Estado Mantenedor da Marginalização: Como fazer um auxílio jurídico efetivo?

por Advocatta

Por Bernardo Ramos Emery[1]

1.Introdução

O juridiquês presente nas falas excessivamente rebuscadas no panorama jurídico do Brasil, definitivamente afasta e distrai seu público não específico. O latim, os termos ultrapassados e as expressões já não comuns à língua portuguesa, conseguem elitizar o Direito e, dessa forma, alienar leigos, fazendo-os acreditar que o Direito é um tópico distópico. Essa gentrificação explícita no linguajar, também pode ser percebida em outros meios jurídicos. É possível afirmar que o excesso de burocratização, em alguns sítios legais, também tem a função de afastar os desinteressados e os desinformados de pautas e informações vitais. Nesse sentido, com o intuito de desmistificar o juridiquês prático, fazem-se necessárias ações comunitárias entre expoentes jurídicos e a sociedade, como por exemplo, o projeto de  ação em conjunto entre ONG da Rua e AdvocattA[2].

2.Setores Vitais

É de suma importância ressaltar novamente que esses problemas citados anteriormente não são apenas problemas práticos e discursivos, mas problemas estruturais na construção do Direito. Isso demonstra a falta de senso social que as gerências, por trás das plataformas burocráticas, têm. Ademais, a utilização da internet e da mídia, como principal veículo de comunicação, elitiza ainda mais o acesso à informação. Portanto, detalharei os principais problemas na obtenção de documentos e nos cadastros dos sistemas de serviços sociais públicos dentro da perspectiva das pessoas em situação de rua.

3.Acesso à documentação

A burocratização do acesso à documentação, não é novidade para a maioria dos brasileiros. Contudo, para a população em situação de rua, toda essa sistematização é, de fato, inexplorada. O fato é que as pessoas em situação de rua, naturalmente, não conseguem permanecer em um mesmo lugar por muito tempo. Todavia, todas as etapas da obtenção de documentos levam, por via de regra, mais de um dia. O cerne do problema reside na falta de compreensão governamental de que a documentação dessa classe deve ser feita eficientemente, para que a evasão seja evitada.

O processo, para conseguir um CPF, por exemplo, pode demorar até 72 horas, se a pessoa já tiver todos os documentos em mãos. Já a carteira de identidade, o prazo é de até 10 dias[3]. Levando em consideração esses longos prazos, torna-se óbvio para qualquer espectador que é inviável exigir, de pessoas em situação de rua, que permaneçam próximas ao local, em que fizeram esse registro, por todo esse período de tempo. Vale ressaltar, ainda, que esses prazos consideram uma pessoa que já tem acesso a todos os documentos necessários para a inscrição no CPF e para a confecção da Carteira de Identidade, que são: registro civil de nascimento; número do título de eleitor; e certidão de casamento, se casado ou viúvo.

Diante do exposto, e considerando que 26% da população de rua do Distrito Federal não têm nenhuma forma de documentação[4], percebe-se que a existência de organizações que auxiliam essas populações são, basicamente, inegociáveis. Realmente, existem plataformas governamentais que auxiliam pessoas em situação de rua, como os CRAS e os CREAS. Entretanto, existe apenas uma sede por Região Administrativa do Distrito Federal e, naturalmente, são todas sobrecarregadas. Ademais, muitos dos projetos administrados por esses centros necessitam, também, de alguma forma de documentação. Dessa forma, reitera-se a necessidade de ONGs para a ampliação da rede de apoio a pessoas em situação de rua.

Os valores do processo de documentação de pessoas em situação de rua também se torna um expoente importante a ser considerado. Eu poderia me alongar por alguns parágrafos, explicando todo o processo burocrático para conseguir as isenções necessárias e como comprová-las. Por exemplo, para conseguir a isenção da Certidão de Nascimento – um dos documentos mais relevantes para a obtenção de outros documentos – é necessário um atestado chamado “Declaração de Pobreza”. Declaração essa, que só pode ser autenticada em um cartório. Além disso, essa deve incluir informações básicas como CPF e CEP, mesmo sendo a própria certidão de nascimento um dos documentos para conseguir se cadastrar no CPF. Percebe-se, dessa forma, que essas isenções e os auxílios governamentais não são, necessariamente, feitos para serem utilizados.

A Assessoria Jurídica feita pela AdvocattA durante sua parceria com a ONG da Rua conseguiu detalhar e prever a maioria dos empecilhos que esse processo de documentação poderia gerar. No entanto, aparentemente, existiam sempre apenas duas maneiras de lidar com os problemas. Pagar as taxas e se isentar, minimamente, da burocracia, ou enfrentar a burocracia e se isentar das taxas. Essa escolha entre burocracia e dinheiro, para o indivíduo em situação de rua, é muito danosa. Isso porque as informações necessárias, para enfrentar as isenções monetárias, estavam sempre barradas atrás de códigos e resoluções. Portanto, mesmo na assessoria, era sempre necessário explicar os dois caminhos que poderiam ser tomados, deixando sempre claro os trade-offs de cada situação.

Infere-se, portanto, que na obtenção de documentos para pessoas em situação de rua, pelo menos no cenário atual, são, basicamente, necessárias participações de instituições que auxiliem essa população na documentação. A falta de transparência nessa área perpetua a marginalização dessas pessoas e aumenta ainda mais a desigualdade social. O assessoramento jurídico-social, dessa forma, torna-se uma ferramenta de extremo impacto comunitário. Desmistificando, nesse sentido, parte do “juridiquês” exposto no início do texto.

4.Acesso a serviços sociais

O acesso a serviços sociais é um processo que é geralmente mais conhecido e divulgado. As legislações que regulamentam os serviços de assistência social, inclusive, reconhecem que a divulgação desses serviços deve ser feita em massa e por diversos veículos[5]. Contudo, para pessoas em situação de rua essa divulgação deve ter uma estratégia completamente diferente.  As propagandas governamentais que focam essa população devem ter em mente que o acesso à informação é extremamente difícil.

Recentemente, por exemplo, foi lançado o projeto “Dignidade Menstrual” que distribui absorventes gratuitamente para mulheres de 10 a 49 anos,  com renda familiar inferior a R$218,00. Essa campanha recebeu um fundo público bem expressivo e suporta hoje, no DF, cerca de 450 farmácias.  O propósito dessa campanha é  fenomenal e consegue garantir para a maioria das mulheres que usufruem do programa uma segurança mínima. Entretanto, a divulgação  dessa campanha parece não ter sido tão explorada. Das 20 milhões de pessoas, no Brasil todo, que se encontram nas situações cabíveis para a entrada no programa, apenas 8 milhões, de fato, usufruíram de seus direitos. Isso talvez aconteça pela falta de campanhas divulgando o CadÚnico – site/órgão, que gerencia a maior parte das ações afirmativas federais[6].

A falta de divulgação desses programas governamentais se confunde com a inabilidade de eficientizar a confecção de documentos para populações em situação de rua. A existência de medidas afirmativas, no contexto atual do Brasil, parece uma tentativa falha de esconder que essa população “não precisa ficar sabendo de seus direitos”. Retornamos, novamente, a uma forma de alienação estatal, para com seus sujeitos mais vulneráveis. Finalizando esse tópico, ainda acredito que as ações afirmativas, como o projeto da Dignidade Menstrual, devam ser continuadas e amplamente instituídas. Todavia, a divulgação desses serviços e de como acessá-los deve ser igualmente explorada. Esse papel não deve ser esperado de Organizações Não Governamentais, apesar de serem um dos principais meios de divulgação de novas campanhas.

5.Conclusão

Tendo todos os pontos apresentados em mente, faz-se necessária a reflexão sobre a verdadeira problemática do assunto. A falta de acesso das populações em situação de rua a esses sistemas governamentais não é, necessariamente, por uma má-fé estatal generalizada. Contudo, essa ingerência consegue atrapalhar severamente a vida de pessoas que já estão em uma carência muito grande. Dessa forma, tornam-se necessárias críticas a todas essas plataformas citadas, para que esses sistemas consigam evoluir. Além disso, o trabalho realizado por instituições como a ONG da Rua deve ser amplamente divulgado e incentivado, para que mais pessoas consigam se conscientizar de seus direitos. Assim como parcerias jurídicas comunitárias que consigam destrinchar o “juridiquês” presente nas legislações, nos códigos e nas resoluções.  Sob essa ótica, a sociedade finalmente triunfará sobre a complexificação do simples e conseguirá auxiliar mais pessoas.


[1] Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da AdvocattA – Empresa Júnior de Direito da UnB


Referências

[2] Esse projeto foi uma parceria sócio-jurídica entre a Empresa Júnior de Direito da UnB – AdvocattA – e a ONG da Rua – instituição que auxilia populações em situação de rua. O foco principal dessa ação foi criar uma peça jurídica que detalhasse, praticamente, o que a ONG da Rua poderia fazer para auxiliar seus beneficiários em áreas que necessitavam de um conhecimento legislativo avançado. Os temas principais foram: acesso à documentação básica; acesso a serviços sociais; acesso a serviços de proteção de vulneráveis; acesso ao sistema de justiça; e oportunidades governamentais de emprego.

[3] PCDF. Acesso em: 14/09/2023. Disponível em: https://www.pcdf.df.gov.br/servicos/carteira-de-identidade/perguntas-frequentes

[4] CENSO CODEPLAN. Acesso em: 14/09/2023. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2022/06/SE_perfil-da-Populacao-em-Situacao-de-Rua-no-Distrito-Federal.pdf

[5] BRASIL. Lei n° 8742, 7 de Dezembro de 1993.

[6] SECOM. Acesso em: 07/02/2024. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/03/dignidade-menstrual-programa-de-protecao-e-promocao-da-saude-e-dignidade-menstrual-beneficiara-8-milhoes-de-pessoas

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