A cultura de estupro e seu reflexo na representação feminina

Por: Maria Letícia Sousa Borges

A cultura de estupro está entre nós. A discussão acerca dessa questão esteve em evidência no país em 2016, mobilizando as redes sociais, devido a um caso de estupro coletivo. Nele, uma menor de idade foi violentada sexualmente por mais de 30 homens, ato esse gravado e posteriormente divulgado na internet. Enquanto a indignação predominava, houve quem questionasse a índole da jovem, minimizando o ato de violência – incluindo o delegado inicialmente responsável pela investigação1. A repercussão desse debate conduziu para o mainstream o conceito de cultura de estupro, ou seja, a culpabilização da vítima de violência ou assédio sexual e a normalização dessa conduta.

Utilizando o caso exposto como ponto de partida, irei investigar a questão da cultura de estupro sob a perspectiva da representação feminina em obras literárias e cinematográficas – que atestam a desigualdade de gênero e a dificuldade na concretização do princípio da igualdade.

A questão feminina teve evidente êxito no âmbito jurídico por meio da formalização de direitos na Constituição Federal de 1988 – uma vez que está claramente assegurada a igualdade entre mulheres e homens em geral em seu Artigo 5º. Ainda, a lei “Maria da Penha”, que promove a prevenção e combate a violência contra a mulher é central na concretização constitucional dos direitos da mulher – assim como a Lei n° 10.224, que dispõe acerca do crime de assédio sexual2. Apesar desses avanços incisivos no combate à violência contra a mulher, dados do Ministério da Saúde3 atestam que ocorrem no Brasil, em média, dez casos de estupro coletivo por dia. Nos últimos cinco anos, dobraram as notificações de estupros coletivos no Brasil e, entretanto, apenas 10% dos casos chegam ao conhecimento da polícia. Ademais, apenas em 2009, com a sanção da Lei nº 12.015, o estupro passou a ser um crime contra a dignidade e a liberdade sexual4.

A culpabilização da vítima de violência sexual está essencialmente ligada à construção de tipos femininos. A “mulher” como conceito, de acordo com a filósofa Simone de Beauvoir, é uma construção social – esta resultante da reflexão de expectativas masculinas sobre ser feminina. Desse modo, a perspectiva masculina molda o arquétipo de mulher de acordo com a sua expectativa quanto a ela – tendo o papel de mãe, esposa, amante, entre outros – esta sempre em função do homem, de modo a realizar suas necessidades. Esse conceito demonstra como a cultura de estupro está interligada a uma relação de poder, esta na qual os homens submetem as mulheres no sentido de que assumam determinados papéis sociais – o que leva à coisificação do indivíduo e à dissociação da mulher dos direitos sobre seu próprio corpo4.

Analisarei, a seguir, a representação dos tipos femininos no cinema e na literatura, de modo a evidenciar sua existência histórica no nosso meio. O início do cinema mudo é dominado por dois tipos de representações femininas: as virgens e as vampes, ou seja, a donzela e a sedutora – duas noções idealizadas ou demonizadas da feminilidade. Já a década de 40 é caracterizada pela estética do cinema noir, que, marcadamente, apresentava a figura femme fatale5 e, na ausência desta, a mulher era apresentada como pura e recatada. O cinema, historicamente, apresenta suas personagens femininas ou como símbolos sexuais ou como modelo de “esposa ideal” – mas raramente como indivíduo dotado de autonomia. Mesmo após a libertação sexual da mulher entre a década de 60/70, filmes como Barbarella ou A primeira noite de um homem fetichizam essa independência sexual a serviço do homem6.

A literatura também retrata essa dualidade nas personagens femininas, em uma alternância entre a bondade celestial e a depravação demoníaca7. Mesmo em obras aclamadas da literatura, como “Crime e Castigo” de Fiódor Dostoiévski, a personagem Sônia é tipificada como um amálgama dos arquétipos da santa e da pecadora – uma fusão das personas bíblicas da Virgem Maria e de Maria Madalena8.

Esses arquétipos na literatura e no cinema agem diretamente no símbolo do que é ser mulher, refletindo a desigualdade de gênero na sociedade e a imposição de papéis sociais. A própria cultura política é influenciada por tais tipos, seja na existência da expressão “mulher honesta” e do crime de adultério no Código Penal até 2005, até mesmo na sub-representatividade feminina no judiciário brasileiro9.

Nesse cenário, a cultura de estupro é marcada pela reafirmação dos estereótipos de gênero – o recato, a fragilidade, a docilidade, a virtude. A mulher que vai de encontro a essa percepção “autoriza” a legitimidade da violência sofrida – visto que cabe ao homem moldar a mulher e tomar para si sua autonomia10. Uma perspectiva de combate aos estereótipos de gênero e de ressignificação do conceito de mulher apenas será possível pela ocupação pela mulher dos espaços jurídicos e políticos. Cabe à mulher definir e legitimar sua própria vivência.


Maria Letícia Sousa Borges é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiária no Supremo Tribunal Federal. Pesquisadora na área de Teoria Constitucional, Direito Constitucional Comparado, História do Direito e Direito e Literatura. Participou de projetos de pesquisa na UnB (Centro de Estudos Constitucionais Comparados – CECC) e na USP (Direito Constitucional Avançado – DCA).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 Advogada de jovem vítima de estupro pedirá saída de delegado do caso. G1. Disponível em: < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/advogada-de-jovem-vitima-de-estupro-pedira-saida- de-delegado-do-caso.html>;

2 PIOVESAN, Flávia. Igualdade de gênero na Constituição Federal: os direitos civis e políticos das mulheres no Brasil. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos- legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-i-constituicao-de-1988/principios-e-direitos- fundamentais-igualdade-de-genero-na-constituicao-federal-os-direitos-civis-e-politicos-das-mulheres-do- brasil>;

3 País registra 10 estupros coletivos por dia; notificações dobram em 5 anos. FOLHA. Disponível em:

< http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1911346-pais-registra-10-estupros-coletivos-por-dia- notificacoes-dobram-em-5-anos.shtml?loggedpaywall>;

4 CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz; FERREIRA, Helder. Estupro no Brasil: autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Disponível em:<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30474:td-2313- estupro-no-brasil-vitimas-autores-fatores-situacionais-e-evolucao-das-notificacoes-no-sistema-de-saude- entren2011-e-2014&catid=397:2017&directory=1&gt>. Em complemento:<http://www.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=9006&gt>.

5 Dama fatal.

6 Cabe ressaltar que nem todas as representações femininas são arquétipos – tendo como exemplo as grandes divas de Hollywood que evidenciaram protagonismo feminino e marcaram a Era de Ouro do cinema. Ainda assim, as películas são, até os dias atuais, dominadas por uma perspectiva masculina (96% dos diretores de cinema são homens, segundo dados da BBC Brasil).

7 O que é exposto por Virgínia Woolf em “Um teto todo seu”, livro no qual a autora disserta sobre a hegemonia da perspectiva masculina na literatura, isso devido às imensas dificuldades de ser uma escritora mulher (como a independência financeira e a validação social). Dessa forma, a mulher é sempre representada na sua relação quanto ao homem, por meio de estereótipos, e poucas são as interações entre mulheres na literatura sem o envolvimento de um personagem masculino.

8 Vale evidenciar a existência de grandes personagens femininas na literatura, que se igualam ou ultrapassam os homens em sua complexidade e protagonismo, como no teatro grego – notadamente em Antígona, apesar de estereótipos ainda serem perceptíveis – além de Shakespeare, que evidenciou personas tais quais Lady Macbeth. No entanto, a hegemonia da ótica masculina na literatura não deve ser ignorada.

9 O judiciário brasileiro é 37,3% composto por mulheres.10 FERREIRA, Antônio Oneildo. Combate à cultura do estupro vai além de punições penais. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-jun-07/oneildo-ferreira-combate-cultura-estupro-alem- punicao>.

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