Por Ana Vitória Gomes de Oliveira Vieira*
Ao tratar da questão Yanomami é importante esclarecer que não se trata de algo cuja gravidade se deu da noite para o dia, e sim de algo que vem sendo formado e ignorado por muito tempo. A tribo em questão, que compõe a maior parcela de povos originários do Brasil, foi assim apelidada (Yanomami)¹ como forma de aculturação europeia – iniciada no período do Brasil Colônia –; este é, portanto, um movimento clássico: dá-se um nome afetivo, identitário (a saber: Yanomami significa “ser humano” na língua nativa deste povo) ou, em caso de insucesso na colonização, recorre-se ao genocídio.
Percebe-se, então, que, desde o contato inicial, existe uma certa represália, uma busca por controle, um desrespeito pelo diferente; toda essa política colonial, baseada na aculturação – que é nada mais nada menos que destituir o outro da sua cultura para que, assim, o faça seguir ou se amoldar a cultura a ele imposta –, revela-se no cenário atual, no qual o descaso para com os Yanomamis não mais pode ser contido ou ignorado. Postulado o cenário inicial da problemática, há que se falar de sua amplitude internacional e da responsabilização e eventual condenação, ou não, do Brasil em relação ao desamparo e à mortalidade em massa dos Yanomamis.
Para tanto, é válido entender, primeiramente, se há alguma violação legal relativa ao desamparo e à questão dos direitos humanos; em contrapartida, se a corte internacional tem competência para adentrar em assuntos internos do país – tendo por base um dos princípios do direito internacional público – e, por fim, se existe algum mecanismo legal ou fonte vinculante que preveja a responsabilidade penal, em âmbito internacional, do Brasil, de modo a respaldar eventual condenação, se for o caso de crime contra a vida.
1. AMPLITUDE INTERNACIONAL E RESPONSABILIZAÇÃO DO BRASIL PARA COM OS YANOMAMIS
Acerca dos direitos humanos, tem-se sua principal previsibilidade na Declaração Universal dos Direitos Humanos² (DUDH, 1948), que, originada no contexto pós 2ª Guerra Mundial, tem por finalidade o “reconhecimento da dignidade inerente a todos”; não bastasse clara e expressiva fonte, muitos descasos humanitários perduraram, principalmente em relação aos povos subjugados, cuja importância não era observada. Felizmente, ainda que relativamente tarde, em 2007, entrou em vigor no Brasil a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas³, que reconhece os povos indígenas como patrimônio cultural e identitário e lhes assegura princípios como, por exemplo, autodeterminação, direito à ocupação de suas propriedades e à conservação de suas instituições políticas, culturais, jurídicas, econômicas e sociais.
Constantemente, porém, os Yanomamis têm tido seus direitos humanos e fundamentais violados e negligenciados; vivendo à mercê de garimpeiros, tendo sua terra – que havia de ser sua segurança – diariamente ameaçada, suas necessidades básicas, como saúde e alimentação, ignoradas e, não menos importante, sua integridade física e mental violada. Diante disso, a responsabilidade do Brasil surge da omissão e relativização para com tal realidade, o que se observou, principalmente, no governo Jair Bolsonaro (2018-2022) em função das inúmeras vezes que o representante político em questão adotou uma postura de descaso em relação aos povos tradicionais – especialmente os Yanomamis.
A saber, sua postura discriminatória para com os indígenas se apresenta desde sua época como Deputado Federal, ao dizer⁴ que “a Cavalaria Brasileira foi muito incompetente” e que “competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”. Nota-se, pois, uma postura desrespeitosa para com os povos originários, o que, consequentemente, refletiu na continuidade do descaso em relação às necessidades humanitárias dos Yanomamis.
2. COMPETÊNCIA DA CORTE INTERNACIONAL
Em contrapartida, antes de determinar se o Brasil pode ou não ser condenado pelo crime de genocídio em relação aos Yanomamis, há que se falar de um dos princípios do direito internacional público: o princípio da não interferência⁵ em questões internas. Como o próprio nome descreve, dado princípio implica na obrigação dos Estados em não intervir (direta ou indiretamente) em assuntos internos; complementar a ele, tem-se o princípio da soberania estatal, sendo que este reconhece o Estado como competente para atuar em seus assuntos particulares. Seria, então, a Corte Internacional apta para intervir na questão Yanomami? Ainda que o seja, como se daria tal intervenção sem ultrapassar a regência interna do Brasil?
É fato que cada país dota de uma história sociocultural, política e econômica única, sendo inviável, e até mesmo injusto, que um país – ou conjunto de países – interfira ou imponha quaisquer formatos de administração e gerência a outrem. Contudo, no que diz respeito à preservação da vida e da dignidade, é claro o valor sobressalente e digno de amparo; por mais autonomia que tenha um Estado de reger a si mesmo, tal soberania não pode ser sobressalente às necessidades e à proteção do povo. Afinal, de nada adianta o amparo normativo se não para regular os órgãos estatais em vista da proteção e das garantias individuais do povo – aspecto este compreendido como sentido substancial da Constituição Federal de 1988.
Cabe, ainda, apresentar uma analogia simples para melhor entendimento: os crimes contra a liberdade pessoal, compreendidos entre os artigos 146 e 149-A do Código Penal (Lei nº 2.848/1940)⁶, ainda que o bem jurídico tutelado seja à liberdade individual, dispõem de excludentes de ilicitude os casos em que seja necessária a tutela à vida, uma vez que se trata de bem jurídico mais relevante. Da mesma forma, se a realidade interna de um país compromete a existência ou as necessidades básicas relativas à dignidade humana, não restam dúvidas de que o limiar da interferência entre países pode vir a ser afastado, posto o objetivo de assegurar o bem comum e a tutela dos que estão sob ameaça.
Não obstante, tem-se, ainda, o trecho constitucional que versa sobre os princípios que regem as relações internacionais, como segue:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I – Independência nacional;
II – Prevalência dos direitos humanos;
III – Autodeterminação dos povos;
IV – Não-intervenção […]⁷.
Nesse espectro, percebe-se que tanto a prevalência dos direitos humanos quanto a soberania do país são princípios internacionais a serem observados; entretanto, existindo qualquer colisão entre eles, há que se fazer a devida ponderação de valores, como previsto no art. 489, §2º, do CPC: “§ 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”.
3. MECANISMOS LEGAIS E FONTES VINCULANTES NO ÂMBITO PENAL
Observado este ponto, vale abordar o papel do Tribunal Penal Internacional (TPI)⁸, responsável por investigar e julgar indivíduos quando observada alguma transgressão grave, como crimes contra a vida (genocídio), crimes de guerra e crimes de agressão. O caso só é levado ao TPI, entretanto, quando o sistema judiciário do país, esgotados os seus recursos, não é capaz de sanar e resolver o conflito. O tribunal só pode julgar casos dos países signatários destes, por sua vez, são obrigados a cumprir com a sentença que for proferida; vale postular, ainda, que o crime, ao ser direcionado ao TPI, não prescreve, logo, a corte tem tempo hábil para o analisar e, havendo base para tal, julgar o caso.
Como signatário, então, o Brasil é subordinado ao TPI, o que fica claro nos §2º, §3º e §4º do Art. 5º da Constituição Federal⁹, que dizem:
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
A saber, o §2º do Art. 5º da CF é conhecido, pois, como cláusula de abertura, de modo que possibilita a ampliação do catálogo de direitos fundamentais materiais que não se encontrem topograficamente localizados entre os artigos 5º e 17 (título II). Ainda sobre o trecho constitucional apresentado, vale postular que o §3º versa sobre a teoria do duplo estatuto, a qual reconhece como admissíveis tratados e convenções internacionais aprovados pelo rito especial descrito, observando especialmente aqueles que versarem sobre direitos humanos, os quais terão efeito supralegal, estando, portanto, abaixo da referida Constituição, mas acima da legislação interna.
Esclarecidos os fatores e parâmetros relativos ao encaminhamento de casos para o TPI, pode-se dizer que a questão Yanomami caminha para este fim, dada a irresolução e urgência da problemática. Vale lembrar que o Tribunal Penal Internacional tem jurisdição para investigar e julgar pessoas¹⁰ e não os Estados – à título de curiosidade: cabe ao Tribunal Internacional de Justiça julgar os Estados –, logo, o eventual direcionamento do caso ao TPI deve apresentar um agente específico para que seja aberto o inquérito.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vias de conclusão, observa-se que, no caso de os ritos jurídicos brasileiros falharem na averiguação da questão Yanomami, cuja necessidade é urgente, poderá a corte do Tribunal Penal Internacional assumir a frente investigativa; se for configurado crime de genocídio ou afim e houver condenação, estará a pessoa condenada obrigada a cumprir com as diretrizes postuladas, uma vez que o Brasil é, constitucionalmente, signatário do TPI.
Necessário, também, rememorar a riqueza e importância sociocultural e política dos povos originários, cuja história compõe a identidade do país; a situação dos Yanomamis destaca a importância da proteção dos direitos indígenas e da preservação ambiental. Essa luta é um chamado para a conscientização global sobre a necessidade de respeitar e valorizar as culturas indígenas, garantindo que eles possam viver em harmonia com a natureza e exercer seus direitos fundamentais.
Situações de negligência do governo brasileiro em casos como este devem ser apontadas pela população, cuja voz detém o poder na nação, de modo que seja dada a devida importância e relevância a estas pautas. A falta de ações efetivas para conter a invasão de terras indígenas e combater o garimpo ilegal tem perpetuado a vulnerabilidade dessas comunidades e agravado as violações de seus direitos. É fundamental destacar, também, que esses atos violam tanto o direito internacional quanto a Constituição brasileira, como observado na fundamentação. A negligência e a falta de resposta adequada diante dessas violações são questões que requerem a atenção e a ação imediata das autoridades competentes.
* Graduanda do 6º semestre do curso de Direito da Universidade de Brasília. Criadora do Canal Direitudo: de estudante para estudante, disponível em: https://www.youtube.com/@direitudo Coordenadora Geral do Veredicto (Projeto de Extensão – UnB). Estagiária do escritório Petrarca Advogados. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9144240002027902 Contato: anavitoria.gov@gmail.com
[1] BRASIL, Redação National Geographic. O que significa yanomami. National Geographic, 2023. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/cultura/2023/05/o-que-significa-yanomami. Acesso em: 30 maio 2023.
[2] ONU. Declaração universal de Direitos Humanos. 1948.
[3] ONU, Nações Unidas. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro: UNIC, 2008.
[4] GUEDES, Octavio. Bolsonaro já lamentou que o Brasil não dizimou os indígenas. G1. 2022.
[5] CHAGAS, Inara. Parágrafo 4o – Jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Portal Viva Direitos. 2021.
[6] Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro.
[7] BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Brasília, 1988
[8] BRASIL. Tribunal Penal Internacional, de 25 de setembro de 2002.
[9] BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Brasília, 1988.
[10] JÚNIOR, Francisco Carlos De Oliveira Santos. Tribunal Penal Internacional. mbito Jurídico, 2017. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/tribunal-penal-internacional/. Acesso em: 30 maio 2023.