Por Anna Irene Nunes Mendes de Paula*
A justiça contemporânea se encontra no entrelaçamento de três processos cruciais: destradicionalização, neoliberalização e democratização. Jacques Commaille propõe uma teoria de sociologia política da justiça que busca compreender essas dinâmicas e suas implicações para o seu papel na sociedade. A crescente judicialização das relações sociais e políticas é um fenômeno que merece atenção especial, uma vez que redefine as interações entre o poder judiciário, legislativo e executivo, e influencia significativamente a vida social e econômica.
As expressões “judicialização da sociedade” e “judicialização da política” refletem a ampliação do papel da justiça na gestão das relações sociais, no tratamento de problemas sociais e na regulação das relações econômicas. Este fenômeno é evidenciado pelo aumento de litígios submetidos à jurisdição e pela criação de novas formas de aplicação dessa, como as jurisdições penais internacionais. A literatura internacional sobre o tema sugere que a judicialização expressa um crescimento do poder dos tribunais em comparação com o poder legislativo e executivo, resultando em uma possível transição de uma democracia para uma “juristocracia” ou “courtocracia” .
Violaine Rousse¹ argumenta que a judicialização das sociedades ocidentais, embora amplamente discutida, deve ser entendida como uma categoria prática que se torna uma profecia auto-realizável. Jérôme Pélisse, por sua vez, indica que a referência à judicialização nas relações de trabalho pode ser um desafio nas relações de poder entre agentes. Em termos gerais, é necessário investigar se há uma defasagem entre a realidade do fenômeno e os discursos que o cercam.
A função política da justiça é um aspecto central que emerge na discussão sobre judicialização. A crescente influência da justiça na política pode ser observada através da tendência de “politicization of judging” e “judicialization of politics”. Exemplos notáveis incluem o processo de impeachment do presidente Clinton nos Estados Unidos e a aceitação crescente de crimes internacionais pelos tribunais, como no caso do juiz espanhol Balthazar Garzon e do dossier Pinochet .
Christine Rothmayr e Audrey L’Espérance questionam a interferência da justiça nas políticas públicas, enquanto Pierre Yves Condé e Sandrine Lefranc destacam a criação de jurisdições supranacionais e comissões de verdade e reconciliação. Esses desenvolvimentos ilustram a inserção crescente da justiça no meio político, reforçando a ideia de um papel político significativo nas sociedades contemporâneas.
A redefinição das relações entre política e justiça está intimamente ligada ao movimento de destradicionalização, conforme proposto por Ulrich Beck². A destradicionalização resulta na crise do convencionalismo e na emergência de uma “segunda modernidade” ou “sociedade líquida”, marcada pelo declínio das grandes instituições e pela reavaliação das ideologias. Nesse contexto, a justiça se torna uma arena de participação e contradição entre agentes públicos e privados .
A destradicionalização favorece duas lógicas principais: neoliberalização e democratização. Essas lógicas, embora contraditórias, formam um sistema mútuo que define as relações entre justiça e política. A neoliberalização promove a lógica de mercado e a devolução do poder a organizações privadas, enquanto a democratização busca a ampliação da participação democrática e a proteção dos direitos dos cidadãos. Essa tensão é fundamental para entender as transformações internas do escopo político e a função política da justiça.
Outrossim, a neoliberalização da justiça se manifesta na transformação do direito em um instrumento técnico, orientado pela racionalidade instrumental e pelas lógicas de mercado. Marianne Constable³ critica essa tendência, argumentando que o direito moderno organiza suas práticas por lógicas de mercado, o que leva à devolução do poder a organizações privadas e para-públicas especializadas em contabilidade, avaliação e gerência. Esse processo resulta na redução do direito a uma técnica, desprovida de um compromisso genuíno com a justiça .
A neoliberalização também se reflete na adoção de procedimentos para-judiciais por parte das instituições públicas, como a criação de jurisdições supranacionais e comissões de verdade e reconciliação. Esse movimento sugere uma expansão do poder judicial em detrimento do poder legislativo, fortalecendo a posição dos tribunais e enfraquecendo a capacidade dos parlamentos de legislar de maneira eficaz.
Por outro lado, a democratização da justiça busca ampliar a participação democrática e assegurar que a justiça funcione como uma arena para a defesa dos direitos dos cidadãos contra o poder do Estado. Esse processo é evidente em movimentos como a judicialização das políticas públicas, onde a justiça é usada como ferramenta para implementar mudanças sociais e proteger os direitos fundamentais. A Colômbia, por exemplo, oferece um exemplo de pluralidade de formas de justiça, incluindo a justiça estatal, de guerrilha, popular e comunitária, refletindo a complexidade do contexto político e social do país .
A democratização também se manifesta na referência crescente à justiça no espaço público, onde a justiça se torna um símbolo de luta contra a injustiça e um meio de mobilização social. Essa tendência é observada em diversos países, onde a justiça é usada como um recurso estratégico nas lutas dos agentes sociais contra o Estado e o poder político.
Em síntese, a sociologia jurídica, ao abordar tais processos, revela a complexidade e as contradições inerentes ao papel da justiça na sociedade contemporânea. A judicialização da sociedade e da política, longe de ser um fenômeno linear, reflete uma tensão contínua entre a lógica de mercado e a ampliação da participação democrática. A função política do Direito, portanto, deve ser entendida como uma arena de disputas e negociações que redefine constantemente as relações de poder e a luta pelos ideais democráticos. Essa perspectiva nos permite compreender melhor as transformações atuais e as possibilidades futuras em um mundo em constante mudança.
* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-presidente e membro do Conselho de Representantes. Colaboradora-discente do projeto de extensão HABEAS LIBER, sediado na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Foi monitora de Teoria Geral do Processo 2, ministrada pelo docente Vallisney de Souza Oliveira e Sociologia Jurídica, por Alexandre Veronese na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Coordenadora e pesquisadora do Centro de Estudos Constitucionais Comparados (CECC/UnB) e Pesquisadora voluntária do grupo de pesquisa ‘Direito, gênero e Famílias (CNPq/UnB).
[1] ROUSSEL, V. La judiciarisation du politique, réalités et faux-semblants. In: Mouvements, n°29, p. 13-18, set.-out. 2003.
[2] BECK, U. La société du risque. Sur la voie d’une autre modernité. Paris: Aubier, 2001.
[3] CONSTABLE, M. (2005). Just silences: The limits and possibilities of modern law. Princeton, NJ: Princeton University Press