Por Yasmin Ramos*
Os sistemas de governo são organizações de caráter complexo e, ao mesmo tempo, abrangem uma diversidade de elementos. Diante dessa realidade, torna-se imprescindível compreender a trajetória histórica e os seus desdobramentos por meio dos variados contextos sociais, políticos e econômicos que se estabeleceram ao longo do tempo. Além disso, tomando como exemplo o sistema político da Venezuela, fundamentado em sua Constituição e nas medidas afirmativas que dela emanam. Sendo essa a proposta da presente reflexão, serão apresentadas considerações sobre os fatos pesquisados, incitando o leitor a refletir sobre o tema.
1. Formas e sistemas de governo
Em uma de suas abordagens, Dallari¹ analisa as diferentes formas de governo existentes. Ele examina as características, vantagens e desvantagens de cada uma delas (monarquia e república); enfatiza, também, a importância de uma forma de governo que assegure a participação popular e proteja os direitos individuais e coletivos. Assim, segundo Bobbio², nas monarquias os negócios públicos são tratados por um monarca que se coloca acima de toda a sociedade; a República, por sua vez, se contrapõe à forma monárquica de governo, porquanto nega a hereditariedade do posto de chefe de Estado. Esse, é eleito (eleição direta ou indireta) na pessoa de um único mandatário ou grupo de pessoas.
Sobre os sistemas de governo, o eminente doutrinador Dallari³, leciona que a estrutura de um Estado é influenciada pelo sistema de governo adotado. Este refere-se à forma como o poder político é exercido e organizado em um país. O autor analisa detalhadamente diferentes sistemas de governo, como a democracia, a autocracia e o totalitarismo, discutindo as características, as vantagens, as desvantagens e a garantia de participação popular nos negócios de Estado, assegurada por cada uma dessas vertentes. Além disso, as formas representativas são elementos centrais de uma Teoria Geral do Estado e estão diretamente relacionadas aos sistemas de governo. Dallari⁴ explora diferentes modelos de configuração política, como parlamentarismo e presidencialismo e discute, ainda, como a representação se manifesta e como os representantes devem se portar, consoante a corrente ideológica dos mandatários. Assim, os sistemas de governo consagrados são, na pena de Cintra⁵: presidencialismo, no qual as funções de governo são bem definidas e estratificadas em poderes estanques, quais sejam: executivo, legislativo e judiciário; parlamentarismo, que se caracteriza fundamentalmente por poder executivo de legitimação indireta, pois é formado a partir de assembleia, e não de eleição direta; o governo necessita da confiança da maioria do parlamento para se manter no poder; a Assembleia pode ser dissolvida antes do término da legislatura, convocando-se novas eleições; a existência de um chefe de governo e de um chefe de Estado. Segundo Sartori⁶, existe ainda dentre o rol dos sistemas de governo o semipresidencialismo, que tem como características básicas a eleição popular (direta ou indireta) do chefe de Estado para mandato determinado; compartilhamento de poder do chefe de Estado com o Primeiro-Ministro. Nessa esteira, analisar-se-á a aderência da República da Venezuela aos princípios que norteiam a forma e o sistema de governo, segundo a doutrina abalizada.
2. Estrutura política da Venezuela e a aderência do país aos princípios da representatividade
A Venezuela adota a forma de governo republicana, na qual o chefe de Estado é eleito por meio de eleições diretas. O país possui uma Constituição que estabelece a separação dos poderes entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O chefe de Estado é representado pelo presidente, que exerce as funções executivas e é eleito pelo voto popular para um mandato determinado (seis anos).
Ressalte-se que a Venezuela viveu sob a égide de uma democracia tímida entre os anos de 1945 a 1948 e, na sequência, foi comandada por uma ditadura na década de 50. Em 1957, forças oposicionistas ao governo iniciaram uma frente única contra o governo ditatorial, derrubado em janeiro de 1958. Com a queda, firmou-se o Pacto de Punto Fijo, traduzido como acordo de governabilidade entre os partidos que lhe foram signatários e as elites⁷. A situação social venezuelana entrou em declínio na década de 80, com inflação em alta, queda do nível de renda e baixas expectativas quanto à melhoria do nível de vida, em contraponto ao período de prosperidade econômica das décadas precedentes, no qual a população conquistara melhorias sociais e um certo nível de emancipação de agremiações populistas. O descontentamento descambou para manifestações populares de dimensões nacionais que reivindicavam mais poderes ao cidadão e menos aos partidos políticos⁸.
Repelidas as manifestações e debeladas duas tentativas de golpe militar intentadas pelo Coronel Hugo Chávez em fevereiro e novembro de 1992, as tentativas de restauração política romperam com o Pacto de Punto Fijo e geraram descontentamento pela baixa efetividade das reformas política e econômica propostas. Isso resultou na eleição do Coronel Chávez para presidente daquele país, em 31 de outubro de 1998. Na sequência, o novo presidente convocou um referendo visando à realização de uma Assembleia Nacional Constituinte para a elaboração de uma nova Constituição, composta por correntes antagônicas, segundo Diniz e López⁹. Em 15 de dezembro de 1999, a Constituição foi promulgada com previsão da forma republicana de governo e sistema presidencialista, democrático e com eleições periódicas para a escolha do representante, que terá mandato por tempo determinado. A representatividade democrática será exercida por meio de Referendo; Assembleia de cidadãos e cidadãs; participação na gestão pública; participação no estímulo da economia social; participação na integração e funcionamento dos órgãos do poder; participação na defesa, na reforma e na criação Constitucional. Todavia, segundo Carmo¹⁰, as instituições venezuelanas ainda não estão definidas em sua plenitude, pois mudam de acordo com a dinâmica dos conflitos sociais e políticos. Esta situação de indefinição provoca consequências sobre a própria capacidade do Estado de atender as demandas sociais e sobre a própria ideia de democracia participativa no país. No entanto, é importante ressaltar que a estrutura política venezuelana tem sido objeto de debate e controvérsia nos últimos anos. O país enfrenta uma crise política e institucional, com acusações de violações dos direitos humanos, restrições à liberdade de imprensa e fragilidade das instituições democráticas. Em virtude também das críticas contundentes, que exerceram uma influência relevante sobre a concentração de poderes e restrição da participação popular, o que leva a questionamentos sobre a efetiva democracia no país. Além disso, a população venezuelana tem emigrado para outros países próximos buscando maior qualidade de vida. Porém, o país atualmente vive uma situação de calamidade, com escassez de suprimentos básicos e restrição aos direitos essenciais concedidos.
3. Atualidade
A eficácia da atual constituição da Venezuela foi prejudicada devido à concentração de poder no Executivo, graças à atuação do presidente Nicolás Maduro no sentido de alijar os demais entes de poder de suas funções precípuas. O combate acirrado a opositores políticos as prisões arbitrárias de dissidentes e as alegações de tortura e inobservância de direitos humanos, aliada à falta de independência do Judiciário e do Legislativo, são apontados por organismos internacionais como uma ruptura do sistema democrático no país. Outrossim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos¹¹, registra em relatório que a falta de independência do judiciário na Venezuela limitou a capacidade dos juízes de emitir julgamentos imparciais. Essa falta de independência também contribuiu para a capacidade dos órgãos de Estado de processar oponentes políticos sem medo de ações legais. Perseguição de oponentes políticos, prisões arbitrárias e alegações de tortura e violações de direitos humanos são ações lançadas à Venezuela, segundo o relatório produzido pela organização internacional Human Right Watch. A Organização das Nações Unidas (ONU), por sua vez, registrou nos anos de 2020, 2021 e 2022 a ocorrência de crimes contra a humanidade naquele país, a despeito das duras críticas perpetradas pelo governo venezuelano às conclusões da Organização.
A crise humanitária no país tem sido frequente com milhões de pessoas enfrentando falta de acesso a cuidados de saúde, à nutrição adequada e a outros serviços básicos. A situação é agravada pela perseguição a jornalistas, defensores dos direitos humanos e organizações da sociedade civil, além das condições precárias nas prisões e da falta de proteção aos direitos dos povos indígenas. De acordo com pesquisa realizada pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro¹², que analisou o êxodo venezuelano para as cidades de Roraima, a crise migratória se instaurou entre 2012 e 2016 após a morte do presidente Hugo Chávez, fato esse que se somou à desvalorização acentuada do petróleo no mercado internacional. Porquanto os protestos se intensificaram com a queda da qualidade de vida no país, o governo venezuelano passou a reprimir com violência a dissidência política, ao mesmo tempo em que a situação econômica e social do país se agrava. O ápice da emigração se deu nos anos de 2017 e 2018. Todavia, registra-se a entrada de venezuelanos no Brasil pela fronteira de Roraima até os dias de hoje. Esse fato instou o governo brasileiro a adotar medidas para amenizar a crise humanitária verificada naquele Estado. A Operação Acolhida, criada em 2018, teve como finalidade prestar atendimento humanitário aos refugiados. A despeito dos dados registrados sobre a crise venezuelana, o presidente Nicolás Maduro nega a existência de crise no país. Essa afirmação encontra partidários e anti- partidários dentre os dirigentes de alguns países que se manifestam a respeito da situação econômica, política e social da Venezuela.
5. Considerações finais
A análise da estrutura política e das questões presentes na Venezuela suscita uma reflexão crucial: será que o país pode ser considerado uma democracia genuína? Ao examinarmos as preocupações relacionadas à concentração de poder, à falta de independência dos poderes judiciário e legislativo, à perseguição de opositores políticos e às alegações de violações dos direitos humanos, paira a incerteza sobre a efetividade do sistema democrático no país. Diante desse cenário complexo, é fundamental questionar se a Venezuela realmente atende aos critérios fundamentais de uma democracia funcional. Essa indagação nos convida a uma análise mais profunda, abrindo espaço para uma reflexão acerca dos desafios enfrentados na busca por uma resposta.
* Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Projeto de Extensão Veredicto. E-mail: yasmingehleen@outlook.com
[1] DALLARI, 1971, p. 222.
[2] BOBBIO, 1998, p. 776.
[3] DALLARI, 1971, p. 215.
[4] DALLARI, 1971, p. 213.
[5] CINTRA, 2004.
[6] SARTORI 1996, p. 147.
[7] GIANGORCHETTA, 2011, p. 2 — traduzido.
[8] MELO, 2006, p. 45.
[9] DINIZ E LÓPEZ, 2007 apud Baggia, 2011.
[10] CARMO, 2012.
[11] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS 2023, Human rights watch.
[12] MERCOSUL, 2023.
Referências
CARMO, Corival do Carmo. Venezuela: democratização e transformações econômicas no governo Hugo Chávez. Brazilian Journal of International Relations. vol. 1. Edição nº 01. 2012.
CINTRA, Antônio Octávio. Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições? In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (Org.). Sistema político brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro: Fundação Konrad- Adenauer-Stiftung; São Paulo: Fundação Unesp Ed., 2004.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – HUMAN RIGHTS WATCH. (2023). Relatório Mundial 2023. Capítulo do País -Venezuela. Disponível em: <https://www.hrw.org/pt/world-report/2023/country-chapters/venezuela>. Acesso em: 15 jun. 2023.
DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. 30a ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011
GIANFORCHETTA, N. La Democracia Venezolana en el contexto de la Constitución de 1999: Entre el Es y el Deber Ser. Instituto Latinoamericano de Investigaciones Sociales (ILDIS), Caracas, p. 1-26, Oct. 2011. Disponível em: https://library.fes.de/pdf-files/bueros/caracas/08762.pdf. Acesso em: 15 jun. 2023.
MATTEUCCI, Norberto; PASQUINO, Nicola; BOBBIO, Gianfranco. Dicionário de Política, Vol. I. trad. Carmen C, Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
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