Por João Victor Figueiredo Soares * e Thiago Amorim **
1. A greve:
De acordo com Noemia Porto e Bruno de Moura [1] “a greve, historicamente, representa o instrumento eficaz para que os trabalhadores, da iniciativa privada ou do setor público, possam traduzir suas demandas por melhores condições de vida e de trabalho”. Segundo Márcio Túlio Viana [2], a greve também é uma forma de trabalhadores compartilharem entre si, com a sociedade e com o empregador “o que se passa entre as quatro paredes da empresa”. Dessa forma, atesta-se que o exercício deste direito é um mecanismo indispensável para garantir o equilíbrio das relações laborais e a proteção do direito do trabalhador.
Entretanto, a greve vai além das questões trabalhistas, não se restringindo apenas às discussões sobre empregos, estrutura ocupacional e rendimentos, mas também, abrangendo questões da esfera política, econômica e social, tornando-se parte do interesse público, como explica Viana [3]:
[…] além das relações de trabalho. É curioso notar que, no mesmo momento em que a fábrica deixa de produzir mercadorias, a greve – que é também o seu contrário – passa a produzir direitos. E direitos não só trabalhistas, em sentido estrito, mas humanos, em sentido amplo.
Flávia Souza Máximo Pereira [4] vai ser referenciar à greve como sendo o “direito de luta” capaz de canalizar as contra vozes fundamentais “para a verdadeira democracia plural”. Neste contexto, a autora destaca a importância da greve em oposição aos sistemas totalitários e autoritários, sendo a força da luta dos trabalhadores determinante para a conquista da democracia em países como Itália e Brasil.
Por seu caráter fundamental, o direito de greve é reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho e está vinculado à liberdade sindical e o direito à sindicalização a partir da Convenção nº 151. Outra convenção internacional que vai tratar sobre o direito de greve é o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [5]. Em âmbito nacional, o direito de greve está previsto na Constituição Federal em seu artigo 9º e 37º (inciso VII).
2. Percursos constitucionais do direito de greve no Brasil:
De acordo com Godoy e Machado [6], o Estado Novo, na década de 1930, ficou marcado pela emergência dos direitos trabalhistas no Brasil. No entanto, em 1932, a greve foi proibida por medida de segurança nacional. O artigo 139, da Constituição de 1937, qualifica a greve e o lockout como recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital. Já o Código Penal de 1940 criminalizou a greve. Na redação original da Consolidação das Leis Trabalhistas, os artigos 723 e 724 preveem a greve como uma conduta delituosa. Dessa forma, percebemos que a ideia da greve como “caso de polícia” foi muito presente nos primeiros passos legislativos do Brasil.
Apenas na Constituição de 1946, que se institui a possibilidade de um direito de greve que seria regulado por lei específica – dando origem, posteriormente, ao Decreto-Lei nº 9.070/46 que garantiu o direito de greve no Brasil. No entanto, o decreto restringiu a participação de trabalhadores das “atividades fundamentais” nos movimentos paredistas. Em 1964, em meio a ditadura militar, surge a primeira “Lei da Greve” que impôs severas restrições aos grevistas [7].
Posteriormente, o artigo 158 da Constituição de 1967, assegurou o direito de greve aos trabalhadores privados, mas não aos servidores públicos. Outros mecanismos legislativos também seguiram o mesmo entendimento, como o Decreto-Lei nº1.632/78 e a Lei nº 6.620/78.
No mesmo período, enquanto o Brasil vivenciava uma violenta Ditadura Militar, cresce no ABC Paulista um movimento promovido por trabalhadores contra a exploração do trabalho, a legislação militar opressiva, o desmonte da ação sindical e o sindicalismo atrelado [8]. Este movimento vai colocar a greve no centro do debate político nacional o que fará, consequentemente, que o governo militar utilize condutas violentas para tentar asfixiar as mobilizações, que em força oposta, vai se alastrar cada vez mais por todo o país, reivindicando dignidade no trabalho e democracia.
Finalmente, após muita luta, a Constituição promulgada em 1988, posterior à ditadura militar, prevê a garantia de greve aos trabalhadores do setor privado e aos servidores civis do setor público. No entanto, o exercício do direito por estes últimos estaria condicionado à edição de lei específica, conforme previsto no artigo 37, inciso VII da Carta Magna.
Trinta e três anos após a promulgação da Constituição Democrática, o legislativo ainda não regulamentou o exercício deste direito fundamental aos servidores públicos, o que representa uma verdadeira barreira aos trabalhadores deste setor e cria um cenário de insegurança dentro do direito trabalhista brasileiro. Nas palavras de Noemia Porto e Bruno de Moura [9]: “O Texto Constitucional […] apenas inaugurou incontestáveis disputas em torno de seu alcance e significado”.
A greve no serviço público enfrenta um grande dilema: o principal fundamento da ação da greve é a paralisação da prestação de serviços. Por outro lado, o princípio da continuidade surge da obrigatoriedade da Administração em permanecer desempenhando suas atividades em prol do interesse público. Dessa forma, surge uma tensão entre o exercício do direito de greve e o princípio da continuidade do serviço público [10].
Diante a mora legislativa, o judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, ficou responsável por tratar das questões resultantes desta disputa. Dessa forma, o Tribunal Constitucional decidiu a partir dos julgamentos dos Mandados de Injunção nºs 670/ES, 708/DF e 712/PA que a greve dos servidores públicos será regulada, com as devidas alterações, pela lei que regula a greve no setor privado: a Lei 7.783/89.
No entanto, a atuação do Supremo Tribunal Federal nas questões relacionadas à greve vem se mostrando prejudicial aos trabalhadores do setor público. Segundo Porto e Moura [11]:
Ao longo de mais de 30 anos, o Poder Judiciário foi palco de diversas restrições ao direito de greve e interveio em incontáveis paralisações. É como se da repressão policial da época da ditadura, se passasse a um período de restrição judicial, mesmo no contexto da constituição democrática.
3. O direito de greve dos servidores públicos e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
A década de 1990 marca o início de uma série de medidas que vão contribuir para a precarização das relações de trabalho. Neste contexto, a crescente flexibilização legislativa conduziu as relações de trabalho no Brasil a arranjos contratuais cada vez mais frágeis em relação à proteção de direitos sociais. Na última década, este processo começa a se apresentar com maior rapidez, afastando a perspectiva de proteção constitucional ao trabalho e tornando as relações laborais reféns do capitalismo voraz [12] e neste sentido, o poder judiciário, que deveria atuar como protetor da ordem constitucional, vai desempenhar um papel central.
Neste contexto, o STF, por meio de sua jurisprudência, se apresenta como uma “sala de fundo” do processo de precarização do trabalho, dando aval à destruição de princípios e garantias sociais, principalmente em relação ao direito coletivo do trabalho e aos movimentos sindicais. Nesta dinâmica de “desconstitucionalização” do Direito do Trabalho, a interpretação do Estado e do interesse público, por parte do Supremo Tribunal, foi reconstruída a partir da lógica neo-liberal, corrompendo o significado dos princípios gerais da Administração Pública, estampados no artigo 37 da CF/88, com o objetivo de alinhar o texto constitucional aos interesses do mercado [13].
Para entender melhor a situação, é possível analisar três julgados que marcam este processo de desconstrução do direito fundamental à greve na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O primeiro, trata-se do Recurso Extraordinário 693.456/RJ que discutiu acerca da constitucionalidade de suspensão de pagamento de vencimentos à servidores que aderiram à movimentos grevistas. Neste caso, a tese firmada foi que a administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, logo no princípio de sua deflagração, antes da situação fática ser discutida pelo judiciário.
O segundo é a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.335/BA que trata da constitucionalidade do decreto do governo da Bahia que regula o direito de greve dos servidores públicos onde a maioria da corte entendeu que tal decreto era constitucional já que o dispositivo normativo não estaria tratando especificamente do direito de greve dos servidores públicos, mas sim, das medidas a serem tomadas pela administração diante casos de paralisação dos servidores públicos estaduais. Dentre estas medidas, pode-se destacar a instauração de processo administrativo em desfavor dos servidores que persistirem no afastamento; o desconto dos vencimentos e vantagens dos dias paralisados; a contratação de pessoal, por tempo determinado e em caráter de excepcional interesse público e a exoneração dos ocupantes de cargo temporário e função gratificada que participarem do movimento grevista.
E por último, o Recurso Extraordinário com Agravo 654.432/GO onde a Corte decidiu pela vedação absoluta ao direito de greve dos servidores da polícia civil, independente da função que exerçam dentro do órgão de segurança.
Nos três casos, a Suprema Corte adotou posições que ameaçam a proteção do direito de greve e deturpam o sentido constitucional da paralisação do trabalho. Em análise aos votos vencedores percebe-se uma moldagem da administração pública a partir dos interesses do mercado, observada através da frequente evocação do princípio da eficiência e o uso de outros termos próprios do direito comercial [14].
Outro princípio importante da administração pública que é corrompido pela ótica neoliberal da Corte é o do “interesse público”: nos três julgamentos, este conceito é tratado como um modelo intocável e universal de atuação que não apenas desconsidera as normas trabalhistas mas também, se opõem a elas. Neste sentido, percebe-se um esforço contínuo de alguns Ministros para caracterizar a greve feita pelos servidores públicos como um instrumento de reivindicação individual, afastado da coletividade e consequentemente, alheia ao interesse público.
4. Considerações finais:
Nos três acórdãos é perceptível a existência de uma argumentação a fim de tratar a greve como um ato de ataque ao serviço público, beirando uma conduta maquiavélica dos trabalhadores que deve ser desestimulada pelo administrador por meio dos ônus: o desconto salarial, processos disciplinares ou até a exoneração.
As decisões dos três julgados demonstram um grande esforço que o Tribunal Constitucional vem realizando para desmobilizar o direito de greve, por meio de argumentações próprias que não encontram fundamento no texto constitucional e a raiz deste problema está na mora legislativa. Enquanto não existir lei própria que regule o direito fundamental de greve dos servidores públicos, estes, vão continuar suscetíveis às decisões do judiciário, em uma posição de completa insegurança.
É importante relembrar que as árduas lutas de trabalhadores de todo o mundo por dignidade e democracia se deram a partir da greve, deste modo, inviabilizar o exercício deste direito, nos coloca novamente em um cenário de repressão e desigualdades, impostas por um regime que impedia qualquer reivindicação justa por direitos.
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* Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Observatório da Reforma Trabalhista no STF. E-mail: jvfsoares011@gmail.com
** Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – CEUB. Membro do Observatório da Reforma Trabalhista no STF. E-mail: thiagoamorimadvo@gmail.com
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[1] PORTO, Noemia Aparecida Garcia; MOURA, Bruno do Valle Gaze de. A greve como direito: as (re)significações do Supremo Tribunal Federal. Revista Processus de Políticas Públicas e Desenvolvimento Social, a. I, v. 1, n. 2, jul./dez, 2019.
[2] VIANA, Marcio Túlio. Da Greve Ao Boicote: Os Vários Significados E As Novas Possibilidades Das Lutas Operárias. Revista do TRT da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 49, n. 79, jan/jun 2009, p. 107.
[3] Ibid.p, 108.
[4] PEREIRA, Flávia Souza Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo-brasileiro para a construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.
[5] GODOY, Miguel Gualano de; MACHADO, Sidney. O STF e a greve no serviço público: os casos dos dias de greve. In: DUTRA, Renata; MACHADO, Sidney (orgs.). O Supremo e a Reforma Trabalhista: a construção jurisprudencial da Reforma Trabalhista de 2019 pelo Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
[6] Ibid, p. 276.
[7] Ibid, p. 277.
[8] ANTUNES, Ricardo. O Novo Sindicalismo no Brasil. Campinas: Pontes, 1995.
[9] PORTO, MOURA. op cit, p. 111.
[10] PORTO, MOURA. op cit, p. 109.
[11] PORTO, MOURA. op cit, p. 111.
[12] CANTANHÊDE, G.R.; DUTRA, R.Q.; SOARES, J.V.F. O trabalho na Constituição dos Vencidos. 2022, no prelo.
[13] COUTINHO, Aldacy Rachid. Reforma trabalhista brasileira e o Supremo Tribunal Federal: as escolhas trágicas? Revista da Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas, v. 21 n. 41, 2018.
[14] Ibid.