Por Ana Clara Santos Bernardes*
Imagine que uma pessoa em situação de rua é acusada de assassinato. Uma suposta testemunha do ato, que também se encontra na mesma situação de vulnerabilidade, presta depoimento perante a autoridade policial, atribuindo a autoria do crime à primeira pessoa. Com base nisso, o acusado é denunciado. Durante a instrução, contudo, a testemunha não comparece à audiência. Mesmo diante da falta de confirmação, em juízo, da prova do inquérito, o réu é encaminhado ao Tribunal do Júri e condenado.
Essa é a síntese de um caso concreto que foi objeto de julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça, no início de junho, oportunidade em que o Min. Rogério Schietti reconheceu a nulidade da decisão que pronunciou o réu com base em prova exclusiva do inquérito.
O caso é um ótimo demonstrativo do tratamento dado, pela jurisprudência, para o instituto do júri, especificamente o debate acerca do papel do juiz togado no procedimento especial.
As ações penais de sobre crimes contra a vida apresentam como peculiaridade marcante a divisão do procedimento, ao meio, pela decisão de pronúncia do acusado, realizada pelo magistrado de direito. Retomando as bases teóricas do tema, toda ação penal é inaugurada pela decisão de recebimento da denúncia ou queixa (art. 41 do CPP) e finalizada pela sentença condenatória ou absolutória (arts .381-393 do CPP), complementadas por despachos e decisões interlocutórias simples proferidas nesse ínterim. Os processos de competência privativa do Júri, por sua vez, também são inaugurados pela decisão de recebimento da denúncia e encerrados com a sentença condenatória/absolutória.
Contudo, dois aspectos conferem singularidade a esse corpo de ações: a sentença final não é proferida por um juiz togado, mas sim pelo chamado Tribunal do Júri (Conselho de Sentença); e o julgamento do acusado, pelos jurados, é condicionado à prévia pronúncia do réu, ato realizado pelo magistrado de direito.
Assim, a decisão de pronúncia divide o processo em duas fases distintas. Na primeira fase (“judicium accusationis”), o juiz togado, após solicitação das partes, defere a apresentação das testemunhas que entender necessárias (art. 411 do CPP). O substrato probatório dessa primeira fase observa as garantias do contraditório e ampla defesa e é submetido às mesmas exigências que recaem sobre a instrução de outras ações penais.
Exaurida a primeira leva de provas, o magistrado pode pronunciar o acusado para o tribunal do júri, mediante a detecção da certeza sobre a materialidade do delito e de indícios mínimos de autoria (art. 413 do CPP). Em outras palavras, o juiz deve estar certo que o crime existiu e apresentar uma desconfiança – fundada – de que o delito foi cometido pelo réu.
Uma vez pronunciado, o réu é submetido ao julgamento pelo Conselho de Sentença. Inaugurada a segunda fase, inicia-se a produção – e reprodução – das provas voltadas para o convencimento dos jurados.
A fase secundária é o momento de formação do juízo de certeza sobre a autoria do acusado que, caso não constatada, implicará sua absolvição. Trata-se de conclusão que só pode ser construída pelos jurados. Munidos da competência exclusiva de julgar os crimes contra a vida, o júri é responsável por formar um veredicto dotado de soberania, conferido com a prerrogativa de afirmar se o réu é culpado ou inocente. Trata-se de faculdade privativa do Conselho de Sentença, vedada ao juízo singular.
A decisão de pronúncia não pode, portanto, empreender qualquer juízo de certeza sobre a autoria do delito, sob pena de usurpar a competência exclusiva dos jurados. Entender essa distinção é o primeiro passo para compreender, por qual razão a pessoa em situação de rua, descrita no primeiro parágrafo, foi condenada com base em provas exclusivas do inquérito.
Há muito a jurisprudência pacificou o entendimento de que a pronúncia do réu consiste em um uma decisão de admissibilidade, incumbida de admitir – ou não – a necessidade de submissão do réu ao júri popular.
A despeito disso, a admissibilidade empreendida pela decisão se distingue do juízo de recebimento da denúncia, pois, ao contrário da decisão que inaugura a instrução, o juiz da pronúncia dispõe de quadro probatório consolidado, produzido sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, o que a aproxima de uma sentença propriamente dita.
Dessa forma, a decisão que divide o procedimento do júri ao meio tem caráter híbrido, uma vez que, assim como o recebimento da denúncia, afere a viabilidade da condenação com base em indícios de autoria, mas, por outro lado, à semelhança de uma sentença condenatória comum, o faz com base em provas produzidas em juízo.
Trata-se de cenário que apresenta uma série de aplicações, dentre elas, a dificuldade de delimitação das normas que balizam a fundamentação do decisum. Esse raciocínio orientou a discussão sobre a aplicação do art. 155 do Código de Processo Penal à decisão de pronúncia, dispositivo assim redigido: ”O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”.
Durante muito tempo, parte da jurisprudência defendeu a inaplicabilidade da norma à decisão de pronúncia. A razão parecia simples. Como não é facultado ao juiz de direito empreender qualquer convicção sobre autoria – uma vez que a posição terminativa sobre a autoria do crime seria reservada ao júri, o magistrado não seria o destinatário das provas, razão pela qual não lhe caberia realizar a distinção ordenada pelo art. 155 do CPP. Por fim, sem a aplicação do critério criado pelo dispositivo, inexistiria diferença entre as provas do inquérito e as produzidas na instrução.
Nesse sentido: ”considerando que a decisão de pronúncia não ostenta natureza condenatória, mas tão-somente de admissibilidade da acusação, a regra do art.155 do CPP deve ser mitigada, sendo possível que o referido decisum esteja lastreado em elementos coletados na fase policial (Precedentes).” .
A título de exemplo, se determinada pessoa atribuísse a autoria do crime ao réu, mesmo que posteriormente a mesma testemunha apontasse a inocência do acusado, ambas as provas seriam dotadas de igual valor para o juiz que realiza a pronúncia, uma vez que a sua conclusão poderia se fundar em todos os elementos acostados aos autos, mesmo que exclusivos do inquérito – como observado, por exemplo, no quadro fático do HC nº 770.163, impetrado perante o eg. STJ, de relatoria do Min. João Batista Moreira, feito ainda pendente de julgamento.
Em suma, para essa corrente, a ponderação de provas em sede de pronúncia, se feita à luz do art. 155 do CPP, privaria o Júri de acessar todos os elementos disponíveis para a formação de sua convicção.
Essa postura se alinhava com outra orientação jurisprudencial peculiar – essa ainda majoritária nos tribunais -: a incidência do in dubio pro societate.
O raciocínio complementar também era simples. Inexistindo critério normativo para distinguir a prova inquisitorial da prova instrutória, a indicação de conclusões díspares – por exemplo, prova A do inquérito apontava a autoria, mas prova B da instrução indicava um álibi – deixava o magistrado em dúvida sobre qual elemento privilegiar.
Conforme previsto expressamente na constituição (art. 5°, alínea XXXVIII) a dúvida deve ser resolvida em favor do réu, de modo que incertezas sobre a autoria de determinado delito deveria implicar absolvição do acusado.A despeito dessa previsão, a jurisprudência passou a defender, com base – uma vez mais – na soberania do Conselho de Sentença, que dúvidas em sede de pronúncia devem ser resolvidas em pro societate. Trata-se de posição com forte defesa da jurisprudência. Assim, a despeito das críticas, a incerteza sobre a autoria do acusado atrai sua pronúncia, e não sua absolvição, uma vez que a competência para formar um juízo de certeza sobre o crime – convicção – é constitucionalmente reservada ao tribunal do júri.
A junção de ambos os posicionamentos – inaplicabilidade do art. 155 do CPP e império do in dubio pro societate – foi responsável por uma verdadeira institucionalização da violação de garantias processuais, como a observada no caso que inaugura o texto.
As violações são de fácil detecção.
A fundamentação ignorava um aspecto crucial do Tribunal do Júri: o cumprimento do art. 155 do CPP é inexigível da autoridade que efetivamente forma a convicção sobre autoria, o Conselho de Sentença , uma vez que o Tribunal do Júri não é obrigado a expor as razões que fundamentam sua convicção.
Os jurados gozam de ampla liberdade para decidir pela absolvição ou condenação do acusado, uma vez que a única fundamentação do Conselho que é, de fato, passível de revisão é a resposta objetiva aos quesitos – cuja resposta se limita às afirmações de “sim” ou “não” para as perguntas formuladas pelas partes.Dessa forma, na prática, faculta-se ao Conselho de Sentença a mobilização de razões extraprocessuais, princípios morais e inclinações pessoais para decidir pela condenação ou absolvição do réu.
Com base nisso, sob a égide da antiga orientação,inexistia momento oportuno para a exclusão das provas exclusivas do inquérito ou a garantia do imperativo – constitucional – do in dubio pro reo. Os elementos angariados sem o devido contraditório e ampla defesa poderiam – sozinhos – fundamentar não só a pronúncia do acusado, mas também sua condenação, uma vez que a ponderação de provas, próprias do exercício da magistratura, não é exigível do Conselho de Sentença.
É como resposta a esse quadro que surge a atual orientação majoritária das Cortes Superiores – replicada pela decisão que inaugura a presente coluna – pela aplicabilidade do art. 155 do CPP à pronúncia com base no papel funcional que a decisão desempenha no Tribunal do Júri.
A decisão que inaugura a presente coluna explica de forma clara: “embora a análise aprofundada das provas seja feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir a pronúncia do réu, dada a sua carga decisória, sem qualquer lastro probatório judicializado, fundamentada exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase inquisitorial, mormente quando isolados nos autos e até em oposição parcial ao que se produziu sob o contraditório judicial.”.
O novo entendimento não nega a função de admissibilidade desempenhada pela pronúncia. Tampouco negligencia a competência privativa dos jurados para formar a convicção de autoria. A orientação apenas assume que a pronúncia desempenha o papel de um verdadeiro filtro processual, incumbido de detectar irregularidades que passariam despercebidas pelos jurados, como nulidades processuais flagrantes, inexistência de indícios de materialidade ou, como dispõe o art. 155 do CPP, ausência de provas instrutórias que confirmem os achados do inquérito.
A orientação entende, também, que sem a distinção funcional, a pronúncia em nada se distinguiria da decisão que recebe a denúncia, uma vez que o fator que distingue as decisões é a disposição – ou não – de provas judicializadas para formar a certeza sobre a materialidade e a suspeita de autoria. Caso esse binômio pudesse ser fundado em provas exclusivas do inquérito também em sede de pronúncia, toda a primeira fase do tribunal do júri – voltada, justamente, para a produção de provas em juízo – restaria desnecessária.
Válido ressaltar, também, que a posição majoritária que defende a aplicação do art. 155 do CPP à decisão em comento empreende também postura crítica acerca da vigência do chamado in dubio pro societate nesse momento processual: “ O que não se revela legítimo é invocar-se a fórmula “in dubio pro societate”, para justificar a decisão de pronúncia, tendo em vista as graves repercussões dela resultantes, ainda mais se se tiver presente que a Constituição da República consagrou o dogma da presunção de inocência .“
Assim, a decisão monocrática proferida pelo Ministro Schietti nos autos do HC nº 805.163 indica o caráter consolidado do atual posicionamento das Cortes Superiores que concilia a preservação da soberania do júri com as garantias do indivíduo – tendo em vista, principalmente, o fato de que a inobservância do art. 155 do CPP pela decisão de pronúncia, contamina o próprio quadro probatório que será submetido à análise dos jurados.
* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília.
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Referências
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 805163, Relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 05/06/2023, publicado no diário de justiça eletrônico em 07/06/2023.
[2] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.
[3] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.
[4] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.
[5] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial n. 2.219.543/MG, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/2/2023, publicado no diário de justiça eletrônico em 17/03/2023.
[7] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.
[8] BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Recurso em Sentido Estrito. n° 1.0024.03.160379-8/001, Rel. Des. Furtado de Mendonça , julgado em em 25/03/2014.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 770.163, Relatoria do Desembargador Convocado João Batista Moreira. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=HC+770.163&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&chkordem=DESC&chkMorto=MORTO. Acesso em 22 de julho de 2023.
[10] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 22 de junho de 2023.
[11]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n° 788.457, Relator Ministro Luiz Fux, julgado em 13/05/2014, publicado no diário de justiça eletrônico em 28/05/2023.
[12] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 805163, Relatoria Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 05/06/2023, publicado no diário de justiça eletrônico em 07/06/2023.