Por Lucas Orsi Rossi
“Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Foi assim que se pronunciou o presidente da República, Jair Bolsonaro, quando uma simpatizante lhe pediu para “não deixar fazer esse negócio de vacina”.[1] Com mais de 4 milhões de contaminados e de 120 mil mortes de COVID-19, pode-se dizer que o Brasil – segundo país com o maior número de casos e de óbitos[2] -, além da doença, tem outro problema com que lidar: a morte da expertise.
O termo foi elaborado por Tom Nichols e expressa que não se valorizam mais as vozes e as opiniões de especialistas em sua área de conhecimento. Aponta que leigos assumem posturas incoerentes com evidências científicas e, ao propagarem sua imperícia, contribuem para a perpetuação de preconceitos, de incompreensões e até da negação do conhecimento. Não bastasse, julgam-nas tão válidas quanto as de estudiosos. Para o autor, é justamente a premissa de que um dos pilares da democracia é dar ouvido e valorizar a opinião de todos que dá margem a que fake news, compreensões equivocadas, achismos, teorias de conspiração e opiniões infundadas passem a ser mais recorrentes e destacadas na sociedade.[3]
Não é difícil encontrar exemplos relacionados no Brasil. De encontro a recomendações de organismos internacionais, há (i) resistência ao uso de equipamentos de proteção individual, até por membros do governo; (ii) minimização da gravidade da doença; (iii) aumento da quantidade de fake news relativas à COVID-19 publicadas; e (iv) divulgação e incentivo a tratamentos sem qualquer comprovação científica de eficácia, como por meio de ozonioterapia – proibida pelo Conselho Federal de Medicina desde julho de 2018 – e de enxofre, presente no alho cru.[4] Inevitavelmente, há repercussão no enfrentamento da doença.
Isso porque há ao menos dois direitos relacionados ao combate à pandemia. O mais imediato e de pronto elencado é o direito à saúde, previsto essencialmente nos arts. 6º e 196 da Constituição. O outro, um pouco menos lembrado, mas tão importante quanto, é o direito a usufruir do conhecimento científico – ou simplesmente o direito à ciência, não consagrado de forma expressa em nossa Constituição. Todavia, é certo que, em virtude da textura aberta do texto constitucional, não é preciso que direitos e princípios nele estejam expressos para que sejam reconhecidos, basta que sejam decorrentes do sistema. É daí que ele pode ser inferido a partir da proteção à ciência, à tecnologia e à inovação: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação” (art. 218), que receberão “tratamento prioritário”, reconhecido “o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação” (art. 218, § 1º).[5]
No sentido de afirmar a existência do direito à ciência, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se pronunciar a respeito da observância de critérios técnicos e de evidências científicas em matérias relacionadas à proteção da vida e da saúde. Alguns exemplos são as ações nas quais se questionam a extração de amianto crisotila. Mais especificamente no contexto da COVID-19, em sede de julgamento cautelar nas ações diretas que questionam a Medida Provisória 966/2020 – que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados à pandemia -, o Tribunal determinou que os agentes públicos devem seguir critérios científicos, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.[6]
Na mesma linha está a Lei 13.979/2020. Ao dispor sobre medidas para o enfrentamento da pandemia de COVID-19, determina que as medidas de combate ao novo coronavírus devam ser determinadas “com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde” (art. 3º, § 1º). Além disso, obriga o uso de máscaras de proteção individual (art. 3º, III-A) e possibilita a determinação – ao contrário do que afirmou o presidente – de vacinação compulsória (art. 3º, III, d).[7]
Percebe-se, portanto, um esforço do Judiciário e do Legislativo em favor do rigor e do conhecimento científico. Suas decisões, e as legislações assegurando-o, deveriam orientar a atuação do Executivo, em prol do dever estatal de proteção da vida e da saúde. A Administração Pública poderia, inclusive, impor ao cidadão tanto uma obrigação de fazer – como o uso compulsório de equipamentos de proteção individual -, quanto uma obrigação de não fazer – determinação de quarentena e de isolamento social -, enquanto fundamentadas em evidências técnico-científicas.
Ocorre que o Executivo insiste não em apenas ignorar a observância ao direito à ciência, mas em até negá-lo. Exemplo evidente é o debate em torno do tratamento com hidroxicloroquina. Adotado como política de governo – mesmo sem comprovação de qualquer eficácia -, para além dos supostos efeitos deletérios decorrentes do uso do medicamento, trouxe consigo como efeito colateral a acefalia do Ministério da Saúde: já faz mais de 100 dias que quem comanda a pasta é um interino.[8]
Os episódios têm um impacto negativo no combate à doença e talvez expliquem a posição negativa do Brasil em rankings mundiais. Isso porque a importância do direito à ciência, especificamente no contexto da pandemia de COVID-19, possui duas dimensões: uma imediata, qual seja, orientar e otimizar as decisões políticas a serem tomadas na contenção da propagação do vírus; e outra a longo prazo, como desenvolvimento de tratamentos eficazes e de vacinas.
Nada obstante, o objetivo aqui exposto não foi o de defender uma tecnocracia e deslegitimar o processo democrático propondo uma substituição de eleitos por especialistas. Pelo contrário. A doença não se trata de uma ideologia ou de uma opinião política. É um fato, uma matéria científica. Contudo, o seu enfrentamento exige uma ação política.
Isso porque a pandemia inaugurou uma crise sanitária, e crises, até mesmo pela própria etimologia da palavra – do grego antigo, κρίσις (krísis), tem origem no verbo κρίνω (krinō), que significa escolher, julgar, decidir -, se resolvem com tomada de decisões, por vezes urgentes. Tanto que existe uma previsão constitucional de poderes de emergência que concede ao Executivo maiores poderes em excepcionalidades. A ciência, por sua vez, não trabalha com imediatismos. Ela demanda tempo, seja para confirmar ou para refutar uma tese, seja para desenvolver um remédio ou uma vacina, de modo que não seria capaz de responder de pronto a urgência.
Com efeito, o que se propõe é que, mesmo ante uma emergência, o rigor científico – protegido constitucionalmente e reafirmado legal e jurisprudencialmente – seja respeitado e seguido no processo de tomada de decisões, até por ser uma própria exigência do processo de legitimidade democrática. Uma política pública – quer executiva, quer legislativa – precisa ter uma finalidade específica, devidamente fundamentada, e demonstrar, antes de ser adotada, sua capacidade e os meios pelos quais se atingiria o resultado esperado. E aqui se enquadra o papel do direito a usufruir do conhecimento científico na política.
Essa avaliação por meio de uma perspectiva ex ante é essencial para a prestação de contas em uma democracia, que não pode ser deixada de lado, mesmo quando em uma emergência. Inclusive, no cenário atual, a publicidade e a transparência ganham ainda mais importância, visto que gestores públicos estão autorizados a dispensar licitações para aquisição de insumos e de serviços para fazer frente à pandemia.[9] Em um momento delicado como o que se vive,“precisamos escutar muito mais do que nunca as vozes de quem impugna, demanda e discorda”[10], uma vez que todos são “potencialmente afetados”[11] por qualquer medida adotada para o combate à COVID-19.
Lucas Orsi Rossi é graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Integrante do grupo de pesquisa Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo (CNPq/UnB).
[1] CARVALHO, Daniel; URIBE, Gustavo. CANCIAN, Natália. Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina, diz Bolsonaro. Folha de São Paulo, 1º set. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/09/ninguem-pode-obrigar-ninguem-a-tomar-vacina-diz-bolsonaro.shtml >. Acesso em: 3 set. 2020.
[2] Dados relativos à COVID-19 atualizados em tempo real estão disponíveis na plataforma COVID-19 Dashboard by Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University. Disponível em: <https://coronavirus.jhu.edu/map.html>. Acesso em: 4 set. 2020.
[3] O termo expertise se refere à perícia profissional, ao domínio de um conjunto de saberes em uma determinada área do conhecimento. NICHOLS, Thomas M. The death of expertise: the campaign against established knowledge and why it matters. Oxford: Oxford University Press, 2017.
[4] RODRIGUES, Basília. Ministro da Educação é multado em R$ 2 mil por não usar máscara. CNN, 15 jun. 2020. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/06/15/ministro-da-educacao-e-multado-em-r-2-mil-por-nao-usar-mascara>. Acesso em: 4 set. 2020; FARIAS, Victor. Apesar de recomendações científicas, Bolsonaro diz que eficácia de máscaras é ‘quase nula’. O Globo, 19 ago. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/apesar-de-recomendacoes-cientificas-bolsonaro-diz-que-eficacia-de-mascaras-quase-nula-24595474>. Acesso em: 4 set. 2020; CARVALHO, Cleide. Médicos que usarem ozonioterapia contra Covid-19 podem ser punidos, diz presidente do Conselho Federal de Medicina. O Globo, 6 ago. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/medicos-que-usarem-ozonioterapia-contra-covid-19-podem-ser-punidos-diz-presidente-do-conselho-federal-de-medicina-24571248#:~:text=O%20tratamento%20de%20ozonioterapia%20%C3%A9,%C3%89tica%20em%20Pesquisa%20(Conep)>. Acesso em: 4 set. 2020; ESTADÃO. Bolsonaro ‘arranja’ agenda no ministério da Saúde a mulher que diz ter cura para covid com alho cru. Estadão, 8 jun. 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-promete-agenda-no-ministerio-da-saude-a-mulher-que-diz-ter-cura-para-covid-19-com-alho-cru,70003328871>. Acesso em: 4 set. 2020; PLANALTO. “Venceremos o vírus”, afirma Bolsonaro em pronunciamento aos brasileiros. 24 mar. 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2020/03/venceremos-o-virus-afirma-bolsonaro-em-pronunciamento-aos-brasileiros>. Acesso em: 4 set. 2020; MOREIRA, Matheus. Fake news sobre Covid-19 produzidas por grupos antivacina saltam 383%, diz estudo. Folha de São Paulo, 21 ago. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/fake-news-sobre-covid-19-produzida-por-grupos-antivacina-saltam-383-diz-estudo.shtml>. Acesso em: 4 set. 2020.
[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 3 set. 2020.
[6] Há diversos casos no STF que discutem leis que dispõem sobre o amianto crisotila, dentre as quais pode-se mencionar a ADI 4.066, rel. Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgada em 24/8/2017, DJe de 7/3/2018. A respeito da MP 966/2020: ADI 6.421-MC; ADI 6.422-MC; ADI 6.424-MC; ADI 6.425-MC; ADI 6.427-MC; ADI 6.428-MC; ADI 6.431-MC, rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgadas em 21/5/2020, acórdão pendente de publicação.
[7] BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm>. Acesso em: 3 set. 2020.
[8] LINDNER, Julia. ‘Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína’, diz Bolsonaro sobre liberação. Estadão, 19 mai. 2020. Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,quem-e-de-direita-toma-cloroquina-quem-e-de-esquerda-tubaina-diz-bolsonaro-sobre-liberacao,70003308307>. Acesso em: 3 set. 2020; VALOR; FOLHAPRESS; AP. OMS encerra em definitivo estudo com hidroxicloroquina para tratamento da covid. Disponível em: <https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/07/04/oms-paralisa-testes-com-lopinavir-e-ritonavir-no-tratamento-de-coronavrus.ghtml>. Acesso em: 4 set. 2020; RUSSO, Momtchilo. A propósito de cloroquina, medicina, heparina e tubaína. Jornal da USP, 26 jun. 2020. Disponível em: <https://jornal.usp.br/artigos/a-proposito-de-cloroquina-medicina-heparina-e-tubaina/>. Acesso em: 3 set. 2020; JUCÁ, Beatriz. Brasil perde segundo ministro da Saúde sob pressão de Bolsonaro para abrir economia e por uso da cloroquina. El País, 15 mai. 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-15/brasil-perde-segundo-ministro-da-saude-sob-pressao-de-bolsonaro-para-abrir-economia-e-por-uso-da-cloroquina.html>. Acesso em: 3 set. 2020.
[9] ADI 6351-MC-Ref, rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgada em 30/4/2020, DJe de 14/8/2020.
[10] GARGARELLA, Roberto. Coronavirus: Los problemas del estado de emergencia en América Latina. La Nacion, 30 de mar. de 2020. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/opinion/coronavirus-los-problemas-del-estado-emergencia-america-nid2348990>.Acesso em: 3 set. 2020. (tradução minha).
[11] HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Cambridge, MA: MIT Press, 1992.