Por Gustavo Machado Rebouças*
Conceituar os direitos fundamentais não se revela empreitada fácil. Apesar de séculos de desenvolvimento, persistem acalorados debates doutrinários que gravitam em seu entorno. Discute-se até mesmo qual é a “melhor” terminologia a ser empregada: direitos fundamentais? Direitos humanos? Direitos naturais? Direitos subjetivos?
Para fins de desenvolvimento do presente texto, assumir uma posição é medida que se impõe (sem qualquer pretensão, por óbvio, de ter a última palavra). Neste desiderato, parece adequado trilhar o caminho de Dimoulis e Martins (2018, p. 52), para quem
Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas e jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.
Resvalando por esta senda, é possível extrair alguns elementos basilares: um subjetivo (relação entre pessoa e Estado), um teleológico (finalidade de limitar o poder estatal) e um topográfico (localização, via de regra, em uma Constituição[1]).
Uma vez assentada a definição adotada, importa perscrutar aspectos críticos no que diz com sua titularidade, notadamente com o escopo de responder à seguinte [tormentosa] questão: mortos podem ser titulares de direitos fundamentais?
É possível, de partida, definir uma zona de certeza positiva: são titulares dos direitos fundamentais, por força do princípio da universalidade, todas as pessoas, “o que, por sua vez, não significa que não possa haver diferenças a serem consideradas, o que, inclusive, em alguns casos, por força do princípio da igualdade” (SARLET, 2008, p. 210). Lado outro, ergue-se uma zona cinzenta (ou de penumbra, ou, ainda, de incerteza): algumas figuras jurídicas suscitam dúvida sobre a possibilidade ou não de gozo de direitos fundamentais. Lançar-se-á luz sobre uma, em específico: a do morto.
Pela intelecção do artigo 2° do Código Civil (BRASIL, 2002), “a personalidade civil tem início do nascimento com vida”. De seu turno, o artigo 6° do diploma normativo assevera que “a existência da pessoa natural termina com a morte”. Sobre este dispositivo, a doutrina dá o tom: “A vida do indivíduo está subordinada à atividade cerebral. E [a ciência] enuncia que a vida termina com a ‘morte cerebral’, ou morte encefálica” (PEREIRA, 2017, online). Tem-se, então, que mortos são aqueles cuja atividade cerebral deu-se por finda.
Nesta toada, Dimoulis e Martins (2018, p. 109) assim se manifestam: “A pessoa física também pode ser titular de direitos fundamentais após a sua morte. Isso vale em relação à honra e ao respeito de opções decorrentes de crenças e também ao respeito de sua última vontade sobre os destinos de seus bens e direitos”.
O posicionamento em apreço, entrementes, não merece prosperar. Ora, já se afirmou, alhures, que direitos fundamentais correspondem a direitos subjetivos. Estes, no que lhes toca, concernem às “permissões dadas por meio de normas jurídicas” (TELLES JUNIOR, 2014, p. 307). Goffredo Telles Junior (2014, p. 322) dedica um capítulo da obra “Direito Quântico” ao estudo dos direitos em comento. Estribado em interessante argumento, pontifica:
Um náufrago numa ilha deserta e desconhecida não tem Direitos Subjetivos. Pois, obviamente, numa ilha deserta, não existem as normas autorizantes do Direito Objetivo. Não existem, nessa ilha, as normas pelas quais a coletividade confere, precisamente, aquelas permissões que constituem os Direitos Subjetivos. O náufrago tem as faculdades de sua natureza, mas não tem direitos.
Analogamente a este viés intelectivo, salienta Virgílio Afonso da Silva (2021, pp. 105-106): “A titularidade de direitos fundamentais por pessoas […] já mortas, além de não ser prevista explicitamente pela Constituição, tampouco encontra fundamento razoável na legislação ordinária”.
Demais disso, o direito subjetivo, componente da relação jurídica que é, deve ter por sujeito uma pessoa, como corolário do princípio da alteridade (NADER, 2014, online). E “o cadáver não sendo mais pessoa, com a morte desta transmuda-se em coisa. E como tal, ainda que fora de comércio, há de ser suscetível de posse e proteção possessória” (THEODORO JR., 1991, p. 175).
Desta feita, “quem já morreu não manifesta seu pensamento (art. 5°, IV), não tem consciência ou crença (art. 5°, VI), não exerce trabalho ou profissão (art. 5°, XIII)” (SILVA, 2021, p. 105). Isso não quer significar, no entanto, que a morte de uma pessoa a relegue ao oblívio, sendo dado aos vivos praticarem contra eles atos ao seu alvedrio. Se assim fosse, o Código Penal não reservaria um capítulo para crimes contra o “respeito aos mortos”[2]. Costuma-se falar, neste passo, e apenas a título exemplificativo, que mortos são titulares do direito à honra. No entanto, o que existe, a bem da verdade, é uma “associação equivocada entre o dever de proteger certos bens ou interesses a existência de um direito”.
Velejando por esta singra, parece mais acertado falar não em um direito dos mortos, mas em um dever de proteção de alguns bens e interesses. A própria noção de dever jurídico corrobora esta perspectiva: “[Dever jurídico] consiste na exigência que o Direito faz a determinado sujeito para que assuma uma conduta em favor de alguém” (NADER, 2014, online). E neste mesmo cenário, Virgílio Afonso da Silva (2021, p. 108) tece interessante observação:
O dever estatal de proteger a honra de quem já morreu é tanto mais intenso quanto mais próximo do fim da vida a ofensa ocorrer. Em outras palavras, quanto mais nos afastamos do período em que a pessoa estava viva, tanto menor será esse dever de proteção, até o momento em que ele desaparecerá. Aquele que escrever um obituário em jornal apenas para caluniar alguém que tenha morrido no dia anterior poderá sofrer alguma consequência jurídica. Mas não faria qualquer sentido supor que alguém que escrevesse um artigo, no mesmo jornal, com afirmações caluniosas sobre um morador da capitania de São Vicente no século XVI sofra qualquer consequência no século XXI.
Por todo o exposto, chega-se à conclusão de que o melhor caminho a ser gizado é não aquele que reconhece a titularidade dos direitos fundamentais aos mortos (por uma incompatibilidade lógica e jurídica, fundada sobretudo na Propedêutica do Direito), mas sim a que propugna a existência de um dever de proteção (e tutela) de determinados bens e interesses.
* Graduando em Direito pela Universidade Regional do Cariri (Urca).
[1] Adota-se, aqui, a fundamentalidade formal (SILVA, 2021, p. 100). Não se ignora, contudo, a existência de direitos fundamentais atípicos, os quais, dada a sua amplitude, não serão aqui abordados.
[2] Mencione-se, ainda que en passant, crítica a esse nomen juris: “Na verdade, o objeto jurídico tutelado não é o respeito aos mortos, o que induziria à falsa conclusão de que o Direito faz respeitar os mortos, que não são sujeitos de direito. O objeto jurídico realmente tutelado é o sentimento de respeito que os vivos têm pelos mortos, ou seja, um direito dos vivos, à evidência” (MAZZILLI, 2009, p. 99).
Referências
BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 17 jun. 2023.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
MAZZILI, Hugo Nigro. O crime de violação de sepultura. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 32, pp. 93-119, abr./jun. 2009.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 36 ed. São Paulo: Editora Forense, 2014.PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 1. 30 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.Da SILVA, Virgílio Afonso. Direito Constitucional brasileiro. 1° ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.TELLES JUNIOR, Goffredo. Direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
THEODORO JR., Humberto. Posse e usucapião (direitos reais I). Rio de Janeiro: Aide Ed., 1991.