Execução Penal no Brasil

Reflexão Acerca da Promessa de Dignidade

por Direitos Humanos no Carcere

Por Gabriel Cardoso Cândido*

O princípio da humanidade não se limita a proibir a abstrata imposição e aplicação de penas cruéis ao cidadão livre, mas também veda a concreta execução cruel de penas legais ao cidadão condenado.  – Juarez Cirino dos Santos (2020, p.54)

  1. Conceito da Dignidade da Pessoa Humana

A execução penal no Brasil deve ser estritamente submissa aos princípios legais, constitucionais e convencionais que regem a aplicação da pena privativa de liberdade. A garantia constitucional da dignidade da pessoa humana deve prestar-se como guia orientador em todas as etapas do processo, desde a elaboração das normas até a condução dos procedimentos administrativos nas instituições prisionais.

A nossa Constituição nos traz:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II – prevalência dos direitos humanos;

Demonstrado, então, o compromisso assumido pelo Estado brasileiro em orientar suas ações, tanto nacionais quanto internacionais, em respeito à dignidade da pessoa humana e em promoção dos direitos humanos. Ressalta-se que as normas que materializam tais valores possuem “maior grau de fundamentalidade na ordem jurídica como um todo, a elas devem corresponder as modalidades de eficácia jurídica mais consistentes” (BARCELLOS, 2002, p. 202­3).

A dignidade da pessoa humana se manifesta como princípio unificador dos demais direitos fundamentais, que conferem eficácia a esse princípio central. Nesse sentido, é crucial reconhecer que a dignidade humana não pode ser desvinculada da garantia dos direitos sociais, tampouco ser seletivamente invocada em teorias que negligenciam sua importância qualquer que seja o contexto (SILVA, 2006, p.106).

O artigo 3° da Constituição traz os objetivos fundamentais do Estado brasileiro:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Anota-se que tais objetivos são destinados a orientar as prestações positivas do Estado, em vista à concretização da “democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana” (SILVA, 1990, p. 93). Assim, a dignidade da pessoa humana emerge como um imperativo fundamental e estruturador na construção do ordenamento jurídico, na sua interpretação e, acima de tudo, na sua aplicação (PIOVESAN, 2004, p.7).

Com a finalidade de se estabelecer concretude prática a esse princípio, é importante afirmar premissas elementares e interconectadas da dignidade da pessoa humana, enquanto princípio jurídico fundamental: 1) a preservação da integridade física, moral e psicológica; 2) acesso aos recursos materiais fundamentais para a subsistência; 3) a garantia da liberdade e igualdade na convivência em sociedade (AZEVEDO, 2002, p.122-3).

  1. A Dignidade Humana na Execução Penal

O princípio da dignidade humana estabelece limites rigorosos à execução penal, bem como serve como referência na elaboração, aplicação e execução das normas jurídicas, vinculando todo o Poder Público (TAVARES, 2020, p.85).

Nesse sentido, é imprescindível que as condições nos presídios brasileiros atendam plenamente os padrões de dignidade humana, servindo como alicerce para a atuação do Estado, especialmente no exercício do poder punitivo. Diversos documentos normativos enfatizam os direitos e as garantias fundamentais durante o período de encarceramento. No entanto, há uma evidente disparidade entre o direito formalizado em leis e tratados e sua implementação no dia-dia, questão que será abordada em futuras análises desta coluna.

A Constituição Federal estabelece dispositivos específicos para garantir a dignidade no ambiente prisional, incluindo a proibição de tortura e tratamentos desumanos (art. 5°, III), vedação de penas cruéis (art. 5°, XLVII), e proteção da integridade física e moral dos detentos (art. 5°, XLIX).

O princípio da dignidade da pessoa humana na execução penal se expressa principalmente na garantia de acesso aos direitos fundamentais e indispensáveis à existência humana.

É fundamental que o indivíduo privado de liberdade tenha todos os direitos garantidos, equiparando-se as garantias a um cidadão em liberdade, exceto os direitos expressamente restringidos pela sentença condenatória ou pela legislação.

É o que dispõe a redação do artigo 3° da Lei de Execução Penal: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Portanto, é correto afirmar que os direitos das pessoas privadas de liberdade constituem o principal limite para o processo de aprisionamento.

O Estado exerce controle absoluto sobre o indivíduo privado de liberdade, assumindo a responsabilidade de assegurar e proteger os direitos humanos dos encarcerados, tanto por meio de obrigações de não fazer quanto de fazer. As obrigações de não fazer incluem a contenção de impulsos autoritários e a não violação da dignidade da pessoa encarcerada. Por outro lado, o Estado também deve adotar uma postura ativa na promoção das garantias e no acesso aos direitos dentro do cárcere.

Na realidade das prisões brasileiras, há uma notável discrepância entre as normas jurídicas estabelecidas e sua efetiva implementação, onde o Poder Público muitas vezes reconhece os direitos sem concretizá-los no cotidiano do cárcere. Como resultado, observa-se a superlotação carcerária, o fortalecimento das organizações criminosas e o aumento da criminalidade, tanto dentro quanto fora do sistema prisional. Sob essa perspectiva, Drauzio Varella:

A superpopulação nas cadeias acaba causando problemas aqui fora, para quem está fora das grades. Se eu tenho uma cadeia que cabe 15 e tem 30 ou 35 lá dentro, os agentes penitenciários perdem o controle da cadeia. (…) Se os agentes penitenciários perdem o controle, o Estado perde o controle e, portanto, quem é que assume esse poder todo? O crime organizado. (…) Nós criamos condições para aparecer o crime organizado com a superpopulação das nossas cadeias, nós perdemos o controle. (…) Você, quando lota a cadeia e cria um problema de segurança fora da cadeia, você aumenta a violência urbana. (VARELLA, 2019)

  1. Questionamentos e próximos passos

Dessa forma, como primeiro texto, compartilho alguns questionamentos que têm orientado as minhas buscas e estudos pela defesa dos direitos humanos no cárcere e, consequentemente, irá se refletir nessa coluna:

  1. Em que medida estamos dispostos a renunciar aos direitos humanos das pessoas privada de liberdade sob o pretexto de uma justiça punitiva?
  2. O sistema carcerário brasileiro vem contribuindo ou afetando negativamente o processo de reabilitação e de reintegração das pessoas privadas de liberdade ao convívio social?
  3. Quais as consequências sociais que a privação do acesso a direitos e a constante violação de direitos humanos no cárcere pode gerar no curto, médio e longo prazo?
  4. Nós, enquanto sociedade, acadêmicos, pesquisadores, operadores do direito, estamos dispostos e preparados para tencionar as relações de poder, ora estruturadas sob o viés das diversas violações aos direitos humanos no sistema de justiça criminal?

Até mais, espero que tenham gostado da nossa estreia.

Para comentários, dúvidas, críticas e provocações, deixarei meus contatos:


*(Advogado criminalista pela PUC-RIO. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS)


Referências:

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. RTCD: Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v.2, p.107-125, jan/mar 2002.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

PIOVESAN, Flávia. “Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a constituição brasileira de 1988.” Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica ‐ RIHJ, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, jan./dez. 2004.

SANTOS, Juarez Cirino dos Santos. Direito Penal: Parte Geral. 9.ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2006.

______. Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020.

VARELLA, Drauzio. Os demagogos do sistema penitenciário | Coluna #104. In: Youtube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wDcu4HUGVz0. Acesso em 3 abr 2024.

Coluna “Direitos Humanos no Cárcere”: Texto 1 (abril)

 

 

 

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