O STF na disputa pela regulamentação do trabalho por aplicativos

por Helena Sayuri Ito de Souza*

A regulamentação do trabalho por aplicativos – talvez uma das disputas mais significativas da relação entre capital e trabalho no século XXI – adquiriu novos contornos no último mês de maio, a partir de uma decisão monocrática proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes (STF). 

No dia 19 de maio, quatro dias após uma paralisação a nível nacional de motoristas de aplicativo, que interromperam suas rotinas (e rendimentos) em prol de melhores condições de trabalho, o Ministro declarou a inexistência de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo e plataforma, cassando um acórdão do Tribunal Regional da 3ª Região e determinando a remessa dos autos da Justiça do Trabalho à Justiça Comum.

A decisão foi proferida no âmbito da Reclamação Constitucional nº 59.795/MG, ajuizada pela Cabify Agência de Serviços de Transporte de Passageiros Ltda., em face de julgamento do TRT-3 que a condenava ao pagamento de verbas trabalhistas e à anotação da CTPS de um motorista. 

Diversas associações, movimentos sociais e entidades sindicais manifestaram preocupação e perplexidade com a decisão, que afeta a tutela judicial dos conflitos entre trabalhadores plataformizados e empresas de aplicativo, cuja regulamentação ainda se encontra em fervorosa disputa

Os fundamentos da decisão: o vínculo de emprego e a licitude de formas alternativas de contratação

Na reclamação trabalhista originalmente ajuizada sob o nº 0010140-79.2022.5.03.0110, a 11ª Turma do TRT da 3ª Região, julgando recurso ordinário interposto pelo reclamante, motorista de aplicativo, reformou a sentença de piso e reconheceu a existência de vínculo de emprego com a Cabify Agência de Serviços de Transporte de Passageiros Ltda.

No caso, o TRT-3 entendeu que todos os requisitos da relação de emprego estavam presentes na relação entre o motorista e a empresa: a necessidade de cadastro pessoal do motorista no aplicativo demonstraria a pessoalidade; a realização de pagamento mensal pela empresa ao motorista configuraria a onerosidade; e a prestação contínua de atividade em atendimento aos fins normais da empresa pelo motorista caracterizaria a não eventualidade

O Tribunal Regional também fez uma análise detida do requisito da subordinação jurídica, entendendo que a sua existência na relação teria sido efetivamente comprovada pela sujeição do motorista às regras do aplicativo, sob pena de descadastramento, pela fixação unilateral do valor do serviço prestado, pela estipulação de desempenho pessoal e pela submissão do trabalhador a ordens afetas ao modo de prestação do serviço

Na Reclamação nº 59.795/MG, a tese defendida pela empresa e recepcionada pelo Ministro Alexandre de Moraes foi de que esse acórdão desrespeitaria diversos precedentes que, em conjunto, teriam consolidado a posição do STF de reconhecer a licitude de outras formas de relação de trabalho além da celetista, como a terceirização de serviços e a contratação comercial de transportadores autônomos de cargas. 

Assim, para preservar sua competência e restabelecer a autoridade das decisões do Supremo, os atos proferidos pela Justiça do Trabalho no referido processo foram cassados, e os seus autos remetidos à Justiça Comum.

A recepção dessa tese, apesar de sua aparente simplicidade, merece alguns destaques. Em primeiro lugar, importa observar que nenhum dos precedentes utilizados como paradigma de controle (ADC 48, ADPF 324, RE 958.252 – Tema 725-RG, ADI 5835 MC/DF e RE 688.223 – Tema 590-RG) tem por objeto a relação de trabalho por plataformas digitais, inexistindo jurisprudência da Suprema Corte acerca do tema que pudesse justificar, diretamente, a cassação do acórdão em prol da preservação da sua competência. 

Daí se deriva a generalidade do fundamento utilizado pela empresa, de que a decisão do TRT-3 seria contrária ao entendimento do Supremo, “pois entendeu que haveria vínculo de emprego entre motorista parceiro e a plataforma, quando este E. STF permite diversos tipos de contratos distintos da relação de emprego constituída pela CLT.

Entretanto, esse argumento é facilmente refutado, pois o reconhecimento de vínculo de emprego e a licitude de formas diversas de contratação de serviços são questões totalmente independentes. 

Ao reconhecer a existência de relação de emprego entre o motorista de aplicativo e a empresa, o TRT-3 apenas cumpriu seu papel institucional de, a partir da análise das provas produzidas, verificar, no plano dos fatos, o preenchimento de cada um dos requisitos que, em conjunto, constituem uma relação de emprego. 

Trata-se da aplicação regular da primazia da realidade sobre a forma, princípio orientador do Direito do Trabalho, segundo o qual importa, para a aplicação da lei, muito mais do que os termos do contrato formalmente pactuado, a prática concreta e habitual da prestação de serviços. Conforme ensina o doutrinador Mauricio Godinho Delgado:

O princípio do contrato realidade autoriza, assim, por exemplo, a descaracterização de uma pactuada relação civil de prestação de serviços, desde que no cumprimento do contrato despontem, concretamente, todos os elementos fático‑jurídicos da relação de emprego (trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e sob subordinação).

  Nesse sentido, o princípio da primazia da realidade garante ao trabalhador a possibilidade de pleitear, na Justiça, os direitos correspondentes às condições reais do labor por ele prestado. 

É um princípio de importância central à regulação protetiva do trabalho no Brasil, por ser frequente a tentativa, pelos empregadores, de se esquivar da prestação das garantias trabalhistas através da imposição de contratos fraudulentos (como ocorre, por exemplo, na pejotização) ou pela recusa à anotação da carteira de trabalho, o que mantém o trabalhador em condição de informalidade. 

Ou seja: ao contrário do que faz entender a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, o acórdão cassado do TRT-3 não se firmou na ilicitude de contratos não celetistas, mas na verificação de que, na realidade prática e cotidiana daquela relação, estavam presentes os caracterizadores do emprego, o que impõe o seu reconhecimento na esfera judicial e a condenação do empregador ao cumprimento de direitos trabalhistas.

 Pela mesma lógica, é possível entender que é lícita a pactuação de contratos distintos da relação de emprego, desde que, na prática, o contratado não preste o serviço nas mesmas condições de um empregado. Caso contrário, o que se tem é uma tentativa de burla à legislação trabalhista, que não se escusa pela livre iniciativa e não encontra alçada na autonomia da vontade. 

Totalmente equivocada e preocupante, portanto, a decisão proferida no âmbito da Reclamação nº 59.795. Primeiro porque se funda na autoridade de precedentes somente genérica e remotamente relacionados à matéria em questão, incapazes de constituir um paradigma verdadeiramente oponível à relação jurídica controvertida.

E segundo porque, ao posicionar a licitude de contratos alheios à regulamentação celetista como única premissa, ignora um preceito elementar do Direito do Trabalho, que atribui à Justiça do Trabalho a competência de, com fundamento no princípio da primazia da realidade, aplicar a lei conforme os fatos e circunstâncias reais da relação. 

A competência da Justiça do Trabalho: um elemento essencial à garantia de direitos

Além de cassar a decisão do TRT-3, o Ministro Alexandre de Moraes promoveu a remessa dos autos da reclamação trabalhista movida pelo motorista de aplicativo da Justiça do Trabalho à Justiça Comum.

Também aqui importa ressaltar que, dos precedentes utilizados como paradigma para o deferimento da Reclamação nº 59.795, nenhum trata da competência material da Justiça do Trabalho para julgar lides entre trabalhadores de aplicativo e respectivas empresas. Assim, para justificar a remessa dos autos à Justiça Comum, o Ministro recorre a um precedente do Superior Tribunal de Justiça: o Conflito de Competência nº 164.544/MG. 

Em um primeiro plano, já é possível constatar que a decisão monocrática vai no sentido contrário de uma previsão constitucional expressa (artigo 114, I, da Carta Magna), que atribui à Justiça do Trabalho a competência para julgar as ações oriundas da relação de trabalho, compreendida de forma ampla, não restrita à relação de emprego. 

É flagrante, ainda, a total inaplicabilidade do Conflito de Competência nº 164.544/MG ao caso da Reclamação nº 59.795. Além de não justificar uma atuação para  restabelecer a autoridade de decisão do Supremo, tendo sido julgado por outro órgão, tal precedente firmou a incompetência da Justiça do Trabalho para julgar uma ação cujo pedido era a reativação da conta de um motorista no aplicativo, com indenização por danos morais e materiais. 

Assim, o precedente do STJ se fundou no entendimento de que “Os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista, enquanto, no caso da Reclamação nº 59.795, os fundamentos de fato e de direito expressamente disseram respeito à relação de emprego entre as partes e veicularam a pretensão de recebimento de verbas trabalhistas. 

Desse modo, o deslocamento da causa à Justiça Comum não só esvazia por completo a competência da Justiça do Trabalho, mas frustra a própria razão de ser da ação movida pelo motorista de aplicativo.

Isso porque encerra sumariamente a discussão do vínculo de emprego e a possibilidade de garantia das verbas que haviam sido a ele deferidas pela Justiça do Trabalho, a dizer: o aviso prévio de 30 dias, o 13º salário proporcional, as férias acrescidas do terço constitucional, a multa do artigo 477, §8º, da CLT, a multa rescisória de 40% do FGTS e a anotação da CTPS, além de recolhimentos fiscais e previdenciários. São direitos cuja natureza alimentar e cuja importância à garantia de condições dignas de vida, em um país com mais de 1,5 milhão de trabalhadores por aplicativo, não podem ser ignoradas. 

A decisão do Ministro Alexandre de Moraes, portanto, apesar de proferida em julgamento de Reclamação Constitucional, constitui, efetivamente, uma tese de todo inovadora na jurisprudência do STF, e sinaliza uma preocupante postura de desproteção do trabalho plataformizado.

* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do Observatório Trabalhista do Supremo Tribunal Federal (REMIR/UnB).

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SOUZA, Ludmilla. Motoristas de aplicativos, como Uber e 99, fazem greve em todo o país. Agência Brasil, Brasília, 15 maio 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-05/motoristas-de-aplicativos-como-uber-e-99-fazem-greve-em-todo-o-pais. Acesso em: 4 jun. 2023.

OAB SP e entidades da advocacia manifestam preocupação sobre competência da Justiça do Trabalho. Jornal da Advocacia, [s.l.], 31 maio 2023. Disponível em:  https://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/noticias/oab-sp-e-entidades-da-advocacia-manifestam-preocupacao-sobre-competencia-da-justica-do-trabalho/. Acesso em: 4 jun. 2023.

SOUTO, Jorge Luiz. Desagravo ao Direito do Trabalho à Justiça do Trabalho. 29 maio 2023. Disponível em:  https://www.jorgesoutomaior.com/blog/desagravo-ao-direito-do-trabalho-e-a-justica-do-trabalho. Acesso em: 4 jun. 2023.

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. RORSum nº 0010140-79.2022.5.03.0110. Relatora: Des. Juliana Vignoli Cordeiro. Data de julgamento: 15 jun. 2022.  Data de publicação: 21/06/2022.

 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 59.795/MG. Relator: Min, Alexandre de Moraes. Data de julgamento: 19 maio 2023. DJE: 23/05/2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6643597. Acesso em: 04 jun 2023.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 16. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2017, p. 223.

 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 164.544/MG. Relator: Min. Moura Ribeiro. Data de julgamento: 28/08/2019. DJE: 04/09/2019.

 GÓES, Geraldo; FIRMINO, Antony; MARTINS, Felipe. Painel da Gig Economy no setor de transportes do Brasil: quem, onde, quantos e quanto ganham. Carta de Conjuntura IPEA. [s.l.], 10 maio 2022. Disponível em:  https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/tag/motoristas-de-aplicativos/. Acesso em: 4 jun. 2023.

Imagem disponível em: CONTICOM – Inconstitucionalidades da Reforma Trabalhista (VII)

 

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