O cotidiano é sempre cercado pelo diferente, pelo oposto, pelo outro. O enfrentamento de opostos ocorre desde situações sutis até cenários conflituosos, mas esse enfrentamento de opostos não só é inevitável como também é necessário para a formação humana, pois é por meio da identificação do “outro” que se encontra o “eu”.
A consciência humana, conforme ilustra Sartre, é um constante movimento de desejar ser, de questionar o que é ser, e somente encontra respostas ao se deparar com algo que não é para se identificar como sendo o contrário daquele “outro”. O exercício de identificação de si faz parte do exercício de compreensão do outro, pois sem o “outro” não há o “eu”. Isto é, essa identificação da existência do “eu-individual” só é permitida mediante um contato com o outro, o qual, em uma visão expandida, se torna a própria sociedade diferente do indivíduo.
Contudo, embora o “outro” tenha papel tão impactante na construção da consciência individual, poucos são aqueles capazes de dialogar com o oposto de forma harmônica e receptiva. Poucos são aqueles capazes de exercer alteridade. Diversos conflitos se iniciam com a premissa de diálogo em prol de uma solução, mas na realidade são apenas desfiles de posicionamentos que nunca tiveram o interesse de reconhecer um ideal diferente do seu ou de ao menos compreender o que leva o outro a optar por ter um posicionamento diferente.
Essa falta de compreensão, falta de alteridade, é um dos maiores desafios de uma sociedade tão polarizada e infelizmente vem acompanhada da falta de senso crítico. Isso pois, uma vez que não há disposição para acolher o diferente a fim de entender aquele posicionamento, não há disposição para reconhecer falhas no próprio raciocínio porque isso poderia demonstrar fraqueza nesse desfile de egos.
Logo, os conflitos sociais estão fadados ao fracasso enquanto a importância do outro não for reconhecida e acolhida em prol do verdadeiro diálogo. Claro, entende-se que conflitos sociais respeitam o mínimo de humanidade e não ensejam afrontas aos direitos humanos, pois caso o fizessem seriam apenas discursos de ódio e não opiniões concretas. Mas, ainda com essa base comum, há muito espaço para divergências que não encontram solução pela falta de capacidade de acolhimento e questionamento.
É necessário um exercício que dispa os discursos do ego e abra espaço para a alteridade enquanto exerce forte crítica tanto ao posicionamento pessoal quanto ao contrário. É necessária a prática do debate. O debate universitário competitivo é justamente o treino da fala e, principalmente, da escuta, pois nesse cenário internacional não há espaço para posicionamentos alienantes ou lábia carismática, há apenas espaço para argumentos e debatedores.
O debate universitário competitivo, prática acadêmica data de 1700 e com competições mundiais desde 1900, se caracteriza por ser um esporte intelectual que estabelece um tema de relevância social e posiciona os debatedores independentemente de suas ideologias pessoais. Cria-se uma estrutura que privilegia a alteridade e se embasa na capacidade crítica dos competidores.
No debate, o tema é dado com apenas 15 min de antecedência e os debatedores se dividem em duplas cujas posições são definidas aleatoriamente, a favor ou contra esse tema. Ou seja, um bom debatedor deve acompanhar as nuances políticas, jurídicas e sociais do mundo e estar preparado para: ser questionado sobre elas, forçando o exercício cotidiano de cidadania em cada estudante; ter que defender uma visão que não necessariamente corresponde com o seu ideal pessoal; e elaborar em trabalho conjunto a forma de argumentar a favor dessa visão.
Quando começa, cada orador terá apenas 7 minutos para expor o porquê sua posição é a correta e responder a todos os pontos contrários trazidos pelos outros competidores. Essa é uma experiência em que o senso crítico e a capacidade argumentativa atingem seu auge, pois os debatedores da dupla devem estar preparados para ajudar a argumentação um do outro e responder de maneira objetiva como seu caso ganha o debate.
Ao final, uma mesa de estudantes que exercem o papel de eleitor médio, sendo forçados também a se descaracterizar de suas visões pessoais, julgam qual argumento foi melhor construído. Para a deliberação do vencedor ocorre um segundo debate dentro dessa mesa de adjudicação que terá a responsabilidade de em conjunto argumentar frente todos os debatedores o porquê do seu julgamento cumprindo um dever de fundamentação.
E embora tudo seja um ambiente simulado do parlamento britânico, a resiliência e a aprendizagem vão para além do ambiente de debate trazendo para cada estudante crescimento pessoal. O debate universitário competitivo se configura como o espaço seguro para discussões sociais e o treino de alteridade.
O debate, embora tenha começado somente em 2010 no Brasil e somente em 2021 na UnB, é a esperança de que um dia as ideias sejam postas de maneira aberta ao diferente, que o outro seja um dia acolhido pelo individual. A alteridade e o senso crítico se constroem no debate universitário competitivo.
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[1] Graduanda em Direito pela UnB, Fundadora da Hermenêutica – Sociedade de Debates da Universidade de Brasília, Coordenadora de Produção de Conteúdo da UnB 2030 e vencedora de duas edições consecutivas do Prêmio Destaque na premiação ESDRAS em Ensino Jurídico.