O salário mínimo (constitucional) como gerador e limitador do direito de propriedade: uma interpretação a partir de John Locke

por Veredicto

Por: Thiago Maciel Borges

Este artigo pretende demonstrar que o inciso IV do art. 7º da Constituição da República, referente ao salário mínimo, defende e delimita minimamente o direito fundamental de propriedade e a não efetivação da norma mencionada consubstancia-se em expropriação de propriedade.

Sabe-se que outros valores são protegidos pela norma constitucional em comento, mas a discussão pretende demonstrar a referida norma sob o aspecto da defesa do direito de propriedade. Deseja-se, ainda, demonstrar como a efetivação deste comando constitucional delimitará com justiça as propriedades. 

Para isso, utiliza-se das reflexões de John Locke, contidas na obra “Segundo Tratado sobre o Governo”. 

Primeiramente, pensemos quando e como surge a noção de propriedade e por que ela é respeitada pelos demais membros da comunidade. O direito de propriedade é anterior ao Estado e a seus aparelhos de repressão. O homem primitivo, nas primeiras comunidades, já possuía a ética de respeito à propriedade, por quê? Para Locke, a propriedade é um direito natural, por isso anterior ao Estado.   

“Nos terrenos comunitários, que assim se mantêm por pacto, vemos que é a tomada de qualquer parte do que é comum, alterando seu estado original que dá início à propriedade, sem o que o comum nenhuma utilidade teria. E a tomada desta ou daquela parte não depende do consentimento expresso de todos os membros da comunidade. Assim o capim que o meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério que extraí em qualquer lugar onde a ele tenho direito comum com os outros, tornam-se minha propriedade sem a adjudicação ou o consentimento de qualquer outra pessoa. O trabalho que era meu, retirando-os do estado comum em que se encontravam, fixou minha propriedade”

Para Locke, é o trabalho que confere a propriedade do bem ao homem. O trabalho é diferente dos demais bens que o ser humano detém. Frente a bens inalienáveis, dos quais o ser humano não pode dispor, já que não é o legítimo proprietário, como o direito à vida, por exemplo, o trabalho é um bem próprio do ser humano, seu por essência, logo, de livre disposição. O ser humano é o legítimo proprietário de seu trabalho. Nesta senda, a tudo aquilo em que emprega seu trabalho torna seu, torna sua propriedade. O trabalho é o toque de Midas que transforma em propriedade (não em ouro) aquilo que é tocado. Prossegue Locke: “Assim, a razão nos diz que o veado é propriedade do índio que o caçou; permite que pertençam os bens àquele que lhes dedicou o próprio trabalho, embora anteriormente, como bens potenciais, fossem direito comum a todos”.

Essa noção ainda é vigente e podemos percebê-la quando, por exemplo, reconhecemos que o peixe pescado do oceano (bem comum) pertence a quem o pescou. Tal noção também é utilizada no instituto da usucapião, através do qual se reconhece o direito de propriedade àquele que trabalha a terra por determinado período de tempo sem objeção de outro. A falta de objeção denota que a determinada terra era bem comum, o que torna o trabalho capaz de atribuir a propriedade da terra à pessoa que a cultivou. No Direito Previdenciário, também encontramos resquícios desta noção, basta observar que a vinculação ao Regime Geral de Previdência ocorre através do exercício de trabalho remunerado, senão vejamos: “Todo aquele que exercer, concomitantemente, mais de uma atividade remunerada sujeita ao Regime Geral de Previdência Social é obrigatoriamente filiado em relação a cada uma delas” (§ 2º do art. 11 da Lei 8.213).

Na concepção de Locke, o direito de propriedade é um direito natural, pois antecede ao Estado. A Constituição da República o elenca entre os direitos fundamentais no caput do art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]” (grifo adicionado).

Resolvida a questão sobre o que confere a propriedade das coisas ao homem, surge o questionamento acerca da limitação desta propriedade. O que limitava a extensão da propriedade? 

A direção para a compreensão desta questão outra vez pode ser encontrada no pensamento de Locke. O autor aponta ser o uso que se pode fazer da propriedade com o trabalho, para torná-la útil, o limite para a propriedade. Assim explica: “Podemos fixar o tamanho da propriedade obtida pelo trabalho pelo tanto que podemos usar com vantagem para a vida e evitando que a dádiva se perca; o excedente ultrapassa a parte que nos cabe e pertence aos outros”. 

Constata-se, dessa forma, que em estado de natureza, já que o direito de propriedade é anterior ao Estado, havia limitação ao tamanho da propriedade, regulando o suprimento das necessidades dos homens e o entrechoque de interesses que porventura pudesse ocorrer. Isso permitiria que todos usufruíssem o bem comum (a natureza) e pudessem suprir suas necessidades sem usurpação de um sobre outro. 

“A natureza determinou bem o tamanho da propriedade pela quantidade de trabalho do homem e necessidades da vida. Nenhum trabalho podia dominar tudo ou de tudo apropriar-se, nem sua fruição consumir mais do que uma parcela menor, de modo que era impossível a qualquer homem usurpar o direito de outro ou adquirir para si uma propriedade com prejuízo do vizinho; […]” 

O trabalho de início pôde dar início ao direito de propriedade sobre o que havia de comum na natureza. Este direito era limitado pelo uso e por isso não havia motivo para controvérsia quanto ao direito, nem qualquer dúvida quanto à extensão da posse que ele conferia. O direito e a conveniência eram inseparáveis. Como o homem tinha direito a tudo a que fosse capaz de aplicar o próprio trabalho, não sofria a tentação de trabalhar para obter mais do que pudesse utilizar. (grifo adicionado) 

Assim, desde o estado de natureza, o trabalho se presta a suprir o ser humano de suas necessidades básicas, conferindo-lhe direito de propriedade sobre os bens necessários a este fim. A propriedade que era limitada pela capacidade laboral de tornar útil determinada coisa supria o homem de suas necessidades. No estado de natureza, ao homem, bastava seu trabalho para conseguir seu mínimo existencial. 

Hodiernamente, o trabalho é remunerado pelo salário. Este deve ser capaz de suprir as necessidades do trabalhador, sob pena de violar o direito de propriedade, condenando a uma sobrevivência indigna. O pagamento pelo trabalho em valor não suficiente ao suprimento das necessidades vitais básicas evidencia que outro está usufruindo os bens gerados pelo trabalho alheio, violando um direito natural, em patente violação aos Direitos Humanos, pois permite a espoliação de propriedade alheia. Atento a isso, o constituinte originário pátrio reconhece que o pagamento mínimo pelo trabalho deve ser capaz de suprir as necessidades vitais básicas do trabalhador, função que o trabalho sempre exerceu. É também forma de limitar a propriedade.

Desse modo, a Constituição estabelece ser direito dos trabalhadores urbanos e rurais o salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim. Frise-se que no texto constitucional o salário mínimo deve ter a capacidade de prover as necessidades vitais básicas, o que o liga à noção de mínimo existencial, que era provido pelo trabalho no estado de natureza. 

Partindo da noção de que o trabalho confere a propriedade do bem ao trabalhador, através do emprego da força laborativa na tarefa de tornar útil um bem comum, não remunerar o trabalho nos termos da constituição viola o direito fundamental de propriedade. Desse modo, através das constatações de Locke, pode-se verificar que a Constituição, ao definir que o salário mínimo deve ser capaz de suprir as necessidades vitais básicas do trabalhador, também o faz em defesa do direito fundamental à propriedade e da dignidade humana, de permitir ao homem desenvolver-se, ser aquilo que ele quer ser, cumprir seus fins. O direito à propriedade se liga a essa necessidade de garantir o fruto do trabalho ao próprio homem, ressaltado por Locke, fruto este que se materializa primeiro no salário para depois ser transformado em bens finais na sociedade capitalista moderna. 

Assim, a propriedade, adquirida através do trabalho, é a principal responsável pelo suprimento das necessidades vitais básicas do indivíduo, dela, por meio da força laboral, é retirado o sustento e o conforto. Considerando que o trabalho atualmente é trocado por dinheiro, para não violar o direito de propriedade, a remuneração precisa ser suficiente para o provimento das necessidades vitais básicas da pessoa, função que o trabalho sempre exerceu e deve continuar sendo capaz de exercer. Pode-se falar em direito à propriedade mínima. 

Dados já de 2014 do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) apontavam que o salário mínimo para a família brasileira, em maio daquele ano, deveria ter sido de R$ 3.079,31, na hipótese de o comando constitucional estar sendo obedecido.  (Fonte: UOL, em São Paulo 05/06/2014). Todavia, em 2014, o salário mínimo era de R$ 724,00, quatro vezes menor. Essa discrepância se mantém desde então. Em 2024, diante de uma salário mínimo de R$ 1.412,00, a estimativa do Dieese é de algo em torno de R$ 6,7 mil, quase cinco vezes maior

 Outrossim, ao não tornar efetivo o comando constitucional correspondente ao valor do salário mínimo, o Estado brasileiro deixa de limitar a extensão da propriedade.  Além de violar direito fundamental, permite-se a apropriação indevida de fruto do trabalho de um homem por outro, aprofundando as desigualdades e as injustiças que se dispôs a reduzir. Permitindo a espoliação da propriedade, o Estado não cumpre sua função precípua, pois Locke em suas reflexões afirma que o principal motivo para vivermos em sociedade é a defesa da propriedade, que é produto do trabalho. 

A busca por uma sociedade justa é um dos objetivos da República. Efetivar o comando que se extrai da norma do inciso IV do art. 7º da Constituição é forma de efetivar o proposto, promovendo melhorias para todos; tornando a sociedade mais justa, respeitando a dignidade da pessoa humana ao prover uma remuneração capaz de suprir as necessidades vitais básicas do empregado, bem como limitando a extensão da propriedade do empregador. Desse modo, conferir efetividade ao comando constitucional e proporcionar um valor condigno aos salários efetivam direito fundamental à propriedade e delimita com justiça a extensão deste direito. 

 

Referências

BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. DF: Presidência da República, 1991.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. In: LOCKE, John. Locke, 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

 

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