Por Aurora Neves*
O casamento, conforme doutrina majoritária, decorre da vontade dos nubentes e estes sujeitam-se a efeitos impostos. Diante disso, tal união configura-se tanto como um contrato quanto como uma instituição¹. Por sua vez, a sua caracterização como contrato permite a sua anulação nas hipóteses de vício de vontade, ou seja, a manifestação de interesse no casamento sem que esta tenha se dado de maneira livre e consciente.
Nesse contexto, de acordo com o Código Civil vigente, cabe mencionar que o vício de vontade motivador de anulação de casamento tem como pressuposto erro essencial sobre o cônjuge. Como exemplo de tal situação, tem-se o não conhecimento acerca de aspectos da identidade do companheiro escolhido. É ver:
Código Civil – Lei 10.406/2002
Art. 1.550. É anulável o casamento:
III – por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;
Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.
Superior Tribunal de Justiça
Em relação ao erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge, para que se justifique a anulação do casamento com base nesse argumento, necessário que haja a cabal demonstração de três requisitos: a anterioridade da circunstância ignorada pelo cônjuge (defeito físico irremediável ou moléstia grave transmissível), a ignorância de crime que torne a vida em comum insuportável ou, ainda, relevante erro quanto à sua identidade, sua honra e boa fama, com posterior conhecimento do cônjuge enganado.
(AREsp n. 1.651.905, Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 17/04/2020 e AREsp n. 2.056.159, Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 22/03/2022)
Sobre tal aspecto, faz-se importante ressaltar que a identidade da pessoa é composta, dentre outros elementos, pela sua orientação sexual a qual, inclusive, é protegida pelos Direitos da Personalidade². Assim, caso haja erro essencial sobre a pessoa neste aspecto identitário sexual, é possível o enquadramento como fator capaz de motivar a anulação de casamento, mas apenas se este for insuportável à vida em comum, conforme determina o Código Civil. Como consequência, a possibilidade de anulação por motivação homossexual detém como debate interpretativo o conceito de suportabilidade da vida conjugal.
Com a tarefa jurisdicional de debruçar-se sobre o assunto, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou que não seria insuportável a vida em comum estar-se diante de cônjuge com orientação sexual incompatível à sua³. Ainda, tal entendimento foi expresso por decisão em que a esposa requereu a anulação do casamento baseada na descoberta, após a referida junção conjugal, da homossexualidade do marido a qual, para ela, enquadraria-se como erro essencial quanto à pessoa.
Entretanto, o Tribunal decidiu nos termos de que o erro ora analisado pressupõe cabimento restrito e grave para que seja motivo suficiente à anulação de casamento, o que não ocorreria com a ausência de consumação sexual, independentemente das razões para tal, seja ela pelo simples desinteresse sexual do parceiro ou por eventual orientação sexual divergente entre os cônjuges. Nesse sentido, firmou-se o entendimento de que a homossexualidade oculta do conjuge não incube em erro essencial, haja vista que, por ser uma forma de expressão, não pode ser considerada como erro de identidade.
Além disso, a decisão conceituou a homossexualidade como uma escolha de vida do indivíduo o que, para o Movimento LGBT, pode ser interpretado como homofobia, visto não tratar-se de escolha. Assim, apesar da decisão mostrar-se favorável às pessoas homossexuais, na medida em que reitera a orientação sexual como identidade pessoal a ser respeitada e não como um erro ou vício oculto, convém ressaltar também as suas limitações neste aspecto.
Ademais, a requerente de tal caso processual indicou a homossexualidade do conjuge como suposto impedimento para a formação de família, na medida em que alegou que a anulabilidade foi requerida, nesse contexto, porque eles se casaram para formar família e supostamente tal objetivo não seria alcançado. Contudo, tal afirmação não se mostra como relevante para o juízo de anulabilidade do matrimônio, visto que o Código Civil não a prevê dentre as hipóteses a justificar a mudança do vínculo conjugal.
Na verdade, o mero descompasso nos objetivos de vida, tal qual a consumação de relações sexuais e momentos íntimos, inclusive a não geração de filhos, não se mostra como algo insuportável a vida em comum e, portanto, não se descreve como motivação suficiente. Isso porque, para o TJSP, o casamento não cria a obrigação de ter relações sexuais. Ainda acerca da suposta impossibilidade de formação de família pela homossexualidade do marido, o Tribunal demostrou clara mudança nos conceitos familiares atuais, indicando que tem-se a aceitação atual de tipos diversos de casamento e não somente o tradicional entre heterossexuais.
Nesses mesmos termos, têm-se entendimentos doutrinários:
Nem a alegação de homossexualidade ou se ausência de relacionamento sexual, após a celebração do matrimônio, pode dar ensejo à sua anulação. No entanto, há uma tendência em anular o casamento sob o fundamento de que a negativa de contatos sexuais frustra a expectativa do noivo. A justificativa é das mais absurdas, pois não existe o chamado ‘débito conjugal’, a impor a prática sexual no casamento. (DIAS, 2017, p. 206-207)⁴
Entendemos, contudo, inadmissível a alegação de homossexualismo, bissexualismo, preferências sexuais, vícios de jogos e tóxicos, alcoolemia, como causas de anulação por erro. Com efeito, tais hipóteses não constituem motivo suficiente para gerar a anulação do ato, ligadas que estão às liberdades de uma pessoa, garantidas constitucionalmente. (FARIAS e ROSENVALD, 2016, p. 245 e 246)⁵
Por outro lado, em decisão monocrática do Superior Tribunal de Justiça, a homossexualidade do parceiro seria acolhida como motivação para a anulação de casamento, caso revelada após a sua ocorrência, configurando-se, assim, como erro essencial. É ver:
Superior Tribunal de Justiça
E na hipótese, não bastasse a completa ausência de elementos para se aceitar a afirmação de orientação sexual diversa pelo réu, mesmo que se pudesse reconhecê-la, a pretensão de anulação esbarraria no aspecto da anterioridade da conduta, pois apenas se já existente antes da união e desconhecida pela ré estaria justificada a invocação de erro essencial.
(AREsp n. 1.571.479, Ministro Raul Araújo, DJe de 26/02/2020)
Nos mesmos termos da referida jurisprudência do STJ, o TJDFT deu provimento à anulação de casamento baseada em contexto analítico idêntico ao ora em análise⁶. Isso porque, conforme o Tribunal, eventual homossexualidade de conjuge, se conhecida posteriormente ao casamento, é passível de tornar a vida em comum insuportável, por tratar-se de erro sobre a pessoa do seu ex-cônjuge, nos termos do Art. 1.557 do CC/2002.
Nessa mesma linha, afirma-se que:
Desta feita, tal entendimento serve de sustentáculo para a anulação do casamento contraído com pessoa que manteve ou mantém relações homossexuais, desde que sua orientação sexual fosse desconhecida pelo cônjuge supostamente enganado até o momento da celebração do matrimônio. (MORAES, 2019, p. 2)⁷
Entretanto, diferentemente da doutrina supracitada e do entendimento do TJDFT, tem-se que, para além da preexistência ao casamento da circunstância apontada sobre o outro cônjuge, são exigíveis também a descoberta da verdade subsequente ao casamento e a intolerância da pessoa que incorreu em erro para manter a vida em comum, para que seja cabível a propositura de ação de anulação de casamento por erro essencial.
Por fim, com a manifestação de vontade viciada no ato da celebração contratual do matrimônio, é possível a anulabilidade do casamento, inclusive em casos de erro essencial acerca da identidade da pessoa, bem como da sua honra e boa fé. Contudo, para que haja tal anulação, é imprescindível que a continuidade da vida comum seja insuportável. Nesse sentido, a anulação de casamento, nesses casos, tem-se a necessidade interpretativa da suportabilidade aceitável em um regime conjugal, a fim de que o erro em questão possa ser analisado como motivação célere, o que se mostra como desafio para a jurisprudência atual.
É que, como visto, não vislumbra-se um consenso no aspecto jurisprudencial do tema, tampouco doutrinário, no que diz respeito à hipótese de incidência da homossexualidade como erro essencial e, portanto, como causa de anulação matrimonial. Desse modo, ressalta-se a importância da análise do caso concreto e a sua subsunção às variáveis supracitadas.
* Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Programa de Educação Tutorial do curso de Direito da UnB, do Grupo de Estudo em Constituição, Empresa e Mercado (GECEM/UnB), do Grupo de Estudo em Seguridade Social (GPSS-UnB) e cofundador da Liga Acadêmica de Direito Empresarial da FD-UnB.
[1] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646654. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559646654/. Acesso em: 10 dez. 2023.
[2] DE MENEZES, Joyceane Bezerra; DE OLIVEIRA, Cecília Barroso. O direito à orientação sexual como decorrência do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Novos Estudos Jurídicos, v. 14, n. 2, p. 105-125, 2009.
[3] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível nº 1000615-93.2023.8.26.0348. Apelantes: A.S.L. e I.G.L. Relator: Carlos Alberto de Salles. Data de julgamento: 20 de julho de 2023. 3a Câmara de Direito Privado.
[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
[5] FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Famílias. 9 ed. Salvador: JusPODIVM, 2017.
[6] BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Apelação Cível nº 0008328-06.2017.8.07.0016. Relator: Fábio Eduardo Marques. 7ª Turma Cível.
[7] MORAES, Amanda L.F. F. Anulação de casamento por erro de pessoa e homossexualidade: análise jurisprudencial à luz da constituição federal. Brazilian journal of development, Curitiba, v. 5, n. 5, p. 4243-4253, mai. de 2019. Disponível em:https://brjd.com.br/index.php/BRJD/article/download/1611/1487. Acesso em: 09 de Dez. de 2023.
Referências
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Apelação Cível nº 0008328-06.2017.8.07.0016. Relator: Fábio Eduardo Marques. 7ª Turma Cível.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível nº 1000615-93.2023.8.26.0348. Apelantes: A.S.L. e I.G.L. Relator: Carlos Alberto de Salles. Data de julgamento: 20 de julho de 2023. 3a Câmara de Direito Privado.
DE MENEZES, Joyceane Bezerra; DE OLIVEIRA, Cecília Barroso. O direito à orientação sexual como decorrência do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Novos Estudos Jurídicos, v. 14, n. 2, p. 105-125, 2009.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 12. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Famílias. 9 ed. Salvador: JusPODIVM, 2017.
MORAES, Amanda L.F. F. Anulação de casamento por erro de pessoa e homossexualidade: análise jurisprudencial à luz da constituição federal. Brazilian journal of development, Curitiba, v. 5, n. 5, p. 4243-4253, mai. de 2019. Disponível em: https://brjd.com.br/index.php/BRJD/article/download/1611/1487. Acesso em: 09 de Dez. de 2023.
OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646654. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559646654/. Acesso em: 10 dez. 2023