Por Helena Sayuri Ito de Souza*
Em meados de maio deste ano, uma parcela significativa de entidades sindicais, pesquisadores, entidades da advocacia e movimentos sociais recepcionou com perplexidade uma decisão do Ministro Alexandre de Moraes que mudou o tom do debate sobre a regulamentação do trabalho por aplicativos.
Monocraticamente, o Ministro cassou um acórdão da Justiça do Trabalho e determinou a remessa dos autos à Justiça Comum, declarando a inexistência de vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e plataformas (RCL 59.795/MG). A análise de seus fundamentos pode ser conferida na coluna do PJED do Observatório da Reforma Trabalhista no STF [1].
Uma vez deflagrada a disputa pelos sentidos do trabalho uberizado no STF, com a fundamentação de Alexandre de Moraes na Reclamação nº 59.795/MG, outras decisões em mesmo sentido a seguiram, de modo que se constata que, após seis meses, já vem se delineando uma atuação consistente da Suprema Corte brasileira no esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho e na imposição de óbices à garantia dos direitos dos trabalhadores, agora pela via da Reclamação Constitucional.
Todas as decisões compartilham a mesma premissa: a de que a Justiça do Trabalho, ao reconhecer a existência do vínculo de emprego em relações formalizadas em moldes alheios à regulamentação celetista, desobedece precedentes em que o STF firmou a licitude de formas diversas de contratação de serviços, especialmente a ADPF 324, a ADC 48 e o RE 958.252.
Com efeito, os precedentes citados firmaram a licitude da terceirização de atividade-meio e atividade-fim e a constitucionalidade da lei do transporte autônomo de cargas (Lei nº 11.442), sendo que foi fixado pelo RE 958.252 o Tema 725 de Repercussão Geral, segundo o qual “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas […]”.
Mas o que efetivamente se empreende através dessas Reclamações pelos Ministros do STF é a ampliação e o escalonamento das razões que fundamentaram esses paradigmas. Isso é bastante evidente no caso dos trabalhadores de aplicativo, subsumidos a um modelo de gestão – a uberização – em muito diferente da terceirização, não abrangidos pelas disposições da Lei nº 11.442 e que também não se configuram como pessoas jurídicas nos contratos firmados com as empresas de aplicativo.
Assim, no que diz respeito a essa categoria, os precedentes supostamente feridos pela Justiça do Trabalho são, nas palavras do doutrinador e desembargador Jorge Souto Maior, “falsos paradigmas” [2]. Esse diagnóstico também foi feito por uma recente pesquisa da ANAMATRA, que analisou os recentes julgados do STF acerca da competência material da Justiça do Trabalho, cujos resultados, divulgados na Nota Técnica nº 3/2023, alertam:
(vi) ocorre a falta do requisito necessário à admissão da reclamação constitucional, qual seja, a de estrita aderência do caso ao precedente paradigma, em processos em que se discute o reconhecimento de vínculo empregatício pela aplicação do artigo 3º da CLT, bem como a ocorrência de fraude, nos termos do art. 9º. da CLT [3].
Não só. A interpretação aplicada nas Reclamações, de que a licitude das formas diversas de contratação de serviços inviabilizaria a identificação de situações de fraude e o consequente reconhecimento do emprego pela Justiça do Trabalho, em verdade, contraria a ratio decidendi dos próprios precedentes em que se baseiam. A mais clara evidência disso é que o próprio Ministro Alexandre de Moraes, no julgamento da ADPF 324, fez constar em seu voto que:
Da mesma maneira, caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos.
Apesar disso, o decidido na Reclamação nº 59.795/MG continua encontrando ecos no Supremo.
No julgamento da RCL nº 63.414/MG, o Ministro Gilmar Mendes cassou acórdão do TRT-3 que reconhecia o vínculo de emprego entre motorista e empresa de transporte por aplicativo. Foi contundente em sua oposição à Justiça Especializada, afirmando que “a engenharia social que a Justiça do Trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria.”
Por argumentos de ordem econômica e consequencialista, o Ministro também fundamenta que “é essencial para o progresso dos trabalhadores brasileiros a liberdade de organização produtiva dos cidadãos” e que “não faz qualquer sentido manter as amarras de um modelo verticalizado, fordista, na contramão de um movimento global de descentralização”. Assim sintetiza:
Tendo em vista o entendimento firmado no julgamento da ADPF 324, conclui-se que, do mesmo modo que, via de regra, não se configura relação de emprego entre a contratante e o empregado da empresa contratada na terceirização, também não há como se reconhecer o vínculo empregatício entre os empresários individuais/sócios da pessoa jurídica ou profissionais autônomos contratados para a prestação de serviços e a empresa contratante.
Também aqui a interpretação do precedente se escalona de uma forma totalmente equivocada. Veja-se: na terceirização, a relação de emprego não se configura entre o empregado contratado pela empresa terceirizada e a empresa tomadora de serviços, “via de regra”.
O próprio Ministro não oculta a exceção à regra, admitida pelo ordenamento jurídico, de que a relação de emprego há de se configurar diretamente entre o trabalhador e a empresa tomadora na hipótese de terceirização fraudulenta, que deverá ser reconhecida pela Justiça do Trabalho. Conforme ele mesmo fundamentou no voto do RE 958.252:
Também a Justiça do Trabalho estará diante do grande desafio de coibir abusos, nomeadamente o uso ardiloso da terceirização como expediente de pulverização da cadeia produtiva com vistas a impedir, em qualquer altura do processo produtivo, que alguma empresa arque com os direitos trabalhistas envolvidos.
Assim, se nem o paradigma ora assumido – a terceirização – comporta a total presunção de licitude dos contratos firmados e o afastamento da competência da Justiça do Trabalho para reconhecer fraudes, de que modo poderiam esses precedentes justificar que a uberização, modelo de gestão que em muito difere da terceirização, os comportaria?
O Ministro Luiz Fux adotou medida semelhante nas Reclamações nº 59.404/MG e nº 61.267/MG, fundamentando que o Regional desconsiderou entendimento do STF que “contempla, a partir dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, a constitucionalidade de diversos modelos de prestação de serviços no mercado de trabalho”.
Em sentido parecido, o Ministro Zanin firmou, na RCL nº 63.823/SP, que ao reconhecer a relação de emprego, “a Justiça do Trabalho desconsiderou os aspectos jurídicos relacionados à questão, em especial os precedentes do Supremo Tribunal Federal que consagram a liberdade econômica e de organização das atividades produtivas”.
Na RCL nº 60.741/PB, Nunes Marques também reiterou que o reconhecimento da relação de emprego encontra desconformidade com o entendimento do Supremo fixado no Tema 725. Além disso, afirmou que “Na hipótese, não foi fornecido qualquer elemento concreto que indique exercício abusivo da contratação com a intenção de fraudar a existência de vínculo empregatício”.
Nesse ponto, é importante pontuar que, não só nesse caso específico, mas em cada um dos acórdãos cassados, o reconhecimento do vínculo de emprego se deu pela constatação, fundamentada a partir da análise fática e do cotejo das provas produzidas pelas partes, de que a realidade vivida pelo trabalhador configurou efetiva relação de emprego, com a presença da pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação.
Isso não é uma inovação; trata-se de exercício de competência própria da Justiça do Trabalho, conforme prevista no art. 114, I, da CF/88. A Reclamação Constitucional, ela sim, é um meio processual totalmente incabível à realização de exame probatório, razão pela qual o juízo realizado pelo Ministro Nunes Marques, acerca da ausência de elementos concretos de abusividade na contratação, é uma violação crassa do devido processo legal.
E como também identifica a Nota Técnica da ANAMATRA, o enquadramento jurídico dos trabalhadores que tem sido assim realizado pelo STF tem como pressuposto a necessidade da verificação de fatos e provas, o que constitui um “óbice intransponível à admissibilidade da Reclamação Constitucional” [4].
Ainda, ao contrário do que fazem entender as decisões monocráticas, a atuação da Justiça do Trabalho também não é uma negação ultrapassada e irracional de que contratações alheias à CLT existem e podem existir, em afronta aos ditames onipotentes do mercado. Afinal, como alerta Ana Frazão [5], a criação de um espaço em que agentes econômicos podem fraudar a lei sem consequências relevantes é um incentivo natural ao exercício abusivo dessa capacidade e ao desrespeito às regras do jogo, o que é profundamente danoso à liberdade econômica, à livre iniciativa e à livre concorrência que o Supremo tanto visa proteger.
O horizonte que se vislumbra com essa gradativa cimentação do entendimento de que relações contratuais alheias à CLT detêm uma presunção absoluta de validade é um em que, nas palavras de Cássio Casagrande, “contrato de trabalho só haverá se o empregador o quiser” [6], já que ele poderá legitimamente contratar falsos autônomos, falsos terceirizados, falsos sócios, falsas pessoas jurídicas, pois o ordenamento jurídico terá admitido que a realidade dos fatos pode ser ignorada.
Para que esse cenário mude, cabe ao Supremo uma mudança no papel que ele vem assumindo frente às complexidades do mundo do trabalho contemporâneo. Não como o porteiro kafkiano que, como bem aponta Escrivão Filho [7], corporifica um obstáculo ao acesso à justiça e ao direito pela sociedade, mas sim como o verdadeiro guardião da Constituição e dos direitos sociais fundamentais da classe trabalhadora.
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* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do Observatório Trabalhista do Supremo Tribunal Federal (REMIR/UnB).
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[1] DE SOUZA, Helena Sayuri Ito. O STF na disputa pela regulamentação do trabalho por aplicativos. Portal Jurídico dos Estudantes de Direito. Brasília, 7 jul. 2023. Disponível em: https://www.pjed.com.br/o-stf-na-disputa-pela-regulamentacao-do-trabalho-por-aplicativos/ Acesso em: 28 nov. 2023.
[2] SOUTO, Jorge Luiz. Desagravo ao Direito do Trabalho à Justiça do Trabalho. 29 maio 2023. Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/desagravo-ao-direito-do-trabalho-e-a-justica-do-trabalho. Acesso em: 28 nov. 2023.
[3] ANAMATRA. Nota Técnica nº 3/2023. Análise dos recentes julgados do STF acerca da competência da Justiça do Trabalho no Brasil. [s.l.], 25 set. 2023. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/images/DOCUMENTOS/2023/Pesquisa_Anamatra_USP_1.pdf Acesso em: 28 nov. 2023.
[4] ANAMATRA. Nota Técnica nº 3/2023. Análise dos recentes julgados do STF acerca da competência da Justiça do Trabalho no Brasil. [s.l.], 25 set. 2023. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/images/DOCUMENTOS/2023/Pesquisa_Anamatra_USP_1.pdf Acesso em: 28 nov. 2023.
[5] FRAZÃO, Ana. Até quando o STF vai virar as costas para a realidade?. JOTA. [s.l.], 31 maio 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/ate-quando-o-stf-vai-virar-as-costas-para-a-realidade-31052023 Acesso em: 28 nov. 2023.
[6] CASAGRANDE, Cássio. STF amplia reforma trabalhista de maneira arbitrária. JOTA. [s.l.], 02 out. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/stf-amplia-reforma-trabalhista-de-maneira-arbitraria-02102023. Acesso em: 28 nov. 2023.
[7] ESCRIVÃO FILHO, Antonio. O Supremo Tribunal Federal em face aos direitos humanos. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, maio 2018. Disponível em: http://www.jusdh.org.br/files/2018/06/Ana%CC%81lise-43_-FES_Porteiro-ou-guardi%C3%A3o.pdf. Acesso em: 28 nov. 2023.