With A Little Help From AI: As implicações legais da utilização de IA desreguladamente

Palavras-chave: Inteligência Artificial; Regulação; Beatles; Direito Digital.

por Submissões Independentes

Por João Victor Carvalho de Araújo*

  • INTRODUÇÃO

 

É impossível haver uma notícia mais animadora para um grande fã da banda britânica “The Beatles” do que o anúncio feito pelo integrante Paul McCartney na BBC Radio 4 de que a banda irá lançar uma nova música em 2023.

Embora não tenham revelado ainda o nome da canção, especula-se que seja “Now And Then”, uma música composta por John Lennon em 1978. Essa música fazia parte de um compilado de canções feitas por Lennon pouco antes de morrer em 1980, intitulado “For Paul”, e entregue por Yoko Ono, viúva de Lennon.

Eles haviam tentado gravar a música ainda em 1995, mas devido a baixa qualidade da gravação de voz de Lennon, George se opôs à gravar a música e a mesma foi deixada de lado. 

No entanto, surge a pergunta: como os Beatles podem ainda lançar uma música se dois de seus notáveis integrantes já faleceram? Isso pode ser explicado pela ascensão das Inteligências Artificiais.

Em 2021, com o lançamento do documentário “Get Back”, do diretor Peter Jackson, uma IA conseguiu ser utilizada para “limpar” os áudios antigos dos Beatles e isolar os vocais dos ruídos de fundo. 

McCartney comentou, na época, que “ele [Jackson] foi capaz de extrair a voz de John de um pequeno pedaço de fita cassete. […] Eles dizem à máquina: ‘Essa é a voz. Isso é uma guitarra. Perca a guitarra” [1], tal qual hoje nós utilizamos com os prompts de chatbots, por exemplo.

Sendo assim, eles utilizarão de uma IA para isolar a voz de Lennon e retirar os ruídos, tornando possível que a música final seja então feita. Mas, pergunta-se, quais as implicações éticas e jurídicas da utilização dessas tecnologias para refazer vozes já falecidas de grandes músicos, por exemplo? 

No caso da nova música dos Beatles, as consequências são reduzidas, pois no final a voz ainda é a de Lennon e não uma imitação robótica. No entanto, essa situação é importante para compreendermos e refletirmos sobre a extensão das possíveis complicações resultantes de casos similares, nos quais tecnologias são usadas abertamente para criar imagens, músicas e outros conteúdos que ou imitam pessoas falecidas, ou as artes produzidas por elas quando em vida.

E ainda assim, como se verá, mesmo que estejam vivas, os plágios e erros fatais dessas avançadas tecnologias acontecem, imbuindo em incerteza sobre a quem culpar por tantas falhas. Mas, para que possamos falar disso, primeiramente precisamos entender o que é uma Inteligência Artificial e suas formas de utilização. 

 

  • Afinal, o que é uma Inteligência Artificial?

Na verdade, definir Inteligência Artificial é um trabalho atualmente impreciso, isso porque não existe uma denominação em comum para esse tipo de tecnologia. Para além disso, é um conceito que a depender do tempo o qual estamos na história da humanidade, pode ser entendido de formas difusas. 

Tomemos como exemplo a calculadora, hoje uma simples tecnologia que é encontrada em smartphones da forma mais completa possível, já foi entendida como uma Inteligência Artificial no passado, mas hoje não mais vive seus tempos de glória. Esse fenômeno é o que se entende por AI Effect, ou efeito de IA. 

Eduardo Schiefler (2021), em sua dissertação de mestrado, define o efeito como a:

“[…] transformação ao longo do tempo da interpretação sobre o que é considerado inteligência artificial, especialmente porque existe uma tendência comum de que, a partir do momento em que uma máquina começa a desenvolver uma nova atividade, o ser humano indique que esta ferramenta não é necessariamente inteligente..” [2]

Contudo, apesar da imprecisão – que, ressalta-se, não necessariamente é algo negativo para as Inteligências Artificiais -, para delimitarmos o campo de debate, podemos tomar como definição os conceitos dados pela International Business Machines Corporation (IBM), em seu artigo intitulado “What is artificial intelligence?” (O que é Inteligência Artificial?).

Dessa forma, podemos compreender IA por meio de subdivisões, sendo elas: (i) Narrow Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Limitada), ou também chamada de Weak Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Fraca); a (ii) Strong Artificial Intelligence (Inteligência Artificial Forte), e a (iii) Artificial Super Intelligence (ASI).

Uma IA Forte seria aquela capaz de ter “autoconsciência” e não necessitaria mais de humanos para que se desenvolvessem, ou seja, elas poderiam tomar suas próprias decisões e ter suas próprias “mentes”, em inteligência comparativamente igual ou até mesmo maior que a de nós, humanos. 

A maioria das IAs que existem hoje são do tipo “IA Fraca”, aquelas que por meio de Machine Learning (aprendizado de máquina), são capazes de interpretar dados e padrões que as fazem aprender “por si mesmas” a reagir a certas situações. Um exemplo disso são as próprias assistentes de voz. 

Machine Learning, nas palavras de Schiefler (2021), consiste:

“[…] na habilidade de sistemas de inteligência artificial adquirirem conhecimento próprio mediante a extração de padrões de dados não processados, por meio da experiência. Trata-se de uma tecnologia que permitiu aos computadores se relacionarem com problemas que exigem a percepção do mundo real e a tomada de decisões que aparentam subjetividade. Acredita-se, em razão da sua relevância e consequências, que o machine learning é uma das principais áreas do estudo da inteligência artificial atualmente, sendo responsável por parcela considerável das conquistas e dos avanços recentes.” [3] 

Dessa forma, a Siri e a Alexa, por exemplo, apesar de aparentar possuir um certo nível de “consciência”, na verdade elas aprendem através da alta interação com os usuários, a processar nossa voz e linguagem e, a partir disso, utilizam desses dados para buscar, em mecanismos de pesquisa, resultados para nossas perguntas.

Por fim, temos a Artificial Super Intelligence (ASI), que é um nível hipotético de IA além da inteligência humana. A ASI seria capaz de superar a capacidade intelectual de qualquer ser humano em praticamente todas as áreas, sendo capaz de resolver problemas complexos, realizar descobertas científicas e desenvolver tecnologias avançadas de forma muito superior à nossa compreensão atual.

Contudo ASI e IAs Fortes ainda são conceitos mais especulativos e teóricos, e ainda não foram alcançados na prática. Atualmente, a maioria das aplicações de IA se enquadra na categoria de IA Fraca, sendo utilizadas em uma variedade de setores, como saúde, finanças, transporte, entre outros, para auxiliar em tarefas específicas e melhorar a eficiência operacional.

Sendo assim, compartilha-se da conclusão de Fabiano Hartmann Peixoto e Roberta Zumblick Martins da Silva (2019), segundo os quais a melhor maneira de se compreender o que é IA, seria “como um termo guarda-chuva: que abriga uma série de aplicações e tecnologias diferentes”[4], cada qual para uma destinação específica.

Entendido sinteticamente o que é se compreende como Inteligência Artificial, passa-se a entender como os Beatles a utilizaram para “reviver” a voz de Lennon.

 

  • Como os Beatles utilizaram a Inteligência Artificial?

Os Beatles utilizaram a Inteligência Artificial de uma maneira mais “simples” para conseguir refazer a voz de Lennon em 2023. Ao invés de pedir para uma Inteligência Artificial imitar a voz de Lennon, tal como feito pela IA da Microsoft, a VALL-E [5] , eles utilizaram das IAs para limpar gravações já existentes da voz do Beatle, em um processo que durou anos.

O assunto ganhou as discussões públicas, justamente por acharem que a voz de Lennon seria replicada por um robô, mas, como bem explicado pelo filho de Lennon, Sean Ono Lennon, em seu pronunciamento na rede social “Twitter”:

“Tudo o que fizemos foi limpar os ruídos da gravação de áudio. As pessoas estão confundindo completamente o que aconteceu. Sempre houveram meios de limpar ruídos de gravações, mas o que acontece é que a IA faz isso melhor, isso porque ela aprende o que é o vocal e é capaz de remover com muita precisão tudo aquilo que não seja o vocal.” [6] (Tradução livre)

Sendo assim, as consequências da utilização das tecnologias no caso específico dos Beatles, são bem mais amenizadas do que em situações análogas, as quais utilizam-se de IA para replicar as vozes de artistas, figuras políticas, entre outros. Isso porque, a voz ainda continua sendo a de Lennon, e não a voz de um robô.

 

  • As implicações éticas e jurídicas do uso de IAs desreguladamente.

Contudo, com a ascensão recente das Inteligências Artificiais, hoje existem diversos sites e aplicativos que permitem que você clone vozes de qualquer pessoa de forma gratuita e rápida, tais como o Watson, Magenta, Covers.AI, dentre outros. 

Acontece que, o uso desregulado e livre dessas tecnologias, acaba por gerar paralelamente inúmeros problemas, sejam eles jurídicos ou éticos, tais como aconteceu com a música Heart on My Sleeve, cantada em dueto pelas vozes dos artistas The Weeknd e Drake.

A música, com apenas quatro notas de piano e uma batida repetitiva, tomou conta das redes sociais e acumulou mais de 10 milhões de visualizações no aplicativo TikTok e mais de 254 mil no Spotify. Seria um grande sucesso da dupla de artistas, se não fosse pelo fato de que os dois jamais cantaram ou compuseram a canção.

Ela foi criada por um usuário do TikTok identificado como ghostwriter977, que treinou uma Inteligência Artificial para reproduzir as vozes dos artistas e fazer uma música completamente nova, sem que nem os cantores, nem suas gravadoras, recebessem dinheiro ou qualquer crédito por isso [7].

Para conseguir retirar a música do ar, a Universal Music teve um árduo trabalho, isso porque era muito difícil provar a detenção de direitos autorais, uma vez que a canção era totalmente nova, e o cenário inédito e jamais visto.

Esse é apenas um exemplo dentre diversos outros casos que existem por um motivo fatal: a desregulação de inteligência artificial nos países. 

O que está acontecendo com as novas tecnologias é algo jamais vivenciado pela humanidade nessa escala, um produto totalmente novo e desconhecido está disponível ao grande público sem quaisquer regulamentações e testes necessários para tanto.

Isso acaba por gerar uma massa de criações de imagens, áudios, vídeos e textos que burlam as premissas de direitos autorais, e criam produtos com a voz, imagem ou marca de pessoas que jamais fizeram aquilo. A falta de regulamentação na área de direitos autorais permite a apropriação indevida de propriedade intelectual. 

Criadores de conteúdo, artistas e empresas podem ter suas obras plagiadas e exploradas comercialmente sem sua autorização ou devida compensação. Isso prejudica a economia criativa e desencoraja a inovação, pois os criadores não têm garantias de proteção sobre suas criações.

A falta de regulamentação também traz consigo consequências éticas preocupantes, tais como a proliferação de deepfakes; surgimento de algoritmos discriminatórios; quebra de privacidade de dados; dificuldade de responsabilização, e dentre outros inúmeros problemas que se não resolvidos, podem ser fatais para muitas áreas de nossa sociedade. 

 

  • Conclusão

Em vista desses desafios e preocupações, é fundamental que a regulamentação da inteligência artificial seja uma prioridade para os governos e organizações internacionais. 

As regulamentações devem abranger tanto o desenvolvimento quanto o uso da inteligência artificial. É preciso definir diretrizes claras para o treinamento e o uso de algoritmos, bem como para a coleta, o armazenamento e o compartilhamento de dados. 

Tais medidas só poderão tomar forma se pensadas internacionalmente. A inteligência artificial não conhece fronteiras, e a regulamentação eficaz requer uma abordagem global. Os países devem compartilhar conhecimentos, melhores práticas e recursos para enfrentar os desafios comuns e desenvolver padrões éticos e legais consistentes.

No entanto, a regulamentação da inteligência artificial não deve ser uma restrição à inovação. É importante encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais e a promoção do progresso tecnológico. 

Uma IA é uma ferramenta poderosa que pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal. Cabe a nós, humanos, definir suas regras e limites, onde sempre devemos ter controle sobre a tecnologia, para que ela não se torne uma ameaça para a nossa própria existência.

 

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* Bacharelando em Direito. Membro do Grupo de Estudos: Tópicos Interdisciplinares em Filosofia (GETIF). Foi monitor bolsista da disciplina de “Filosofia do Direito”, ministrada pelo docente Ítalo Moura Guilherme na Faculdade Princesa do Oeste (2021). Foi monitor bolsista da disciplina de “Direito Constitucional II”, ministrada pelo docente Igor Benevides Amaro Fernandes na Faculdade Princesa do Oeste (2022). É monitor bolsista da disciplina de Hermenêutica Jurídica, ministrada pelo docente Ítalo Moura Guilherme (2023). Interessado em: Teoria, História e Filosofia do Direito, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Processual Civil e Direito Digital, notadamente a pesquisa na área de Inteligência Artificial. Membro do corpo editorial da Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade (FIDES) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI) da Universidade Federal do Ceará. Estagiário de Direito da Unidade de Direito Administrativo do escritório Schiefler Advocacia.

 

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[1] CARVALHO, Bárbara. “Música final” dos Beatles foi feita com IA e será lançada em 2023, diz Paul McCartney. CNN Brasil, 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/musica-final-dos-beatles-foi-feita-com-ia-e-sera-lancada-em-2023-diz-paul-mccartney/. Acesso em: 28 jun. de 2023

[2] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. CONTROLE DAS COMPRAS PÚBLICAS, INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: o paradigma da administração pública digital e os sistemas inteligentes na nova lei de licitações e contratos administrativos. 2021. 218 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2021. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/43103. Acesso em: 28 jun. 2023.

[3]  Ibid., p. 105.

[4] HARTMANN PEIXOTO, Fabiano; MARTINS DA SILVA, Roberta Zumblick. Inteligência artificial e Direito. Volume 1. Curitiba: Alteridade Editora, 2019. p. 84.

[5] ALMENARA, Igor. Microsoft cria IA capaz de imitar vozes a partir de amostras de 3 segundos. CanalTech, 2023. Disponível em: https://canaltech.com.br/inteligencia-artificial/microsoft-cria-ia-capaz-de-imitar-vozes-a-partir-de-amostras-de-3-segundos-235410/. Acesso em: 28 jun. 2023.

[6] OLIVEIRA, Isabela. Nova música dos Beatles: Paul McCartney e filho de Lennon esclarecem uso da IA. Giz Br, 2023. Disponível em: https://gizmodo.uol.com.br/nova-musica-dos-beatles-paul-mccartney-e-filho-de-lennon-esclarecem-uso-da-ia/#:~:text=O%20diretor%20Peter%20Jackson%20utilizou,revelou%20o%20título%20da%20música. Acesso em: 28 jun. 2023.

[7]  CRUZ, Branco Felipe. De Sinatra a The Weeknd, IA recria vozes famosas – e assusta o showbiz. Veja, 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/o-som-e-a-furia/de-sinatra-a-the-weeknd-inteligencia-artificial-recria-vozes-famosas. Acesso em: 29 jun. 2023.

 

 

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