Por Gabriel Cardoso Cândido*
O foco do artigo de hoje é explorar os direitos humanos de maneira abrangente. Considero fundamental entendermos de forma coesa e crítica os direitos humanos, a fim de confrontar a realidade carcerária e os obstáculos que as pessoas presas enfrentam.
Pois bem, o cerne desta reflexão é indagar se todas as pessoas efetivamente podem reivindicar os tais direitos humanos em nossa conjuntura social, econômica e política. Em outras palavras, quem são os indivíduos considerados nas políticas de direitos humanos?
Motivado por essa questão, busco trabalhar em minhas pesquisas com relatos e depoimentos de pessoas cujos direitos são sistematicamente violados. Vou compartilhar três desses relatos com vocês.
Helena Silva Cruz, mãe que passou pelo luto de seus filhos, vítimas da violência pública:
O primeiro que morreu era pequenininho, desse tamanhinho assim. Setenta e oito facadas. Uma criança Tinha treze anos. Vieram me avisar que estava todo furado embaixo do viaduto. O segundo também se envolveu com a droga, eu não estou nem sabendo como foi. Dizem que foi assalto. O segurança da farmácia matou ele. Um tiro só. Quando o meu primeiro foi morto, meu caçula tinha dez anos. Desde essa idade jurou vingar o irmão. Aos dezessete anos matou o assassino. Estava jurado por ele. Ou matava ou morria. Eu penso que uma pessoa que mata não é mais normal. Não sei se vai continuar vivo. É o último. Só tive esses três filhos. A gente sonha uma coisa e acontece outra. (Depoimento extraído de BRUM, 2008, p.223)
Ivonildes, mulher encarcerada em um dos presídios brasileiros, ela escreve ao poder público:
Eu, Ivonildes, estou aqui para contar um pouco do sofrimento e maus-tratos que estou passando aqui no presídio. Eu fiz uma cirurgia no dia 07 de março. Começou pelo erro médico, que fez minha cirurgia como se eu fosse um cachorro. Ele fez a cirurgia, costurou a minha barriga, não drenou e aí veio o sofrimento: a minha barriga começou a inchar; eu fiquei no desprezo; aí eu pedi para passar para o médico aqui no presídio. Como ninguém queria saber o que eu estava sentindo, eu comecei a guerra pela minha saúde. Até policial da PM e GEOP invadiu o presídio, por que quem sente sua dor é que geme. Eu pedi, pelo menos, um medicamento. Elas não me deram e eu chamei a atenção do presídio todo, pois estava morrendo de dor. Depois que viram que a coisa estava ficando séria, elas me levaram para o mesmo hospital, mas o médico que me operou não estava. No momento tinha outro lá. Ele teve que abrir dois pontos. Quando abriu, eu fiquei abismada. Saiu muita secreção e o médico falou que se eu demorasse mais uns dias, ia dar uma infecção que poderia me matar. Fiquei com medo, sim, e foi aí que comecei a lutar pelo meu direito. Com meu curativo ensopado, pedia para ela trocar e ela não queria. Chegou dia de meu curativo passar de 24 horas. Estava ficando mal-cheiroso e a gaze azulada. Meus remédios tive de tirar do bolso. Então, chegou ao ponto de eu não querer entrar na cela até que trocassem meu curativo. Chamaram a polícia para mim. Os policiais chegaram brutos. Queriam me agredir. Mas as prezadas do plantão disseram que eu estava operada. Eu sei que aqui no presídio, quando a gente luta pelos nossos direitos, elas acham ruim. Então, me colocaram na tranca operada. Vocês têm que vir aqui dentro para vocês verem quantas internas sofridas têm aqui sem medicamento. Peço que venham um dia aqui ver todos os sofrimentos. (Carta extraída de CARRASCOSA, 2018, p.30 e 31).
Luis Cincinato, trabalhador que foi escravizado na Fazenda Brasil Verde:
Passei 12 anos no mundo até chegar à (fazenda) Brasil Verde. Lá a gente ficava nas mãos do capataz [fiscal]. Ele fazia com a gente o que queria. Não podia sair de lá. Eles ameaçam: “quem fugir vai chegar em casa com um braço só”. Um cabra como eu, que dá produção no serviço… era para cuidar mais de mim. Sabe o que é acordar todo dia de madrugada e vestir uma roupa molhada para ir para o serviço? As botas molhadas… Era serviço ruim, comida ruim. Então não é escravo? É escravo, sim. (REPÓRTER BRASIL)
Helena, Ivonildes e Luis são efetivamente sujeitos de direitos humanos? Eles personificam inúmeras violações de direitos e a profunda desumanização que nós enquanto sociedade produzimos diariamente a grupos bem específicos.
Os relatos destacam as condições degradantes e subumanas resultantes dos elementos dos quais as nossas relações sociais foram estabelecidas. Isso revela que o critério para indicar os sujeitos de direitos humanos definitivamente não se restringe apenas à humanidade, mas sim ao modo pelo qual os grupos dominantes expressam, configuram e interpretam a humanidade.
A desumanização ao longo do tempo envolve reconhecer que há a distinção entre aqueles que são identificados como sujeitos de direitos daqueles que não são, haja vista que conceito de humanidade adotado em determinado período está intimamente relacionado ao conjunto de garantias oferecidas a cada pessoa.
As disparidades entre os indivíduos são evidentes: Aqueles em posição de privilégio recebem tratamento diretamente alinhado com os padrões de dignidade humana. Pertencer à classe dominante implica desfrutar de um conforto social quase ilimitado, um conforto que é mantido pela da negação de humanidade de muitos, como de Helena, Ivonildes e Luis.
Nesse sentido, concordo com Emicida quando ele afirma: “Enquanto a terra não for livre, eu também não sou”.
* Advogado criminalista pela PUC-RIO. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS
Referências
BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. São Paulo: Globo, 2008.
CARRASCOSA, Denise. Direito Humano. In: PIRES, Thula; Freitas, Felipe (Orgs.). Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018, p.29-35.
REPÓRTER BRASIL. Fazenda Brasil Verde: Histórias de um país que não superou o trabalho escravo.