Direitos Humanos no Cárcere: Reflexões Finais para um Novo Começo

por Direitos Humanos no Carcere

             Por: Gabriel Cardoso Cândido

E chegamos ao último texto do ano da nossa coluna!

No primeiro artigo “Execução Penal no Brasil: Reflexão Acerca da Promessa de Dignidade” trouxe algumas perguntas a título de provocação e reflexão:

  1. Em que medida estamos dispostos a renunciar aos direitos humanos das pessoas privada de liberdade sob o pretexto de uma justiça punitiva?
  2. O sistema carcerário brasileiro vem contribuindo ou afetando negativamente o processo de reabilitação e de reintegração das pessoas privadas de liberdade ao convívio social?
  3. Quais as consequências sociais que a privação do acesso a direitos e a constante violação de direitos humanos no cárcere pode gerar no curto, médio e longo prazo?
  4. Nós, enquanto sociedade, acadêmicos, pesquisadores, operadores do direito, estamos dispostos e preparados para tencionar as relações de poder, ora estruturadas sob o viés das diversas violações aos direitos humanos no sistema de justiça criminal?

Nos outros posteriores, propus a trazer algumas bases teóricas, dogmáticas e críticas para sedimentar alguns pressupostos e marcar a nossa posição clara em defesa de um processo de execução penal sob a perspectiva dos direitos humanos, tendo em vista a redução de danos.

Agora é o momento de enfrentar diretamente as questões propostas em nossa primeira reflexão.

  1. Em que medida estamos dispostos a renunciar aos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade sob o pretexto de uma justiça punitiva?

A renúncia aos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade é um tema que evidencia a tensão entre a lógica punitivista e o respeito aos princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito, principalmente a dignidade da pessoa humano.

Sob o pretexto de uma justiça punitiva, muitas vezes sustentada pelo discurso de segurança pública, há a desumanização das pessoas encarceradas, tratadas como elementos descartáveis e fora do corpo social.

A renúncia aos direitos dessas pessoas é uma escolha política e social que perpetua desigualdades e discriminações estruturais. Evidencia-se que o encarceramento em massa não apenas falha em reduzir a criminalidade, como também aprofunda ciclos de violência[1]. Dessa forma, é fundamental questionar o real objetivo do sistema de justiça criminal e repensar sua função sob a perspectiva de inclusão social e não de exclusão deliberada e sistemática.

  1. O sistema carcerário brasileiro vem contribuindo ou afetando negativamente o processo de reabilitação e de reintegração das pessoas privadas de liberdade ao convívio social?

O sistema carcerário brasileiro tal como é posto afeta negativamente os processos de reabilitação e reintegração social. Com superlotação crônica, condições degradantes de higiene, alimentação insuficiente e acesso limitado à saúde, educação e trabalho, o cárcere torna-se espaço de violação de direitos e de aprofundamento das vulnerabilidades sociais.

A ausência de políticas públicas eficazes e em massa no âmbito da execução penal faz com que o sistema não cumpra a declarada função ressocializadora da pena.

Em vez disso, as prisões brasileiras reproduzem um ambiente propício à perpetuação de redes criminais e à marginalização das pessoas que passam pelo sistema.

Essa falência estrutural demanda uma revisão crítica e a implementação de políticas que privilegiem medidas de desencarceramento, medidas alternativas à prisão e respeito estrito ao princípio do numeros clausus (abordado no texto “Decisões Contra o Encarceramento em Massa”[2] desta coluna).

  1. Quais as consequências sociais que a privação do acesso a direitos e a constante violação de direitos humanos no cárcere pode gerar no curto, médio e longo prazo?

No curto prazo, a violação de direitos no cárcere provoca um ambiente de violência institucional e insalubridade, afetando diretamente a saúde física e mental das pessoas privadas de liberdade. Esse cenário compromete a possibilidade de qualquer processo de reabilitação, favorecendo os índices de reincidência criminal.

No médio prazo, a marginalização dessas pessoas impacta suas famílias e comunidades, gerando um ciclo de exclusão social e aprofundando as desigualdades estruturais. A estigmatização pós-cárcere reduz as oportunidades de reinserção no mercado de trabalho e o acesso a direitos básicos[3]. Nesse sentido, destaca-se o documento “Enfrentando o estigma contra pessoas egressas do sistema prisional e suas famílias” disponibilizado pelo CNJ:

Os impactos negativos do estigma contra pessoas egressas do sistema prisional e suas famílias podem afetar tanto o nível individual quanto comunitário, dificultando a reinserção social desse público e fragilizando vínculos sociais. Também pode prejudicar o engajamento das pessoas egressas em serviços voltados ao apoio à transição do sistema prisional e serviços de atenção psicossocial. Dessa forma, o enfrentamento do estigma contra esse público deve ser incluído nas ações, nos programas e nas políticas, envolvendo a participação e a escuta ativa das preferências das pessoas egressas.[4]

No longo prazo, as consequências são ainda mais alarmantes. A perpetuação desse modelo de encarceramento contribui para a naturalização das violações de direitos humanos e para o fortalecimento de uma cultura da punição a qualquer custo. Esse processo alimenta um círculo vicioso de criminalização da pobreza, fortalecimento de organizações criminosas e desestabilização do tecido social, fragilizando o próprio Estado de Direito.

  1. Nós, enquanto sociedade, acadêmicos, pesquisadores, operadores do direito, estamos dispostos e preparados para tencionar as relações de poder, ora estruturadas sob o viés das diversas violações aos direitos humanos no sistema de justiça criminal?

Tencionar as relações de poder no âmbito do sistema de justiça criminal exige um compromisso de vida, compromisso coletivo com a transformação estrutural de um sistema nitidamente falido. Isso implica questionar não apenas o funcionamento das instituições penais, mas também os discursos e práticas que sustentam o modelo punitivista e legitimam as violações de direitos humanos.

Acadêmicos, pesquisadores e operadores do direito têm papel crucial nesse processo, uma vez que detêm ferramentas para desconstruir paradigmas normativos e propor alternativas baseadas na redução de danos e na efetivação dos direitos fundamentais.

Entretanto, para que tal tensionamento seja efetivo, é necessário romper com a inércia institucional e com a complacência frente às injustiças. O “como?” é a parte mais desafiadora que convido refletirmos juntos.

Enquanto sociedade, é indispensável reconhecer que o encarceramento em massa é um sintoma de um sistema que prioriza o controle social em detrimento da inclusão e da justiça social. Preparar-se para esse embate requer não apenas conhecimento técnico, mas também coragem para enfrentar as resistências e os interesses consolidados que perpetuam a presente situação de violação generalizada de direitos fundamentais.

***

Que possamos cada vez mais nos engajar com a promoção dos direitos humanos dentro e fora do cárcere.

Desejo a todos um 2025 de muito estudo e muito trabalho em prol dos mais vulneráveis, com responsabilidade intelectual, política e social.

 

Coluna “Direitos Humanos no Cárcere”: Texto 8

Autor: Professor na pós-graduação em Ciências Criminais na Universidade Candido Mendes. Autor da coluna Direitos Humanos no Cárcere – Portal Jurídico dos Estudantes de Direito (UnB). Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Graduado em Direito pela PUC-Rio.

[1] MINHOTO, Laurindo Dias. Encarceramento em Massa, Racketeering de Estado e Racionalidade Neoliberal. Lua Nova, São Paulo, 109: 161-191, 2020.

[2] https://www.pjed.com.br/decisoes-contra-o-encarceramento-em-massa/

[3] PAGER, Devah. The mark of a criminal record. American Journal of Sociology, Chicago, v.108, n. 5, p. 937-975, 2003.

[4] CNJ. Enfrentando o estigma contra pessoas egressas do sistema prisional e suas famílias. Conselho Nacional de Justiça, Brasília/DF, p.6, 2020.

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0 comentário

Susana Lima Cardoso de Sá dezembro 23, 2024 - 5:18 pm

Infelizmente , a violação dos direitos humanos é considerada pelo sistema prisional brasileiro como parte de um sistema punitivo, onde as pessoas em privação de liberdade, são consideradas merecedoras de maus tratos. Consequentemente, este sistema punitivo não recupera seres humanos, não os integra na sociedade e não diminui a criminalidade. Por que tantas pessoas se importam com posicionamentos em favor dos direitos humanos no cárcere? Acredito que no fundo, tais pessoas estão tão adoentadas quanto as pessoas encarceradas. Vivemos na verdade, dentro de uma sociedade doente psicologicamente. Isso é lamentável! Um programa social eficaz deve considerar os direitos dos encarcerados e promover sua recuperação, como também, deve conscientizar a sociedade brasileira de formas adequadas de abordagem para com os mesmos .Talvez assim, conseguiremos construir uma sociedade mais saudável psicologicamente.

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