alterar o valor das ações de uma companhia, essa pessoa obterá lucros indevidos às custas de outros investidores que desconhecem a informação relevante. Nesse sentido, essa prática, moralmente reprovável, fere os princípios da boa-fé e da lealdade, além de minar a confiança do mercado financeiro, pois prejudica a integridade e a transparência deste vasto universo. Por fim, como já explanado, o mercado vive de expectativa e previsibilidade, ou seja, o que torna a transparência e a integridade elementos basilares para a realização de qualquer investimento. Por esses motivos, a Lei proibiu a utilização de informações privilegiadas.
Entretanto, o Direito Brasileiro foi além de apenas proibir determinadas condutas e estabeleceu às companhias e seus administradores o dever de informar seus investidores[13]. Nesse sentido, para proteger o mercado e dar ao investidor o máximo de transparência e segurança das decisões tomadas pelos administradores, a Lei n. 6.404/76 determinou que toda e qualquer situação que possa influir na decisão dos investidores devem ser apresentadas ao mercado de forma clara e transparente por meio de um comunicado oficial, por exemplo[14]. Como exemplos, pode-se citar abertura de capital, resultados contábeis, fusões e aquisições, manobras de investimento, emissão de capital etc.
Com todo esse aparato legal e a CVM para fiscalizar e coibir essas condutas, como as pessoas ainda conseguem essas informações privilegiadas? Bom, anteriormente, a maioria dos “vazamentos” se originavam dentro da própria empresa, já que é onde o futuro da instituição é discutido por seus executivos e funcionários. Essa é atividade que, de fato, é necessária, pois planejamento estratégico e de crescimento fazem parte do dia-a-dia de qualquer negócio. Portanto, é fácil pensar que a prática do insider trading pode ocorrer frequentemente, contudo, aquele que incide na prática deste crime está sujeito a punições penais previstas na Lei n. 6.385/76.
Conforme o disposto no art. 27-D da citada lei, a pessoa que se utiliza de informação relevante, ainda não divulgada ao mercado, para gerar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários poderá ser punida com reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida[15]. Porém, apesar da existência de uma pena dura para coibir esta prática, na realidade, as condenações são raras, devido à alta complexidade de comprovação da ocorrência. Normalmente, as informações privilegiadas são passadas de maneira informal, o que dificulta as investigações da CVM. Não à toa houve pouquíssimas condenações definitivas no Brasil.
Assim, diante de um cenário de poucas acusações e ainda menos condenações, alguns casos se tornaram notórios, como por exemplo o caso OGX, no qual o fundador e controlador da empresa, Eike Batista, foi acusado de utilizar informações privilegiadas e manipulação pública do mercado para tirar proveito próprio[16]. Em setembro de 2014, Eike foi denunciado pelo Ministério Público Federal, em que foi acusado de, diante do conhecimento de uma situação financeira desfavorável em seu conglomerado, vender ações antes que o mercado tivesse conhecimento das dificuldades pelas quais a sociedade empresária enfrentava. Além disso, Eike publicou em suas redes sociais, mais especificamente o Twitter, informações e dados imprecisos, na tentativa de tranquilizar investidores e concretizar a manobra financeira. A estratégia inicialmente funcionou, pois ele lucrou milhões com esse movimento. Todavia, posteriormente, ele foi condenado pela CVM a pagar R$ 536 milhões pela venda de suas ações mediante uso de informações privilegiadas.
Outro caso notório, e talvez até mais polêmico, foi o da J&F, controladora da JBS. Em meio a denúncias de escândalos de corrupção, Joesley Batista, o então presidente da JBS, que era alvo de investigações, entregou, em sua delação premiada, um áudio de uma conversa reservada com o ex-presidente Michel Temer, no qual eram expostos esquemas de pagamento de propina e compra do sigilo de outro político. No momento em que essas informações se tornassem públicas, a bolsa de valores teria uma grande queda e o dólar uma forte subida, houve suspeitas de que Joesley e seu irmão, Wesley Batista, supostamente teriam se utilizado dessa informação para operar e obter vantagem no mercado de capitais, enquanto este colapsava. Os resultados da colaboração premiada de Joesley foram tão impactantes que a bolsa de valores do Brasil foi obrigada a acionar o mecanismo de circuit-breaker, e parar suas atividades naquele dia. Em consequência da manobra financeira, os irmãos chegaram a ser condenados pela CVM, mas em outubro de 2023, foram absolvidos, sob o entendimento de que não era possível prever a homologação da colaboração premiada[17]15.
Portanto, em conclusão, tem-se que a prática do insider trading é bastante perigosa e coloca em xeque a credibilidade do mercado financeiro e a estabilidade econômica. Nesse sentido, corretamente, o Direito Brasileiro adotou medidas para coibir e punir exemplarmente a utilização de informações privilegiadas. Porém, apesar de todo o arcabouço jurídico e esforços da CVM em fiscalizar e prevenir o uso dessas informações, tal prática continua a ocorrer, devido a dificuldade de comprovar, efetivamente, a ocorrência do delito. Nesse cenário de raras denúncias e ainda menos condenações, quem perde são os investidores de boa-fé, as companhias prejudicadas, o mercado financeiro e a economia nacional.
[1] Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (CEUB), estagiário no escritório De Jongh Martins Advogados, integrante do grupo de pesquisa de Direito Econômico do CEUB, tem interesse na área de Economia e de Direito Processual Civil.
[2] Graduando em Economia pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pesquisador júnior na Advocacia-Geral da União (AGU), tem interesse na área de macroeconomia com ênfase nos mercados financeiros
Referências
[3] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978. (Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/menu/acesso_informacao/serieshistoricas/estud os/anexos/Aspectos-Juridicos-do-insider-trading-NJP.pdf. Acesso em: 03 de abril de 2024.)
[4] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[5] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[6] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[7] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[8] Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Resolução CVM nº 44, de 23 de agosto de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, 23 de agosto de 2021. (Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/resolucoes/anexos/001/resol044.pdf. Acesso em: 05 de abril de 2024.)
[9] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[10] Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Resolução CVM nº 44, de 23 de agosto de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, 23 de agosto de 2021.
[11] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[12] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[13] Parente, N. J. (1978). Aspectos jurídicos do insider trading. Rio de Janeiro: CVM, junho de 1978.
[14] BRASIL. Lei nº 6.385, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1976. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 dez. 1976. (Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6385.htm. Acesso em: 05 de abril de 2024.)
[15] BRASIL. Lei nº 6.385, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1976. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 dez. 1976.
[16] Johansson, Wagner André. O caso Eike Batista, o insider trading e a violação ao sistema brasileiro de defesa da concorrência. 2019. (Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/percurso/article/view/3718/371372082. Acesso em: 08 de abril de 2024.)
[17] Redação Legislação & Mercados. CVM vota pela absolvição em caso emblemático. 19 dez, 2023. (Disponível em: https://legislacaoemercados.capitalaberto.com.br/insider trading-cvm-vota-pela-absolvicao-em-caso-emblematico/.)