O Tema 1046 e a prorrogação da jornada em atividade insalubre

Por Jurema Costa de Oliveira Silva*

O Supremo Tribunal Federal – STF, por ocasião do julgamento do ARE 1.121.633 (Tema 1046 da tabela de repercussão geral) [1], reconheceu a constitucionalidade dos instrumentos coletivos nos quais é pactuada a limitação ou a supressão de direitos trabalhistas relativamente disponíveis. No leading case, discutiu-se a possibilidade de a norma coletiva autorizar a supressão do pagamento das horas in itinere, em período anterior à alteração promovida pela Lei nº 13.467/2017, por se tratar de parcela então assegurada em dispositivo de lei.

É inequívoco que as decisões proferidas pelo STF, nos feitos processados sob o rito da repercussão geral, são vinculantes e, por conseguinte, de observância obrigatória pelos demais órgãos jurisdicionais. Trata-se do exercício da função nomofilácica atribuída à Corte, destinada a garantir a unidade na interpretação das normas constitucionais e a assegurar a concretização dos princípios da segurança jurídica e da isonomia.

Destaca-se, contudo, que desde a decisão proferida pelo STF no processo em referência, não houve a pacificação da jurisprudência, tampouco a uniformização do entendimento acerca de quais direitos poderão ser amplamente negociados pelos entes coletivos. Ao revés, verifica-se que, questões anteriormente consolidadas no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho – TST, voltaram a ser questionadas.

Esse dissenso jurisprudencial pode ser atribuído à abrangência da tese fixada no Tema 1046, na medida em que ela não se restringiu a autorizar a limitação ou a supressão das horas in itinere – parcela objeto da controvérsia -, passando a reconhecer a constitucionalidade da negociação de “direitos trabalhistas”, que poderá, inclusive, ultrapassar as balizas estabelecidas na legislação, exceto em relação aos direitos de indisponibilidade absoluta.

Cumpre ressaltar que o STF, em sede de recurso extraordinário, não está autorizado a decidir o direito em tese, distanciado das “questões constitucionais discutidas do caso”, a fim de firmar entendimentos genéricos a serem aplicados nos demais feitos, conforme previsto no art. 102, § 3º, da Constituição Federal. Desse modo, a despeito de a tese jurídica firmada no Tema 1046 aparentemente gozar de abstração e generalidade, a sua análise não pode ser desconectada das premissas examinadas no leading case.

Não se pode entender, portanto, que a Corte Suprema tenha conferido ampla liberdade para a celebração de instrumentos coletivos, na medida em que existem limites estabelecidos em normas constitucionais, em tratados e convenções internacionais incorporados ao nosso ordenamento jurídico, bem como em normas infraconstitucionais assecuratórias de garantias mínimas aos trabalhadores, conforme reconhecido pelo próprio relator do ARE 1.121.633. 

Desse modo, a aplicação prospectiva da tese fixada no Tema 1046 demanda a prévia identificação, pelos demais órgãos jurisdicionais, da natureza do direito objeto da controvérsia, a fim de aferir a validade da negociação coletiva entabulada. Não se trata de tarefa fácil, razão pela qual existe divergência entre os julgadores acerca da disponibilidade de alguns direitos trabalhistas, os quais aparentemente estariam situados em uma zona cinzenta.

Uma das questões antes pacificadas e que passou a ser objeto de divergência no âmbito do TST diz respeito à possibilidade de prorrogação da jornada em atividade insalubre, nas hipóteses em que não há prévia autorização da autoridade competente. Esse Tribunal havia consolidado o seu entendimento no sentido de não reconhecer a validade da norma coletiva em tais circunstâncias (Súmula nº 85, item VI).

Após o julgamento do Tema 1046, algumas Turmas do TST [2] decidiram pela superação do posicionamento preconizado no item VI da Súmula nº 85, reconhecendo a validade da negociação coletiva na hipótese nela prevista. Defendem que a prorrogação do labor em atividade insalubre não se trata de direito indisponível, nos termos do preceito contido no inciso XIII do artigo 611-A da CLT, inserido pela Lei nº 13.467/2017, o qual autoriza, por meio de norma coletiva, a “prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho”.

O item VI da Súmula nº 85 foi editada a partir da interpretação conferida ao art. 60 da CLT [3], segundo o qual quaisquer ajustes para a prorrogação da jornada em atividades insalubres demandam “licença prévia das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho”, as quais realizarão os exames necessários, além de verificarem os métodos e os processos de trabalho adotados.

É inegável que o tempo diário de labor em atividade insalubre impacta diretamente a saúde do trabalhador, motivo pelo qual existe norma regulamentar definindo o “Limite de Tolerância” [4] de sua exposição ao agente nocivo.

A Constituição Federal de 1988 reconheceu o direito social fundamental dos trabalhadores à redução dos riscos inerentes à atividade laboral e ao meio ambiente do trabalho equilibrado, atribuindo ao empregador a obrigação de efetivá-lo e ao Poder Público o dever de regulá-lo, bem como de fiscalizar o seu cumprimento.

Da leitura do texto constitucional é possível constatar a preocupação do Poder Constituinte originário em resguardar a saúde e a segurança dos trabalhadores, ao garantir-lhes, como direito fundamental, a adoção de medidas que venham a reduzir “os riscos inerentes ao trabalho”, nos termos do artigo 7°, XXII.

A opção pela defesa do bem-estar e da integridade física e psíquica do trabalhador, na Constituição Federal, encontra reforços na disposição inserta em seu artigo 170, segundo o qual a ordem econômica, na consecução dos seus objetivos, deve assegurar a todos existência digna, observados os ditames da justiça social e os princípios previstos em seus incisos, dentre os quais se destaca o da função social da propriedade e da defesa do meio ambiente.

De igual modo, o art. 193 da Constituição Federal, ao inaugurar o título referente à ordem social, traz previsão expressa no sentido de que essa deve ter como primado o trabalho e, como objetivo, a garantia do bem-estar e da justiça social.

Denota-se, pois, que o arcabouço principiológico da Constituição Federal, no que concerne às questões sociais e econômicas, encontra-se centrado nas garantias da existência digna, da valorização do trabalho, do bem-estar social e da justiça social, com base nas quais a legislação infraconstitucional deve ser compreendida.

É cediço que as empresas possuem responsabilidade para com a sociedade, de modo que o seu objeto não se restringe à obtenção de lucro, devendo também desempenhar sua função social, cujos pressupostos, na lição de Moreira e Magalhães [5], seriam a efetivação dos direitos fundamentais trabalhistas, a adoção de medidas para o oferecimento de ambiente laboral hígido e saudável, bem como o respeito à dignidade do trabalhador.

O inciso VIII do art. 170 da Constituição Federal, ao prever a necessidade de defesa do meio ambiente pela ordem econômica, o faz levando em consideração os seus diferentes aspectos, quais sejam, o natural, o cultural e o laboral. Essa é a compreensão que se extrai dos arts. 200, VIII, e 225 da Constituição Federal, os quais regulam o tema referente ao meio ambiente.

Na tutela do meio ambiente laboral, em que há necessidade de garantir a integridade física e psíquica dos trabalhadores, devem ser aplicadas as normas e os princípios de natureza ambiental, em especial os princípios da prevenção e da precaução, a fim de reduzir ou evitar a ocorrência de danos ambientais e garantir a efetividade do direito constitucional ao meio ambiente equilibrado, nos termos do art. 225 da Constituição Federal.

A utilização de medidas preventivas e acautelatórias mostra-se mais efetiva na redução dos riscos laborais, porquanto prioriza a adoção de “medidas que evitem o nascimento de atentados à qualidade de vida do trabalhador no meio ambiente laboral” [6]. A OIT, inclusive, no artigo 4º da Convenção nº 155 [7], ratificada pelo Brasil, estabeleceu a obrigação de os Estados Membros adotarem política nacional em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores, objetivando a redução dos riscos próprios ao ambiente laboral, bem como a prevenção de acidentes.

A exigência prevista no art. 60, caput, da CLT, nessa perspectiva, representa verdadeira expressão dos princípios da prevenção e da precaução, ao condicionar a validade da prorrogação da jornada em atividade insalubre à prévia autorização da autoridade competente, a qual terá condições de examinar os riscos para a saúde do trabalhador, bem como os cuidados adotados pelos empregadores para proteção contra a exposição ao agente insalubre.

Indaga-se, portanto, se os entes coletivos, por ocasião da celebração de normas coletivas autônomas, terão a mesma capacidade técnica de aferir os riscos à saúde do trabalhador ou se a saúde do trabalhador é um direito relativamente disponível. A resposta é evidente!

Não se pode admitir a transação da saúde do trabalhador, mesmo que a ele sejam oferecidas outras vantagens no instrumento coletivo. Os danos produzidos serão suportados pelo trabalhador, pelo empregador – em razão de sua responsabilidade pelas doenças ocupacionais – e por toda a sociedade, com o aumento dos custos da Previdência Social em razão do pagamento de benefícios decorrentes de doenças ou aposentadorias por invalidez.

Os postulados constitucionais e legais que garantem o direito dos trabalhadores ao meio ambiente equilibrado e à redução dos riscos inerentes ao trabalho não se enquadram como normas de caráter particular integradas ao contrato laboral. A bem da verdade, são normas que apresentam nítido caráter ambiental e sanitário, destinadas a salvaguardar os direitos indisponíveis dos trabalhadores à saúde e à segurança, o que evidencia o interesse público na sua tutela.

Nesse contexto, tendo em vista que a saúde do trabalhador é direito absolutamente indisponível, não é possível concluir, com base na tese fixada no Tema 1046, pela constitucionalidade da norma coletiva que disponha sobre prorrogação de jornada em atividade insalubre, sem a autorização da autoridade competente. No mesmo sentido, é patente a inconstitucionalidade do inciso XIII do artigo 611-A da CLT, de modo que os Tribunais deveriam, em caráter incidental e por meio de composição Plenária, examinar a sua constitucionalidade.

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Analista Judiciário do Tribunal Superior do Trabalho. Assessora de Ministro. Pós-graduada em Direito Constitucional do Trabalho — UNB/TST. Mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas no Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Membro do Observatório da Reforma Trabalhista no STF. E-mail: juremacosta@yahoo.com.br

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[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 1121633, Relator: Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, divulgado no DJE de 27.4.2023.

[2] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Ag-RR-129-80.2019.5.12.0001, 4ª Turma, Relator: Ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 15.9.2023.

[3] Não se desconhece que o art. 60, caput, da CLT é objeto de questionamento perante o STF, na ADPF nº 422, na qual a Confederação Nacional da Indústria – CNI postula a declaração de que o supracitado preceito não foi recepcionado pela Constituição Federal (5º, LIV, 7º, XIII, XXII e XXVI, e 8º, I e III). Essa ação, contudo, ainda está pendente de exame, de modo que o art. 60 permanece válido e plenamente aplicável.

[4] O item 15.1.5 da Norma Regulamentar nº 15 do MTE define “Limite de Tolerância” como a concentração ou a “intensidade máxima ou mínima, relacionada com a natureza e o tempo de exposição ao agente, que não causará dano à saúde do trabalhador, durante a sua vida laboral” BRASIL. Ministério do Trabalho e Previdência. Portaria MTP nº 671, de 8 de novembro de 2021. (Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-359094139. Acesso em: 2.10.2023).

[5] MOREIRA, Adriano Jannuzzi e MAGALHÃES, Aline Carneiro. A prevenção como forma de combater os acidentes de trabalho e doenças ocupacionais e de promover a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho. In Revista LTr: legislação do trabalho, v. 76, n. 12, p. 1.442/1.451, dez. 2012, p. 1.447.

[6] PADILHA, Norma Sueli. Meio ambiente do trabalho: um direito fundamental do trabalhador e a superação da monetização do risco. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 79, n. 4, p. 173/182, out./dez. 2013.

[7] Organização Internacional do Trabalho. Convenção n° 155 – Convenção sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores, 1981. Ratificada pelo Brasil em 18 de maio de 1992. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236163/lang–pt/index.htm. Acesso em: 14.1.2020.

 

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