Por Bruno Marra Gomes Ferreira*
A apelação — como o recurso cabível contra as sentenças — prevista nos artigos 944, I, e 1.009 e seguintes do atual Código de Processo Civil, é, por muitos, considerada o recurso por excelência, por sua relação de intensidade com o duplo grau de jurisdição e com o efeito devolutivo, com a rediscussão pelo Tribunal de toda a matéria decidida que foi objeto de impugnação pela parte [1].
Diante dessa materialização do duplo grau de jurisdição por meio do recurso de apelação, a doutrina se encarregou de questionar a natureza dessa garantia como um direito fundamental. Em verdade, há dúvidas, inclusive, sobre a nomenclatura “duplo grau de jurisdição”, pois não é correto afirmar a existência de dois graus de jurisdição, mas de dois órgãos do Poder Judiciário de competências distintas analisando a mesma causa. Essa exigência ocorre como uma orientação empírica da disciplina legislativa [2], tanto como forma de um controle político-hierárquico do órgão julgador [3], quanto como controle das decisões judiciais pelos sujeitos do processo.
Há interpretações que elevam o duplo grau de jurisdição ao status de um princípio constitucional implícito, como decorrência do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), das normas de organização judiciária (art. 92, CF), do direito de ação (art. 5º, XXXV, CF), da permissão para o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau (Turmas recursais, art. 98, I, CF) [4], e da organização administrativa e judiciária dos Territórios, com menção expressa à tribunais de segunda instância em Territórios Federais com mais de cem mil habitantes (art. 33, § 3º, CF) [5].
Segundo Djanira de Sá, qualquer limitação ao direito de apelar seria inadmissível e inconstitucional (…), porque a Constituição prevê a competência recursal perante os TRFs (art. 108, II, CF)[6], as vedações à instituição de competências recursais na Justiça Estadual violariam o princípio da isonomia e significaria estabelecer a desarmonia no sistema [7]. Para a autora, portanto, seriam inconstitucionais as restrições ao recurso impostas pelas Leis dos Juizados Especiais Cíveis (Lei nº 9.099/1995) e de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/1980).
Por sua vez, os defensores de uma relativização do duplo grau afirmam que sua extensão pode ofender o princípio da oralidade — em razão da proximidade do juiz de primeiro grau com as partes e as provas, com a oportunidade de certificar-se da honestidade das partes e testemunhas —, ofender o direito à duração razoável do processo, desvalorizar o juízo de primeiro grau, e sustentam uma inutilidade relativa do princípio — pelo alto percentual de manutenção das decisões impugnadas [8].
Essa dialética em torno do duplo grau de jurisdição foi um dos motivos para as discussões legislativas que culminaram na manutenção do efeito suspensivo automático (ope legis), como regra, por meio do art. 1.012, do atual CPC [9]. Essa regra possui como traço mais saliente o fato de o vencedor não poder promover, de imediato, o cumprimento de sentença. Contudo, não o esgota, pois há suspensão de toda eficácia da decisão, não somente de sua possível eficácia como título executivo [10]. Na verdade, não há uma suspensão dos efeitos da sentença, mas o efeito suspensivo evita que a decisão produza efeitos até o julgamento do recurso [11].
Por outro lado, há o efeito suspensivo atribuído (ope judicis) como exceção no recurso de apelação e, como regra, para os demais recursos. No CPC/15, há seis hipóteses em que a sentença produz imediatamente seus efeitos a partir de sua publicação (art. 1.012, § 1º) [12] e o pedido de efeito suspensivo pode ser dirigido ao Tribunal ou ao relator, a depender do período de distribuição do recurso [13].
Uma vez que essa previsão do art. 1.012, do CPC/15 abre margem para que, como estratégia processual, o demandado vencido apele sempre [14], um dos problemas da morosidade dos processos não estaria no duplo grau de jurisdição em si, mas no efeito suspensivo automático da apelação, que transforma a sentença em um mero requisito para a continuidade do processo no Tribunal [15].
Os críticos desse efeito suspensivo automático alegam um suposto engessamento do sistema recursal brasileiro e, diante disso, desafiaram o Congresso Nacional para elaboração de anteprojetos de lei para conferir maior efetividade aos procedimentos. Sálvio de Figueiredo Teixeira classificou essas ideias reformistas em duas etapas. A primeira etapa — que se iniciou na década de 1990 — culminou em significativas alterações do sistema processual, dentre as quais a mais relevante foi a inserção de um mecanismo de tutela antecipada no CPC/73 [16].
Por sua vez, a “segunda etapa” de reformas processuais, já no início dos anos 2000, com os anteprojetos 13, 14 e 15, de 2001, não obstante o sucesso do sistema de execuções provisórias, não deram seguimento à pretensão de retirar o efeito suspensivo automático à apelação, então previsto no art. 520, do CPC/73 [17], pois prevaleceu o argumento ad terrorem de congestionamento dos Tribunais com mandados de segurança e cautelares [18].
Ao considerar essa era de reformas no Código de Processo Civil de 1973 mencionada por Sálvio de Figueiredo Teixeira, em 2004, houve uma nova tentativa de mudar o então art. 520, para conferir à apelação o efeito meramente devolutivo.
Trata-se do Projeto de Lei nº 3.605/2004 [19], proposto pelo Deputado Colbert Martins, com a justificativa de evitar uma incoerência no sistema processual: é mais fácil para o autor alcançar a efetividade de uma decisão interlocutória que antecipa os efeitos da tutela do que a de uma sentença que concede essa mesma tutela, agora em cognição plena em exauriente [20]. O relator do projeto apresentou parecer pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e para aprovação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Em seguida, foram verificados outros projetos tramitavam com redação parecida: o PL nº 6.025, de 2005, e o PL nº e 8.046, de 2010 [21]. Esse último deu origem ao atual Código de Processo Civil, mas durante o seu trâmite legislativo, o primeiro projeto de retirada do efeito suspensivo automático da apelação foi apensado ao anteprojeto.
A ideia original do anteprojeto do atual Código de Processo Civil era garantir a eficácia imediata da sentença. Essa só poderia ser suspensa pelo relator se o requerente demonstrasse os requisitos da tutela provisória recursal, em um pedido autônomo direcionado ao Tribunal.
Foram apresentadas inúmeras objeções a essa ideia, sob a forma de emendas modificativas ao projeto, com as mais diversas justificativas: “que a tradição brasileira sempre deu efeito suspensivo ao recurso de apelação”[22]; “que a melhor forma de proceder não seria acabando com o efeito suspensivo totalmente da noite para o dia, com o consequente aumento drástico de processos no Tribunal de segundo grau” [23]; “poderão trazer resultados opostos ao esperado, com aumento de recursos e cautelares” [24]; “que é uma prática utilizada por países da Europa Ocidental com aparelhos judiciários melhores que o brasileiro (…), além de fortalecer exageradamente os juízes de primeira instância e desprestigiar os Desembargadores” [25].
Essa manutenção de um sistema conservador, também foi defendida por alguns doutrinadores, sob o fundamento de que as reformas pretendidas seriam muito radicais em face da realidade brasileira, de tal modo que, para preservar a segurança jurídica, seria preferível aumentar as hipóteses de execução provisória da sentença, em vez de retirar a regra do efeito suspensivo à apelação [26].
Também foram discutidas outras propostas sobre o assunto: o Deputado Gabriel Guimarães (PT/MG) tentou implementar um meio termo: buscou manter o efeito suspensivo como regra, mas o retiraria quando a sentença estivesse de acordo com as súmulas ou a jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores [27]. Outra emenda propôs que o pedido de efeito suspensivo fosse formalizado na própria peça recursal, com julgamento concomitante da apelação e do agravo interposto contra decisão que rejeitou o efeito suspensivo [28].
Apesar da ênfase que “a tradição não é motivo para manter aquilo que não está funcionando” [29], a persistência do efeito suspensivo automático da apelação ocorreu em virtude da vitória legislativa do argumento tradicional.
Restaram as lições de Benedito Cerezzo Pereira Filho, um dos juristas que compôs a comissão de elaboração do anteprojeto do Código de Processo Civil: a vontade pelo novo requer muita coerência para que o resultado seja o mais próximo possível do ideal. Essa perseguição pelo novo foi a tentativa de combate à morosidade do processo civil, mas o debate se manteve superficial sobre o tema, com utilização de jargões como “ditadura do judiciário”, e alegações que não passam de uma desconfiança desmedida na atuação do juízo de primeiro grau [30].
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* Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); membro-fundador da Liga Acadêmica de Processo Civil da Universidade de Brasília (LAPROC); orador na IV e orientador na V e na VI Competição Brasileira de Processo Civil (2021-2023); membro da Associação Brasileira de Estudantes de Direito Processual (ABEDP). brunomarra.direitounb@gmail.com. Advogado.
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[1] MACÊDO, Lucas Buril de. Objeto dos recursos cíveis: crítica ao efeito devolutivo como categoria central da Teoria Geral dos Recursos. Tese (doutorado). São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2019.
[2] MACÊDO, Lucas Buril de. Objeto dos recursos cíveis: crítica ao efeito devolutivo como categoria central da Teoria Geral dos Recursos. Tese (doutorado). São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2019.
[3] Os defensores desse argumento sustentam que a inexistência de um duplo grau seria uma carta branca para que os juízes “desfilassem sua soberania (…), manifestada em abuso de poder “. GATTO, Joaquim Henrique. O duplo grau de jurisdição e a efetividade do processo. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010, p. 36. No mesmo sentido, para Dinamarco, Badaró e Bruno Lopes a natureza política do controle judicial é o principal fundamento para a manutenção do duplo grau de jurisdição, porquanto nenhum ato estatal poderia ficar imune aos necessários controles (…), no caso, feito ordinariamente pelos tribunais competentes, podendo ser direcionado também para os Tribunais Superiores, para o conhecimento dos recursos extraordinários. DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 103.
[4] Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
[5] GATTO, Joaquim Henrique. O duplo grau de jurisdição e a efetividade do processo. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010, pp. 76-99.
[6] Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais: II – julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
[7] RADAMÉS DE SÁ, Djanira Maria. Duplo grau de jurisdição: conteúdo e alcance constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999.
[8] GATTO, Joaquim Henrique. O duplo grau de jurisdição e a efetividade do processo. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010, pp. 43-49.
[9] Art. 1.012. A apelação terá efeito suspensivo.
[10] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. v. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
[11] MARINONI; Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. 2. v. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p; 541.
[12] Art. 1.012. A apelação terá efeito suspensivo. § 1º Além de outras hipóteses previstas em lei, começa a produzir efeitos imediatamente após a sua publicação a sentença que: I – homologa divisão ou demarcação de terras; II – condena a pagar alimentos; III – extingue sem resolução do mérito ou julga improcedentes os embargos do executado; IV – julga procedente o pedido de instituição de arbitragem; V – confirma, concede ou revoga tutela provisória; VI – decreta a interdição.
[13] §3º O pedido de concessão de efeito suspensivo nas hipóteses do § 1º poderá ser formulado por requerimento dirigido ao: I – tribunal, no período compreendido entre a interposição da apelação e sua distribuição, ficando o relator designado para seu exame prevento para julgá-la; II – relator, se já distribuída a apelação.
[14] MELLO, João Pedro de Souza. Como se vence um processo: Norma processual, jogo, estratégia e chicana. Londrina: Thoth, 2023, p. 107.
[15] CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Apelação sem efeito suspensivo. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 64.
[16] TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A simplificação do Processo Civil brasileiro in O direito Contemporâneo em Portugal e no Brasil. MARTINS, Ives Gandra da Silva; LEITE DE CAMPOS, Diogo coord. São Paulo: Saraiva, 2004. Acesso por: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/115978, pp. 450-452.
[17] Art. 520. A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que: (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973). Corresponde, em parte, à redação do atual art. 1.012, do CPC/2015.
[18] TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A simplificação do Processo Civil brasileiro in O direito Contemporâneo em Portugal e no Brasil. MARTINS, Ives Gandra da Silva; LEITE DE CAMPOS, Diogo coord. São Paulo: Saraiva, 2004. Acesso por: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/115978, pp. 456-457.
[19] Art. 1º O art. 520 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, terá a seguinte redação: “Art. 520. A apelação terá somente efeito devolutivo, podendo o Juiz dar-lhe efeito suspensivo para evitar dano irreparável à parte.” (NR) (…)
[20] MARTINS, Colbert. Projeto de Lei nº 3.605, de 2004: Justificativa. Congresso Nacional: Sala das Sessões, 2004. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=220162&filename=Tramitacao-PL%203605/2004.
[21] Todas essas informações estão disponíveis no endereço eletrônico: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=254246
[22] BONIFÁCIO DE ANDRADA, Deputado Federal. Emenda na comissão 609/2011. Congresso Nacional: Sala de Sessões, 2011. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=953550&filename=EMC+609/2011+PL602505+%3D%3E+PL+8046/2010>
[23] GABRIEL GUIMARÃES, Deputado Federal. Emenda nº 828/2011. Congresso Nacional: Sala das Sessões, 2011. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=955706&filename=EMC+828/2011+PL602505+%3D%3E+PL+8046/2010.
[24] JÚNIOR COIMBRA, Deputado Federal. EMC nº 391/2011. Congresso Nacional: Sala das Sessões, 2011. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=940498&filename=EMC+391/2011+PL602505+%3D%3E+PL+8046/2010.
[25] MIRO TEIXEIRA, Deputado Federal. EMC nº 799/2011. Congresso Nacional: Sala das Sessões, 2011. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=955539&filename=EMC+799/2011+PL602505+%3D%3E+PL+8046/2010>
[26] MEDINA, Paulo Roberto de Gouveia apud CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Apelação sem efeito suspensivo. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 59.
[27] GABRIEL GUIMARÃES, Deputado Federal. Op cit, 2011.
[28] PAES LANDIM, Deputado Federal. EMC nº 75/2011. Congresso Nacional: Sala das Sessões, 2011. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_emendas?idProposicao=490267&subst=0>.
[29] BRAGHITTONI, Rogério Ives. O efeito suspensivo da apelação e o duplo grau de jurisdição in Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo: RIASP, v. 7, n. 14, jul./dez 2004, pp. 313-318.
[30] PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. O novo Código de Processo Civil e a velha opção pelo efeito “suspensivo” no recurso de apelação in Revista Iberoamericana de Direito Processual. 1. a. 2. v. Jul-Dez, 2015, p. 31.