A inconstitucionalidade do artigo 3º da EC nº 113/2021 e seus reflexos no Direito Privado

por Submissões Independentes

Por Lucas Brandão Affonso

Não é de hoje que se questiona a constitucionalidade do artigo 3º da EC nº 113/2021 por ter obrigado os particulares a se submeterem à Taxa Selic nas cobranças judiciais de valores devidos pela Fazenda Pública[1]. Segundo a normativa, a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia passou a ser o índice único para (i) atualização monetária, (ii) juros remuneratórios e (iii) juros moratórios em discussões e condenações que envolvam a Administração.

 

O equívoco dessa interpretação indevidamente positivada em sede constitucional representa verdadeira “canetada” do Direito sobre a Economia, alterando a natureza da Taxa Selic e utilizando-a para fins diversos de seu objetivo central: representar uma política pública de dirigismo estatal para controle de inflação e de influência nas taxas de juros remuneratórios praticados no mercado privado.

 

Por ser a taxa básica de juros do Brasil, decidida como política pública nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom, ligado ao Banco Central) a cada 45 dias, os atores particulares (em especial as instituições financeiras) a utilizam como referencial para alterar as suas próprias taxas de juros remuneratórios. Significa dizer que a Selic influencia diretamente, por exemplo, em quanto os bancos cobrarão pela remuneração dos valores oferecidos como empréstimos para as empresas e para os cidadãos requisitantes.

 

E tais taxas praticadas pelas instituições financeiras representam única e exclusivamente a remuneração pelo empréstimo fornecido. Não há que se falar, aqui, em mora do contratante, que está apenas compensando o mutuante, devendo pagar os juros independentemente de atrasar, ou não, o pagamento dos valores no vencimento da obrigação.

 

Cuida-se de típica distinção de juros remuneratórios contratualmente convencionados e dos juros moratórios, estes últimos devidos apenas em caso de não pagamento dos empréstimos contraídos na data acordada. Enquanto o primeiro é influenciado pela Taxa Selic[2], o último não.

 

Isso porque, ao decidir a Taxa Selic, o Banco Central não leva em conta os juros moratórios, mas apenas os remuneratórios. Seria até mesmo um contrassenso estipular uma taxa básica de juros já embutindo em seu cálculo um valor de mora (descumprimento) que sequer ocorreu. Seria o mesmo que presumir a má-fé de seus cidadãos e enriquecer ilicitamente as instituições mutuantes com base em fato futuro e incerto.

 

E a inconstitucionalidade do artigo 3º da EC nº 113/2021 reside aí. A adoção da Taxa Selic para as dívidas públicas representa uma clara mensagem do Estado no sentido de, mesmo estando errado (veja-se que o pagamento será devido em razão de ações judiciais transitadas em julgado e que, portanto, pressupõem um ato ilícito praticado pela Administração, seja por ter causado um dano, seja por ter inadimplido suas obrigações), deixar de pagar os juros moratórios (que tem caráter legal e obrigatório), ardilosamente substituindo-os por juros remuneratórios (contratuais) menores do que os que seriam devidos para o particular lesado.

 

De forma ainda mais nítida: a Administração, por meio de uma reforma constitucional, usa seu poder estatal para não pagar os juros moratórios legalmente devidos àqueles que sofreram perdas patrimoniais, substituindo-os por juros remuneratórios que sequer deveriam existir, haja vista que tal índice só é lícito quando previsto contratualmente (ou seja, por meio de encontro de vontades livres e desembaraçadas nesse sentido).

 

É uma clara afronta ao direito de propriedade previsto no caput e no inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal. E não há que se falar aqui em limitação deste direito por sua função social (artigo 5º, inciso XXIII, da CF), haja vista que não há qualquer razão de interesse público para fazer com que a Administração, após cometer um ilícito, pague menos do que deve em detrimento do patrimônio alheio. O que se vê com a EC nº 113/2021 é uma mera sobreposição do interesse financeiro secundário do Estado sobre o interesse privado.

 

Veja-se que a Taxa Selic, por ser decidida como política pública de referência (e não coercitiva), nem sempre representa os reais índices praticados no mercado[3]: enquanto o Decreto nº 22.626/1993 limita os juros remuneratórios e moratórios a 1% a.m. cada (sem contar a correção monetária), a Taxa Selic, em épocas de economia controlada, não chega nem perto desse valor. O impacto fático dessa conduta pode ser extraído de simples simulação.

 

Imagine-se que um credor obtém êxito em uma demanda e pretenda receber R$ 10.000,00 da Administração. A data inicial da incidência dos juros é de 01/01/2021 e o efetivo recebimento ocorreu em 01/01/2023. Se a Taxa Selic (que, segundo a EC nº 113/2021 engloba juros de mora, juros remuneratórios e correção monetária) for utilizada, nesses dois anos o valor seria atualizado para R$ 11.736,27. Se apenas o índice do IPCA-E (que engloba somente correção monetária) fosse utilizado para o mesmo período, o valor chegaria a R$ 11.758,33[4].

 

A diferença é tão gritante que, mesmo sem adicionar juros moratórios e juros remuneratórios, o valor apenas da correção monetária utilizada no mercado privado ultrapassa o valor devido com a atualização pela Taxa Selic.

 

E tudo isso possui reflexos no Direito Privado? A resposta é necessariamente e infelizmente positiva. Tal porque, com a publicação da EC nº 113/2021, ganhou fôlego o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que a Taxa Selic é o índice mencionado pelo artigo 406 do Código Civil para os juros moratórios e para correção monetária[5], quando o contrato for silente sobre a matéria. A confusão se dá porque ambas as teses partem da mesma premissa (de que a Taxa Selic engloba juros de mora, juros de remuneração e correção monetária).

 

Ocorre que a adoção da Taxa Selic pelo Poder Judiciário em contratos privados incorre em outro tipo de inconstitucionalidade: a intervenção indevida do Estado nos negócios privados (artigo 174 da CF c/c artigo 2º, inciso III, da Lei nº 13.874/2019).

 

Ao aplicar a Taxa Selic (que, tecnicamente falando, tem natureza de juros remuneratório) em contratos privados, o Poder Judiciário estará negociando em nome das partes, sem a sua anuência, além de extirpar do credor o direito de receber os juros moratórios obrigatórios e legais, descaracterizando a Selic e, mais uma vez, favorecendo os devedores.

 

Por fim, destaca-se que o entendimento conflita com julgados do próprio Superior Tribunal de Justiça que, desta vez coerentemente, vem reafirmando que não incide juros remuneratórios sem previsão contratual expressa nesse sentido[6].

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Lucas Brandão Affonso é Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES; pesquisador acadêmico do grupo de pesquisa NEAPI – Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflitos; ex-integrante do grupo de pesquisa LABCODEX – Labirinto de Codificação do Direito Processual Civil Internacional. Vitória, ES. E-mail de contato: lucasbrandaoaffonso@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6807218326587670.

Referências Bibliográficas

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF recebe mais uma ação contra novo regime de precatórios. Publicado em 14/01/2022. Acesso em 12/08/2023. Disponível em < https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=480026&ori=1>.

[2] DE SOUZA, Wanderley Rosendo. A natureza jurídica da taxa SELIC e as impossibilidades de sua utilização como taxa de juros. In: SEDEP – artigos. Acesso em 12/08/2023. Disponível em <https://www.sedep.com.br/artigos/a-natureza-juridica-da-taxa-selic-e-as-impossibilidades-de-sua-utilizacao-como-taxa-de-juros/>.

[3] GEROMES, Sergio. A inconstitucionalidade da taxa Selic como índice de correção monetária e juros do débito previdenciário. In: Migalhas de Peso. Publicado em 15/06/2022. Acesso em 12/08/2023. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/depeso/367987/a-inconstitucionalidade-da-taxa-selic>.

[4] Cálculos realizados com auxílio da “Calculadora do cidadão”, ferramenta disponibilizada pelo Banco Central do Brasil em <https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method=exibirFormCorrecaoValores>. Acesso em 12/08/2023.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.111.119/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, relator para acórdão Ministro Mauro Campbell Marques, Corte Especial, julgado em 2/6/2010, DJe de 2/9/2010. (Por todos).

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.809.207/PA, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 3/11/2022. (Por todos).

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