O posicionamento do STF perante o tabelamento dos danos morais trabalhistas

Por João Victor da Silva Amaral*

Na última semana do mês de junho, o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente procedente os pedidos formulados no bojo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade de nºs 6.050/DF, 6.069/DF e 6.082/DF, em que era discutida a (in)constitucionalidade dos arts. 223-A e 223-G, §§1° e 2º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

Além de colocar fim no moroso processo de tramitação das ações, ajuizadas entre o final de 2018 e o início de 2019, o posicionamento exarado pelo Pretório Excelso se posiciona ao lado de outros julgados em que a Corte validou a reforma trabalhista [1] e a racionalidade neoliberal que lhe é inerente. 

Com efeito, a Lei 13.467/2017 inseriu na CLT, dentre outros dispositivos, os arts. 223-A – que institui que a reparação dos danos extrapatrimoniais deveria observar exclusivamente as normas do Título II-A da CLT, afastando-se, portanto, a disciplina legal da responsabilidade civil – e 223-G, §§ 1º e 2º – que estabelecem um teto para as reparações oriundas de danos morais trabalhistas, com base no valor do último salário contratual do trabalhador.

Ao estabelecer um limite compensatório, a reforma foi de encontro com o critério objetivo preconizado pela Constituição da República de 1988, que, de acordo com a doutrina de Maurício Godinho Delgado, repeliu o tabelamento do valor da reparação [2]. De fato, a Carta Magna inscreveu um extenso catálogo de direitos fundamentais e irradiou seu conteúdo material e axiológico para todo o sistema jurídico nacional [3].

Portanto, no tocante aos danos morais trabalhistas, as normas infraconstitucionais devem observar os princípios da dignidade da pessoa humana, da reparação integral dos danos, da isonomia/igualdade material, da proporcionalidade e razoabilidade, nos termos dos arts. 1°, III, e 5°, caput e incisos V e X, da CF. Tanto assim que, nas exordiais das ADIs em comento, as requerentes suscitaram expressamente as violações aos respectivos dispositivos constitucionais.

Em suma, argumentou-se que a limitação do valor da compensação por danos morais trabalhistas obstaria a concretização da dignidade humana, que resguarda os direitos de personalidade e, consequentemente, exige uma recomposição integral, sem quaisquer limitações com base em variáveis econômicas. Isso porque o quantum compensatório, nos termos do inciso V do art. 5 ° da CF, deve ser proporcional ao dano, ou seja, deve basear-se na situação concreta, sob pena de acarretar situações em que pessoas distintas que sofreram o mesmo dano, de igual natureza e de mesma intensidade, recebam reparações diversas face à eventual discrepância salarial.

Esses fundamentos estão insertos, também, no acórdão da ADPF nº 130/DF, julgada em 2009. Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal não recepcionou a Lei n° 5.250/1967 (Lei de Imprensa), que preconizava, nos arts. 51 e 52, o tabelamento da responsabilidade civil do jornalista/empresa jornalística com base em valores múltiplos do salário mínimo da região. Efetivamente, a Corte consignou, nos termos do voto do Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, que a definição da compensação deve derivar de um juízo de proporcionalidade entre o dano sofrido e a reparação, considerada a potencialidade da ofensa e a situação concreta da vítima.

Todavia, a despeito da patente incompatibilidade e da existência de precedentes nesse sentido, sobretudo da ação de controle abstrato supracitada, o Supremo Tribunal Federal somente julgou as ADIs de nºs 6.050/DF, 6.069/DF e 6.082/DF mais de quatro anos após a distribuição dos autos e, além disso, se posicionou pela procedência parcial dos pedidos de inconstitucionalidade, dando interpretação conforme à Constituição, sem redução do texto, aos dispositivos impugnados.

Primeiramente, a mora da Corte em decidir de maneira célere a controvérsia por meio da aplicação dos fundamentos balizados nos autos da ADPF n° 130/DF cumpriu seu papel regulatório para manter a eficácia de um dispositivo legal flagrantemente incompatível com o texto constitucional.

Além disso, a conduta decisória do Pretório Excelso de não pronunciar a nulidade do §1° do art. 223-G da CLT – sob o fundamento de que, apesar de rechaçar o estabelecimento de limites fixos, não obstaria a criação de critérios objetivos para auxiliar o livre convencimento motivado do juiz – destaca o papel que o Supremo Tribunal Federal adotou enquanto racionalizador da legislação reformista e das políticas de austeridade [4], oriundas de um movimento de inserção dos ideais neoliberais no ordenamento jurídico pátrio.

De fato, no Brasil, a partir da década de 90, houve um aprofundamento da flexibilização e desregulamentação das normas protetivas de Direito do Trabalho, com o escopo de privilegiar a ótica dos interesses empresariais e mercadológicos em detrimento do rigor e da imperatividade de normas jurídicas protetivas [5]. A reforma trabalhista é uma expressão da reafirmação dessa racionalidade neoliberal após o golpe de 2016, fundamentada pela suposta necessidade de modernização da legislação trabalhista [6], sem qualquer contrapartida, porquanto as promessas de criação de empregos, de renda e de diminuição da informalidade a partir das transformações implementadas não foram cumpridas [7]. 

Nesse particular, ao conferir interpretação conforme à Constituição ao §1º do art. 223-G, o STF não observou as cautelas inerentes à aplicação da técnica hermenêutica – que, segundo exarado nos autos da ADPF n° 130/DF, “não pode artificializar ou forçar a descontaminação da parte restante do diploma legal interpretado” e que, igualmente, consoante a doutrina, não admite que seja declarada a permanência de comandos contrários à constituição [8] – e excedeu os limites semânticos da norma. Senão, veja-se:

§1º  Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:

I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;

II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;

III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;

IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.

A leitura do dispositivo rechaçado evidencia a intenção do legislador em estabelecer um sistema de tabelamento dos danos morais trabalhistas, eis que o texto do §1°, de maneira expressa, consigna que o valor será “fixado” em um dos parâmetros listados nos incisos, ou seja, fixado com base em múltiplos do último salário contratual. Não se cuida de dispositivo que tem como intuito de estabelecer uma moldura interpretativa para o magistrado, pois os incisos são taxativos ao estabelecerem um valor máximo em relação à remuneração percebida pelo trabalhador.

Dessarte, ao dar parcial provimento às ADIs para interpretar o dispositivo supramencionado como “critério orientativo”, o Supremo Tribunal Federal perpetuou, na legislação trabalhista, uma norma que submete a definição do quantum devido em virtude da violação de um direito de personalidade à uma variável econômica. A Corte, portanto, alinhou-se à logicidade mercadológica da governança pelos números [8], pois, independentemente da possibilidade de o magistrado poder ultrapassar os valores inscritos nos incisos do §1° do art. 223-G da CLT, estes ainda assim consistem em parâmetro objetivo para o arbitramento da indenização, ao arrepio do princípio da ampla reparação dos danos morais de forma proporcional ao agravo.

* Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e autor convidado pelo Observatório Trabalhista do Supremo Tribunal Federal.

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Referências

[1] DUTRA, Renata Queiroz. O Supremo e a reforma trabalhista jurisprudencial. No prelo.

[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo, LTr, 18ª ed., 2019.

[3] BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In: Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 1, 2006, p. 1/48.

[4] FERREIRA, Antônio Casimiro. A sociedade de austeridade: poder, medo e direito do trabalho de exceção. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, vol. 95, 2011, p. 119/136.

[5] DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo, LTr, 2006.

[6] COUTINHO, Aldacy Rachid. Reforma trabalhista brasileira e o Supremo Tribunal Federal: as escolhas trágicas? Revista da Faculdade Mineira de Direito, Minas Gerais, vol. 21, n. 41, 2018, p. 31/52.

[7] GRILLO, Sayonara; SOARES, José Luiz. Neoliberalismo, aceleração do tempo jurídico e instabilidade institucional: elementos para uma história recente do direito do trabalho no Brasil. In: Anais do Encontro Nacional da ABET: Crises e horizontes do trabalho a partir da periferia. Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, 2021. Disponível em: <www.even3.com.br/Anais/abet_trabalho2021/349779-NEOLIBERALISMO-ACELERACAO-DO-TEMPO–JURIDICO-E-INSTABILIDADE-INSTITUCIONAL>. Acesso em: 2.7.2023.

[8] SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle Tschiedel. Porto Alegre, Editora Meridional/Sulina, 2014.

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