Por Melissa Braga e Ana Martha dos Santos
Dados genéticos na pesquisa científica
As conquistas da ciência médica sempre envolveram desafios éticos no que diz respeito ao uso de seres humanos e animais na experimentação. Os desafios aumentam de proporção no campo de Genética Médica que ao manipular genes, com o propósito de diagnosticar, tratar e controlar os distúrbios genéticos e hereditários, envolvem não só o paciente, mas toda a sua família. A Genética Médica Populacional, por sua vez, estende esses domínios na medida em que abrange a comunidade, a saúde pública, a microevolução de uma determinada população.
Em ambas os casos, os dados genéticos são insumo da pesquisa científica para a melhor compreensão entre a relação da herança biológica e a saúde do indivíduo, no desenvolvimento de tratamentos, diagnósticos e subsídios para políticas públicas. Como todo dado pessoal, os dados genéticos possuem valor econômico e, naturalmente, despertam interesse de diversos setores da economia, incitando reflexões éticas e legais sobre seu acesso e manipulação.
A depender da exclusividade do acesso e do uso a esses dados na pesquisa científica, a empresa desenvolvedora e detentora de uma determinada tecnologia decorrente dessa pesquisa pode operar em condições monopolísticas, interrompendo ou reduzindo a produção de um bem de consumo essencial para uma determinada população ou grupo, como por exemplo um fármaco, sem justa causa, bem com praticar preços abusivos, colocando em risco aqueles que dela dependam.
O acesso a dados relacionados a predisposições genéticas também podem ser ferramentas para a discriminação, na medida em que, em uma visão reducionista, estabelecem a genética como o único componente determinante para a expressão de determinadas características do indivíduo, desconsiderando fatores educativos, ambientais, pessoais (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, apud HAMMERSCHMIDT, 2008).
Há, portanto, um lado abusivo relacionado ao uso de dados pessoais genéticos que merece tutela pelo Estado a fim de garantir seu uso para fins nobres como, por exemplo, a pesquisa científica voltada para políticas públicas ou desenvolvimento de medicamentos e tratamentos acessíveis à população no geral.
A intervenção do Estado é, portanto, essencial para assegurar o interesse coletivo e do titular no tratamento de dados, especialmente diante do desconhecimento da população brasileira sobre os riscos relacionados ao consentimento para o uso de seus dados e uma consequente banalização do consentimento pelo titular, que inconsequentemente aceita todos os termos e condições para ter acesso a determinado serviço.
Diante desse contexto, este trabalho faz uma reflexão sobre os limites legais relacionados ao uso de dados genéticos em pesquisa científica. Para tanto, trará em pauta as disposições sobre a matéria na Constituição Federal e em normas infraconstitucionais referentes ao tema.
A privacidade e os limites da pesquisa genética
Para Bobbio (2004), a exigência que justifica a quarta geração dos direitos fundamentais é a evolução das pesquisas biológicas, relacionadas com a manipulação do patrimônio genético de cada indivíduo. O ilustre doutrinador tem uma visão pessimista sobre o assunto, afirmando que os efeitos da pesquisa biológica são traumáticos e questiona a sociedade sobre os limites dessa manipulação genética. De certo não há um limite para o progresso científico, desde que a ética seja o elemento norteador desses trabalhos.
Na busca pelo equilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e o direito do indivíduo de controlar e proteger seus dados pessoais, autoridades nacionais e internacionais, desde longa data, têm imposto limites para a realização de estudos e pesquisas na área médica.
No âmbito internacional, destaca-se pelo pioneirismo e importância a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, que proclama princípios orientativos para as decisões ou práticas relacionadas à medicina ou ciências da vida. Em especial o art. 9°, sobre o respeito ao caráter confidencial da vida privada das pessoas e à confidencialidade das informações que lhes dizem pessoalmente respeito, restringindo o uso e difusão desses dados e informações para outros fins que não aqueles para que foram coligidos ou consentidos (UNESCO, 2006).
Para além dos princípios éticos que guiam essas pesquisas, a vontade e a integridade do indivíduo que faz parte desses trabalhos permeiam essas normativas. Ganha importância a autodeterminação informativa, um fundamento com relação próxima com a privacidade, na medida que dá ao indivíduo o poder de estabelecer o que, quando, como e sob quais condições deseja tornar público algum aspecto ou fato de sua vida privada.
O tratamento dos dados genéticos sensíveis, por sua vez, requer atenção especial na medida em que têm potencial de expor não apenas o indivíduo, mas também sua família a uma condição vexatória ou constrangedora de algum aspecto hereditário ou de saúde.
Pesquisa com dados sensíveis na a legislação brasileira
A Emenda Constitucional n° 115 de 2022 instituiu no rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5° da Constituição Federal de 1988, o inciso LXXIX assegurando “o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais” (BRASIL, 1988). Anteriormente a essa emenda, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, Lei n° 13.709/2018 (BRASIL, 2018), havia sido promulgada com o propósito de estabelecer os princípios, os requisitos, as condições, as responsabilidades, as medidas de segurança e as instituições para regular e disciplinar os dispositivos da Lei.
Os dados genéticos são, segundo a LGPD, dados pessoais sensíveis. Esses dados integram uma lista na qual o legislador deu um tratamento diferenciado, na forma de cautelas extras a serem observadas pelo controlador e operador, para mitigar os riscos em relação às liberdades fundamentais da pessoa como, por exemplo, a discriminação ou segregação do titular. As hipóteses do tratamento desses dados constam no art. 11 da LGPD. Na primeira hipótese, apresentada no inciso I desse artigo, consta o consentimento do titular ou de seu responsável legal, afastando a possibilidade de contrariar a vontade de seu titular para o tratamento. No inciso II desse mesmo artigo, surgem as exceções, na forma de condições que dispensam o consentimento do titular. A pesquisa científica encontra-se no item c desse inciso.
A inclusão pelo legislador da pesquisa nas exceções do tratamento de dados reconhece a importância da divulgação da ciência. O mesmo inciso impõe a ressalva de que a anonimização deve ser um recurso a ser empregado para preservar a privacidade do titular. Esse um recurso adotado pelo legislador evita um potencial conflito entre os princípios da privacidade e o da publicidade ou informação.
Se, por um lado, a LGPD reconhece a viabilidade de utilizar dados pessoais de maneira legítima para conduzir estudos e pesquisas, simplificando esses procedimentos e oferecendo maior segurança jurídica às atividades realizadas nesse contexto. Por outro lado, a Lei específica que apenas os órgãos de pesquisa (art. 7°) estão dispensados do consentimento. Tratam-se de órgãos e entidades da administração pública direta ou indireta dos três poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que têm a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico como parte de sua missão institucional, sem fins lucrativos (ANPD, 2023).
Portanto, estão excluídas as entidades de direito privado que desejam recorrer ao dispositivo legal para realizar estudos com fins comerciais, nem abrange órgãos e instituições que ocasionalmente ou acessoriamente realizem atividades de estudos e pesquisas que não sejam o seu principal propósito (ANPD, 2023).
Respeitando os princípios éticos e as salvaguardas técnicas e legais aplicáveis, incluindo propósitos legítimos, específicos, claros e comunicados ao titular, com a impossibilidade de uso subsequente incompatível com esses objetivos, o art. 13 estabelece medidas concretas de prevenção e segurança no contexto dos estudos de saúde pública (BRASIL, 2018). Dessa forma, os dados pessoais devem ser processados exclusivamente dentro da instituição e com o único propósito de conduzir a pesquisa, proibindo sua transferência para terceiros. Além disso, esses dados devem ser mantidos em um ambiente controlado e seguro, com anonimização ou pseudonimização sempre que viável.
É importante ressaltar que eventual dispensa do consentimento para os fins da LGPD, em razão da incidência de outra hipótese legal no caso concreto, não afasta a necessidade de obtenção do consentimento dos participantes de pesquisa quando assim exigido pelas normas e padrões éticos aplicáveis. Portanto, é plenamente possível que o consentimento seja dispensável do ponto de vista da legislação de proteção de dados pessoais e necessário do ponto de vista ético, conforme exposto anteriormente.
Considerações finais
A proteção dos dados pessoais é um dos componentes relacionados à privacidade. Assim como os demais, tem potencial de causar danos irreversíveis econômicos e morais ao titular e a todos que lhes são próximos.
Como dados pessoais sensíveis, os dados genéticos ganharam destaque na LGPD, na medida em que, via de regra, exige do controlador o consentimento do titular ou de seu responsável legal para a realização do tratamento (art. 11). A exceção do consentimento específico e destacado foi dada aos órgãos de pesquisa definidos na mesma lei, sob a recomendação de anonimização sempre que possível.
Uma interpretação dessa prerrogativa legal é que o legislador elevou a importância da pesquisa cientifica de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico, dada a relevância de seus produtos, na forma de estudos públicos, que podem contribuir para o progresso tecnológico, políticas públicas, entre outros dispositivos em prol do bem comum.
Contudo, existem alguns pontos que demandam atenção. O primeiro deles está relacionado ao consentimento e o segundo ao dever do Estado em zelar pela proteção de dados pessoais por meio da regulação, implementação e fiscalização do cumprimento da Lei.
Tanto na hipótese em que o consentimento é indispensável, quanto na dispensa para os órgãos de pesquisa, a tutela do Estado é necessária, não apenas para evitar abusos, mas também para mitigar danos ao titular diante do seu desconhecimento sobre riscos relacionados ao consentimento, especialmente no ambiente virtual.
Ao se deparar com uma política de privacidade, o usuário-titular, não hesita em aceitar todos os termos que tem todas as características de um contrato de adesão, a saber, uniformidade, predeterminação unilateral, rigidez e, principalmente, a posição de vantagem econômica (superioridade material) da parte que propõe o negócio jurídico.
Para a grande maioria dos brasileiros que estão longe de compreender os riscos para si e sua família em termos de segmentação e discriminação, o consentimento é dado prontamente, como uma simples etapa a ser superada para ter acesso ao serviço.
Considerando que a evolução tecnológica decorrente da pesquisa genética é um caminho sem volta, a atuação positiva do Estado como garantidor desse direito fundamental, não só no sentido regulador, implementador e fiscalizador, mas também como criador de ambientes que favoreçam a tomada de decisões mais benéficas pelo titular, habilitando-o a julgar por si próprio os riscos associados ao consentimento, exercendo assim seu direito de autodeterminação informativa.
Referências
ANPD. Guia Orientativo – Tratamento de dados pessoais para fins acadêmicos e para realização de estudos e pesquisas. Brasília, jan./2023. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/documentos-de-publicacoes/web guia-anpd-tratamento-de-dados-para-fins-academicos.pdf. Acesso em: 4 nov. 2023. BOBBIO, Norberto. Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 4 nov. 2023. BRASIL. Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 4 nov. 2023.
HAMMERSCHMIDT, Denise. Direito e discriminação genética. Revista do Direito Privado da UEL, v. 1, n. 2, 2008.
UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Digital Library. 2006. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146180_por. Acesso em: 4 nov. 2023.