O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça e sua aplicação no Direito Penal

Por Anna Irene Nunes Mendes de Paula*

O Grupo de Trabalho responsável por desenvolver o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelas Portarias n. 27 e n. 116 de 2021 do Conselho Nacional de Justiça, foi criado com o objetivo de desenvolver um guia de atuação do judiciário em processos em que haja a necessidade de uma atenção direcionada à questão de gênero e seus impactos no deslinde de uma ação. Composto por 21 representantes de diversos setores da Justiça e da Academia, o grupo trabalhou durante seis meses na elaboração do documento, reconhecendo, assim, a importância de abordar a desigualdade de gênero no sistema judicial brasileiro. 

Este protocolo, portanto, representa um avanço institucional significativo, pois reconhece que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas influenciam a produção e aplicação do direito; promovendo a criação de uma cultura jurídica que reconheça e defenda os direitos de todas as mulheres e meninas. A implementação de lentes de gênero na interpretação do direito ganhou destaque, especialmente após a promulgação da Lei Maria da Penha e a criação de diversas iniciativas para garantir sua aplicação, como as Jornadas de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça e o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar.

O documento, em sua introdução, também aborda a influência do patriarcado, machismo, sexismo, racismo e homofobia em todas as áreas do direito, não se restringindo apenas à violência doméstica. Observando as práticas de países latino-americanos como México, Chile, Bolívia, Colômbia e Uruguai, além das decisões de Cortes Regionais e Internacionais de Direitos Humanos, o protocolo reforça a necessidade de um tratamento adequado aos casos de direitos das mulheres. O Conselho Nacional de Justiça, portanto, busca fortalecer cotidianamente o diálogo sobre interseccionalidade e a defesa dos direitos humanos, refletida em decisões importantes do Supremo Tribunal Federal e outras instâncias.

Em conformidade, as associações de magistratura – como AMB, Anamatra e Ajufe –  têm discutido a necessidade de capacitar magistrados sobre igualdade de gênero e apresentaram solicitações ao Conselho Nacional de Justiça acerca do tema. A colaboração com a sociedade civil, portanto, ressalta a urgência de incorporar práticas que reduzam o impacto desproporcional das normas sobre determinados grupos. Com o apoio ao modelo latino-americano de investigação de feminicídios, o Brasil busca garantir que a violência contra a mulher seja tratada de forma diferenciada.

Em suma, o protocolo visa superar obstáculos à igualdade de dignidade entre mulheres e homens, garantindo acesso justo à justiça conforme a Constituição Federal de 1988.

O protocolo aborda a adoção de uma perspectiva de gênero em diversas áreas do direito. Para facilitar a compreensão e a discussão deste tema, concentraremos nossa análise nos aspectos relacionados ao Direito Penal.

No Direito Penal, as condutas criminosas são tipificadas, destacando-se infrações que consideram a vulnerabilidade do gênero feminino para proteger certos bens jurídicos. O objetivo é salvaguardá-los de ofensas que, muitas vezes, se repetem em determinados grupos. A identificação da violência de gênero nas relações individuais e a tipificação dessas condutas demonstram uma sociedade ainda marcada pela hierarquia entre os gêneros e pela resistência à igualdade substancial. Portanto, é essencial que a sociedade se organize não só para preservar direitos, mas também para atenuar os efeitos das práticas delitivas. O princípio da integridade judicial, orientado pela convergência da lei e dos direitos humanos, deve alinhar-se ao dever de julgar com perspectiva de gênero, visando eliminar a desigualdade que afeta as mulheres vítimas de violência, reduzir seu sofrimento no sistema judicial e reconhecer-lhes o direito a uma vida digna e livre de violência, através de decisões que neutralizem as relações de poder assimétricas.

Violência Obstétrica

Embora o Brasil não tipifique a violência obstétrica como crime autônomo, tratados e documentos internacionais, a Constituição Federal, a legislação infraconstitucional e regulamentos técnicos permitem a responsabilização criminal quando tais violações ocorrem durante a prestação de serviços essenciais e emergenciais às parturientes. A violência obstétrica pode ser catalogada como psíquica, moral e física, conforme os ciclos de vida e reprodutivo das mulheres. A Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou sete tipos de violência obstétrica: abuso físico, abuso sexual, abuso verbal, preconceito e discriminação, mau relacionamento entre profissionais de saúde e pacientes, falta de estrutura nos serviços de saúde, e carência de atendimento devido às deficiências do sistema de saúde. Essa forma de violência viola o direito das mulheres a um atendimento digno, livre de estereótipos de gênero, oferecendo-lhes cuidados adequados e profissionais capacitados. Em 2011, o Comitê CEDAW responsabilizou o Estado brasileiro por violações aos direitos humanos no caso Alyne da Silva Pimentel, destacando a necessidade de regulamentar as atividades dos provedores de saúde e garantir o acesso à justiça e à saúde.

Questão da Autoria no Aborto e no Infanticídio

Nos crimes de aborto e infanticídio, a autoria frequentemente recai sobre a mulher, exigindo atenção especial dos magistrados à influência dos estereótipos nos argumentos da acusação e da defesa. No infanticídio, estereótipos sobre “maternidade sadia” podem prejudicar os julgamentos. Em relação ao aborto, a constitucionalidade da tipificação está em discussão no Supremo Tribunal Federal há quase uma década. Decisões importantes, como a ADPF 54 (2012), que considerou atípica a interrupção da gravidez em casos de anencefalia, e o HC 124.306 (2016), que decidiu pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto até a 12ª semana, demonstram uma abordagem de julgamento com perspectiva de gênero. Estas decisões buscam afastar estereótipos sobre maternidade e sexualidade e alinham-se ao direito à saúde e à informação, considerando as condições precárias em que muitas mulheres vivem.

Dignidade Sexual

Na apuração de delitos contra a dignidade sexual, é essencial julgar com uma perspectiva histórica e social dos comportamentos considerados aceitáveis para mulheres e homens. Estereótipos e expectativas sociais influenciam a interpretação da ausência de consentimento para atos sexuais, o que pode levar a distorções importantes na apuração dos fatos. Campanhas como “não é não” e #MeToo refletem a intenção de proteger as mulheres e influenciam o Direito Penal, que tutela a dignidade sexual. A ausência de consentimento é suficiente para configurar a violação, independentemente do dissentimento explícito da mulher. Além disso, a incapacidade da vítima de consentir, por exemplo, em casos de embriaguez, deve ser considerada sem depreciar a vítima. Denúncias tardias de violência sexual devem ser analisadas com prudência, reconhecendo que o silêncio ou a demora podem resultar de desigualdades e não implicam presunção de falsidade.

Perseguição (Stalking)

Os atos de perseguição contra mulheres geralmente apresentam uma escalada na violência, frequentemente culminando em feminicídios e lesões corporais. O Código Penal, através do art. 147-A, parágrafo primeiro, inciso II, agravado pela Lei n. 14.132/2021, estabelece punições mais severas para crimes de perseguição motivados pelo gênero feminino. É importante notar que a reiteração de atos, mesmo que isoladamente não configurem crimes, pode caracterizar a perseguição, especialmente quando se manifestam através de vigilância ou presença indesejada que intimida a vítima. O Formulário Nacional de Avaliação de Risco fornece subsídios para ajustar a conduta ao delito de stalking, sendo crucial na instrução do caso histórico de comportamento abusivo.

Pornografia de Vingança

A pornografia de vingança, tipificada no art. 218-C do Código Penal, é uma forma de violência de gênero que causa danos profundos à imagem e honra das mulheres. A exposição de vídeos e imagens íntimas, frequentemente motivada por vingança após o término de uma relação, afeta desproporcionalmente as mulheres devido às expectativas sociais diferenciadas sobre sexualidade. A divulgação de tais materiais é um instrumento de controle e punição, agravando a vulnerabilidade e estigmatização das vítimas. A legislação brasileira reconhece a gravidade desse ato e busca proteger a integridade das mulheres contra essas violações.

Escusas nos Crimes Patrimoniais

A isenção de pena e a representação previstas nos arts. 181 e 182 do Código Penal precisam ser reinterpretadas à luz da Convenção de Belém do Pará, que enfatiza a autonomia patrimonial das mulheres. Esses dispositivos, concebidos em um contexto histórico de comunhão total de bens, não reconhecem a independência econômica das mulheres, dificultando a caracterização da violência patrimonial prevista na Lei Maria da Penha. O controle de convencionalidade é essencial para garantir que essas isenções não perpetuem a subordinação das mulheres.

Feminicídio

A Lei n. 13.104/2015 introduziu o feminicídio no Código Penal, qualificando o homicídio de mulheres em contextos de violência doméstica e discriminação de gênero. Essa tipificação destaca a necessidade de tratar a violência de gênero de forma diferenciada, investigando, processando e executando essas manifestações com sensibilidade para as dinâmicas sociais, econômicas e culturais que perpetuam a hierarquia de gênero. Além de alinhar-se às diretrizes da CEDAW, a tipificação do feminicídio visa a transformação cultural e a promoção da igualdade real de gênero. Pesquisas mostram que a violência contra mulheres aumentou significativamente durante a pandemia, sublinhando a urgência de medidas eficazes para enfrentar essa realidade.

Conclusão

O Direito Penal brasileiro deve incorporar, através de diversas delimitações e regulamentações, uma abordagem que visa proteger as mulheres da violência de gênero. Desde a tipificação de crimes específicos, como a violência obstétrica e a pornografia de vingança, até a adaptação das isenções de pena para refletir a autonomia das mulheres, o sistema deve ser alinhar para reduzir as desigualdades e promover uma justiça mais equitativa.

* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-presidente e membro do Conselho de Representantes. Colaboradora-discente do projeto de extensão HABEAS LIBER, sediado na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Foi monitora de Teoria Geral do Processo 2, ministrada pelo docente Vallisney de Souza Oliveira e Sociologia Jurídica, por Alexandre Veronese na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Coordenadora e pesquisadora do Centro de Estudos Constitucionais Comparados (CECC/UnB) e Pesquisadora voluntária do grupo de pesquisa ‘Direito, gênero e Famílias (CNPq/UnB)

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