Supressão de instância e outros monstros embaixo da cama

Por: João Pedro de Souza Mello

Não há vedação genérica à supressão de instância no direito brasileiro. Ou, por outra, a expressão “supressão de instância” não corresponde a elemento do suporte fático de nenhuma norma jurídica[1]. O que há, em rigor, é certa distribuição de competências entre os órgãos judiciais, a qual não costuma autorizar o exercício do poder jurisdicional pelo órgão dito superior antes da prática de um ato qualquer pelo órgão inferior. Esse conjunto de regras pontuais forma, em seu conjunto, a estrutura hierárquica do poder judiciário e permite a construção dessa imagem da mecânica do poder em que os juízes têm suas decisões revisadas pelos tribunais e os tribunais, às vezes, têm as suas revisadas pelos tribunais superiores. Essa hierarquia, se ocasionalmente pode ser utilizada para encontrar implied powers com a finalidade de definir competências não expressamente previstas pelos textos normativos[2], não pode servir para fabricar incompetências — isto é, não pode derrogar as competências efetivamente previstas.

O que impede, por exemplo, que a demanda do particular contra a União seja proposta diretamente no Tribunal Regional Federal (TRF) não é uma vedação à “supressão de instância”, mas a simples ausência de norma atributiva de competência a esse órgão para julgar a causa. O juiz federal de 1º grau, por outro lado, é competente por força do art. 109, I, da Constituição Federal. O exercício pelo juiz desse poder jurisdicional sobre o caso concreto produzirá uma decisão, a qual, por sua vez, poderá dar nascimento ao direito de recorrer. Exercido esse direito, a competência do TRF será desbloqueada pela autorização do art. 108, II, da Constituição. Se o recurso veicular pedido estranho à demanda original, haverá “inovação recursal” (outra síntese imperfeita), não em virtude de uma supressão de instância, mas de uma combinação entre a “decisão” como pressuposto da competência recursal e da estabilidade da demanda prevista pela interpretação a contrario sensu do art. 329 do Código de Processo Civil (CPC). Dizer, nesse caso, que houve supressão de instância é uma síntese metafórica, que apela à representação visual e ideal da hierarquia judicial. Em forma analítica, no estudo pormenorizado das estruturas normativas, condensa as seguintes proposições: i) a competência do TRF no caso é pré-compreendida como possível competência recursal[3] decorrente da norma atribuída ao art. 108, II, da CF, ii) a omissão do juiz de primeiro grau em julgar pedido não-formulado é obrigatória, com fundamento na extensão do dever previsto no art. 141 do CPC, na vedação do art. 492 e na estabilidade prevista no art. 329, iii) a matéria não é cognoscível de ofício, iv) falta, portanto, o elemento “causa decidida” que é pressuposto da competência recursal do TRF, e, por consequência, não há competência no caso concreto, v) é permitido ao recorrente ajuizar ação perante a justiça de 1º grau veiculando o pedido em questão, vi) caso esse direito seja exercido, e a justiça de 1º grau prolate decisão, e essa decisão seja recorrível, e o recurso seja interposto, será então permitido ao TRF apreciá-lo. 

O problema surge quando a metáfora, de caráter descritivo, é aplicada como se fosse ela mesma dotada de normatividade; como se houvesse ilicitude em todas as situações que pudessem ser representadas pela imagem da supressão de instância.

Isso ocorre, por exemplo, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se nega a fixar, em recurso especial, os honorários que reconhece estarem em desacordo com a lei vigente. No julgamento do REsp 1.647.246/PE, foi unânime o reconhecimento de que o dispositivo legal aplicado pelo acórdão para fixar os honorários de sucumbência fora incorreto. Contudo, e embora o relator tenha votado em sentido diverso, a maioria se formou no sentido de que fixar os honorários segundo a lei aplicável seria supressão de instância, e que, portanto, o STJ poderia apenas anular, mas não reformar o acórdão.

É claro que, em certo sentido, haveria supressão de instância. O STJ estaria interpretando a norma aplicável, e não revisando a interpretação do grau inferior. Mas onde está a ilicitude? A aplicação incorreta do direito aos fatos é erro de julgamento, não de procedimento, o que em princípio ensejaria reforma e não anulação. O STJ é competente para julgar a causa e aplicar o direito (art. 1.034 do CPC). A eventual ilicitude estaria na incompetência — que, como visto, apenas ocasionalmente é descritível pela imagem da supressão de instância.

Também é o caso do tribunal que se nega a proteger o direito material no mandado de segurança impetrado contra omissão judicial[4], sob o fundamento de que implicaria supressão de instância. Se a competência do Tribunal é para julgar mandado de segurança contra ato de seus juízes, e o ato pode ser comissivo ou omissivo, então é possível a concessão de segurança para proteger o direito líquido e certo violado ou ameaçado pelo juiz de direito. Supressão de instância aí é uma metáfora impertinente, sem amparo normativo, aplicada para bloquear o acesso à justiça.

No caso das impetrações de habeas corpus, a situação alcançou graus exagerados de irracionalidade. A Constituição estabelece a competência do STJ, por exemplo, para julgar habeas corpus contra ato coator de desembargador de Tribunal de Justiça estadual (art. 105, I, alíneas ‘c’ e ‘a’). Havendo, pois ato de coação ilegal de desembargador, poderá haver concessão da ordem pelo STJ, inclusive de ofício (art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal). Não se pode negar que o indeferimento de liminar em HC é ato do desembargador e, portanto, desbloqueia a competência do STJ. Como se explicaria, então, o entendimento da Súmula 691/STF?  O art. 5º, LXVIII, da Constituição estabeleceu a garantia amplíssima do habeas corpus“livre de qualquer peia”, nas palavras do Ministro Marco Aurélio de Mello, que assim descreveu seus requisitos de admissibilidade.

“contenta-se a ordem jurídica constitucional com o concurso de três elementos, envolvido aí o próprio Estado-Juiz: o primeiro, ter-se como configurada uma ilegalidade; o segundo, o cerceio ou a ameaça – contenta-se a ordem jurídica constitucional com a simples ameaça de cerceio à liberdade de ir e vir -; e o terceiro, para chegar-se ao objeto buscado pelo habeas corpus, a existência ainda de um órgão a que se possa recorrer”[5].

No julgamento em que se proferiu esse voto, surgiu o entendimento de que a Súmula 691/STF poderia ser superada. É a solução óbvia, diante da norma constitucional. As restrições jurisprudenciais do habeas corpusnormalmente apelam a uma lógica do sistema de recursos[6] — mas, como vimos, não uma lógica normativa, senão uma imagem da hierarquia judicial. A briga dos penalistas com esse truque já é longa. Os processualistas civis ainda não parecem ter visto e articulado o fenômeno.

O que se disse a respeito da supressão de instância poderia valer outros pseudoinstitutos: momento processual (o que ocorre é que um ato processual frequentemente está no suporte fático de outro), inadequação da via eleita (a justiça, essa quebrada cheia de vielas em que é fácil errar os endereços) e outros topoi da prática processual que, como os monstros embaixo da cama, são imagens que as cortes criam para representar seus medos.

E normalmente o medo é de julgar.


João Pedro de Souza Mello é advogado e bacharel em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Grupo de Pesquisa em Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (GEPC/UnB).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] Exceção feita à previsão do art. 988, § 5º, do CPC, que restringe o cabimento de reclamação por meio de linguagem destoante do resto do Código, referindo-se ao “esgotamento das instâncias ordinárias”.

[2] Por exemplo, quando o STF entendeu ser, à época, o TFR o órgão competente para julgar recurso contra decisões de juízes locais concessivas de habeas corpus. Cf. RE 47757 (RS), Rel. Min. Ribeiro da Costa, j. 24.08.1962.

[3] Para explicação mais extensa da noção hermenêutica de pré-compreensão aplicada ao direito, cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004, p. 127 e ss.

[4] Por exemplo, TJBA. MS nº 0016388-70.2017.8.05.0000. DJE 21.02.2018

[5] Voto no HC 86864 MC, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, j. 20.10.2005

[6] Ver TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus — controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. ed. 2 São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 67.

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