Cesar Rodrigues van der Laan[1]
A adoção de ferramentas de participação digital no âmbito político tem revigorado o debate acerca dos benefícios da internet para a democracia. No Brasil, observa-se uma interação entre iniciativas populares e iniciativas institucionais para promover a “digitalização” da democracia e aumentar a participação popular no processo político. Apesar das críticas e da existência de Fake News (narrativas falsas) permeando a política diárias que se desenvolve nas redes sociais, há um processo de construção da incorporação da internet no processo político, em que os instrumentos digitais reinserem o cidadão na atividade política para além do período de ciclo eleitoral, com potencial de reforçar e reconfigurar a relação cidadão-representante, a partir de um círculo virtuoso de interação.
A relevância da esfera digital como arena política já levou à inclusão de normas, em 2009, sobre propaganda eleitoral na internet na Lei das Eleições (Lei no 9.504, de 1997), como espelho da realidade da incorporação da internet à política. A Lei veda a propaganda paga na internet (art. 57-C). Além disso, a Justiça Eleitoral começou a tratar, em 2018, de questões problemáticas da propaganda eleitoral nas redes sociais, como a criação de perfis falsos de candidatos, compra de seguidores, robôs de perfis-fantasma no Twitter, propaganda paga e patrocínio de links, promoção de postagens e informações, propagação de Fake News e spams, compra de contatos e listas (vedada pelo art. 57-E, § 1º). Há, portanto, um novo contexto de realização da democracia que não pode ser desconsiderado e que envolve, necessariamente, o espaço digital como locus de desenvolvimento da democracia representativa.
Apesar dos percalços que exigem superação, isso tem questionado a percepção de que a democracia representativa não corresponde à representação da vontade geral da população. As ferramentas digitais têm propulsionado um maior ativismo do cidadão no processo político, como efeito derivado do uso da internet. A manifestação popular ocorre nas mais diversas democracias contemporâneas, independente da maturidade institucional de cada jurisdição. Há um caminho consolidado, atualmente, que supera a delimitação da participação social no processo político restrita ao sufrágio universal periódico, que fragilizaria a democracia representativa. Seria o descompasso entre cidadão e representante que geraria crises de representação ou do conceito de justa representação, traduzindo-se em uma perda da centralidade da representação como eixo do regime democrático e em uma quebra do contrato social baseado em metas e objetivos coletivos que superem os interesses privados.
Pode-se associar a ausência histórica de correspondência da democracia meramente representativa aos anseios populares à abertura para o desenvolvimento de instrumentos de democracia participativa, que passa a ser promovida com o auxílio da incorporação das tecnologias de comunicação e informação ao processo político. Com efeito, a internet propiciou condições mais amplas para o exercício da cidadania, que passa a resgatar seu significado original para além do momento eleitoral. A participação online é, hoje, mais popular que a offline, com os cidadãos mais propensos a participar do processo legislativo por meio das tecnologias disponíveis, do tipo one-click away, que permitem rápida interação digital, e que geram o que, no meio acadêmico, ficou conhecido como click-ativismo. De certa forma, há um avanço da democracia representativa: a incorporação de elementos de participação direta amplia a participação do cidadão em termos políticos, o que pode reforçar a democracia representativa, que pode passar a melhor espelhar a vontade geral da população[2].
Movimentos sociais digitais e o desenvolvimento da e-democracia
Os contornos da e-democracia partem da ressignificação do conceito de cidadania, fundamento da democracia, em que o cidadão passa a ter prerrogativas de maior participação e um papel mais ativo na definição e no controle das políticas públicas, efetuado além do momento eleitoral. Essa evolução sobre o alcance do significado de cidadania e da própria democracia permite identificar o fenômeno da e-democracia como uma ampliação das formas de concretização da cidadania, a partir da associação entre tecnologias digitais de comunicação e práticas democráticas.
Fruto do desenvolvimento tecnológico construído de forma mais ampla a partir dos anos 2000, a participação política passa a ser aprofundada de forma mais consistente com a consolidação de smartphones como meio de comunicação individual predominante. Isso permitiu a ampliação da conectividade digital e a simultânea disseminação das redes sociais digitais, dando visibilidade a novos atores sociais já no começo dos anos 2010. Esse novo cenário passa a permitir a concretização de novas formas de práticas democráticas, cujos efeitos mais relevantes são expressivos em termos de ressonância política. Os protestos sequenciais da Primavera Árabe e o movimento Occupy Wall Street, em 2011, e, em 2019, o movimento dos Coletes Amarelos na França, são exemplos do quanto a internet pode atuar como facilitadora da mobilização social massiva[3].
No País, o ressurgimento das manifestações sociais pode ser inserido nessa onda internacional recente de movimentos populares em todo o mundo, instando a população a abandonar a apatia política e retomando a reflexão sobre a participação na democracia representativa[4]. As chamadas “Jornadas de Junho”, manifestações autônomas e apartidárias promovidas em 2013 pelo Movimento Passe Livre inicialmente contra o aumento das passagens de ônibus em diversas capitais brasileiras e, posteriormente, contra os gastos excessivos da Copa do Mundo foram organizadas em redes sociais, gerando a mobilização de multidões de pessoas em vários Estados. São consideradas as maiores mobilizações sociais desde as manifestações pelo impeachment do então presidente Collor em 1992.
Da mesma forma, novas mobilizações contra a corrupção e em apoio ao processo de impeachment da ex-Presidente Dilma, em 2016, consolidaram outros movimentos sociais gestados na internet, como o Movimento Brasil Livre, Vem pra Rua e Avança Brasil. A profunda renovação dos quadros políticos na eleição de 2018 também se associa a um novo ativismo político, digital, ampliado, em que a política ressurge como parte do cotidiano do cidadão, de norte a sul do País. O resgate do conceito de cidadania para além dos períodos eleitorais destaca o novo ator político relevante, o cidadão comum, que exerce suas prerrogativas diretamente, sem vínculo partidário. Este adquire maior protagonismo a partir de movimentos sociais digitais, criando uma nova dimensão à participação popular na vida pública. Em comum, é possível indicar que tais iniciativas digitais partiram de fora dos movimentos políticos organizados tradicionais, como os partidos políticos, os sindicatos ou movimentos estudantis organizados como a Une. Tais movimentos sociais se apoiam na maior visibilidade proporcionada nas redes sociais para se concretizarem mais facilmente fora da realidade digital.
O engajamento político não é novo em democracias, mas o uso das ferramentas digitais, em particular das redes sociais, gera ganhos de escala e agiliza a propagação de notícias e ideias de interesse coletivo. Com efeito, o próprio espaço virtual passou a ter autonomia em relação a mobilizações presenciais propriamente ditas. O uso do WhatsApp, Twitter, Facebook e Instagram, as redes sociais, passou a ser tomado como forma necessária para discutir política de modo mais amplo a partir das eleições presidenciais de 2014. A despolitização original deu espaço ao surgimento de novos grupos na política assim como à migração de políticos tradicionais para o espaço virtual. Isso aponta para o que Barros, Bernardes e Rodrigues (2015) já ressaltaram, que a internet transformou a ação política de vários atores e incluiu novos atores com repercussão no campo político.
Ao mesmo tempo, pode-se também identificar um fortalecimento da expectativa de que os titulares das funções públicas sejam mais sensíveis à opinião pública, ou seja, a pressões e reivindicações que se originam em círculos cada vez mais distantes do epicentro partidário e parlamentar do sistema político representativo[5]. No momento em que as demandas ganham visibilidade nas redes sociais, o cidadão passa a ter poder de pressão, ao lado de ONGs, think tanks, movimentos sociais tradicionais, empresas e sindicatos e meios de comunicação. No novo momento em que cada cidadão pode, em algum grau maior, influir no processo político, de forma individual ou coletivamente, os parlamentares não podem mais interagir com o eleitor apenas a cada quatro anos, “porque o povo hoje vai para a rua sem precisar de lideranças, sem precisar de um jornal que o convoque, sem precisar da televisão; pela internet. Qualquer jovem hoje coloca 500 pessoas na rua. Basta estar com raiva de alguma coisa e ter uma boa lista de pessoas com as quais dialoga”. Na verdade, não precisa nem ir para rua, diante da relevância que o espaço digital adquiriu para a concretização da democracia representativa. De fato, a internet mobilizou parcelas da população que eram anteriormente inativas – as “maiorias silenciosas”, na expressão de Benevides (2003, p.47). O resultado está na ampliação da diversidade de agentes e agendas na esfera pública, e do pluralismo político.
Nesse contexto digital, as possibilidades tecnológicas podem tornar a democracia mais participativa. A internet já permite consultar a população sobre inúmeras decisões políticas e temas da agenda pública, ampliando de fato as possibilidades de participação política do cidadão para além do momento eleitoral. Nesse sentido, pode-se facilitar a realização de plebiscitos e o processo de referendar leis ordinárias ou emendas constitucionais de mesma relevância política, social e jurídica. Ao fim, tem-se que o potencial “déficit democrático” pode ser suprimido por meio do uso da tecnologia para promover mais participação do cidadão[6].
Diante disso, é preciso reconhecer os avanços da e-democracia que possibilitam transformações estruturais na forma como se vivencia a democracia, com ênfase às iniciativas dos parlamentos na promoção da e-cidadania, por meio da incorporação de instrumentos de participação digital oferecidos ao cidadão. Por fim, sugere-se que também é preciso rever a visão predominante de apatia e alienação política do cidadão.
[1] Especialista em Direito Legislativo (ILB), Mestre e Doutor em Economia (UFRGS), com doutorado-sanduíche na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Coordenador da Pesquisa Jurídica do Veredicto Projeto de Extensão da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Consultor Legislativo do Senado Federal. E-mail: cesarvdl@yahoo.com.
Referências
BARROS, Antônio Teixeira de; BERNARDES, Cristiane Brum; RODRIGUES, Malena Rehbein. Atuação parlamentar virtual: as estratégias dos Deputados Federais em seus websites. E-legis, Brasília, n. 16, p. 18-42, jan./abr. 2015.
BENEVIDES, Maria Victoria. A Cidadania ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular. São Paulo: Ática, 2003.
BIANCHINI, Fernando N. Democracia Representativa sob a crítica de Schmitt e Democracia Participativa na apologia de Tocqueville. Campinas: Milênio, 2014.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
BUARQUE, Cristovam Buarque. Audiência Pública com Sr. James Creighton. Realizada na Comissão Senado do Futuro em 19 nov, 2013. Brasília: Senado Federal, 2013.
PECARIC, M. Can a Group of People be Smarter than Experts? The Theory and Practice of Legislation, v. 5, n. 1, 5–29, 2017.
PORTOCARRERO, Cláudia G. O Movimento Passe Livre e a Democracia Participativa no Brasil. Revista do Ministério Público. MP do Estado do RJ, n.51, p.27-46, jan/mar. 2014.
ROCHA, J.S. Breves considerações sobre a participação popular no Estado brasileiro. Publicado em out, 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/32928/breves-consideracoes-sobre-a-participacao-popular-no-estado-brasileiro/1>. Acesso em: 13 jan. 2019.
[2] Bianchini, 2014, p.13.
[3] Barros, Bernardes, Rodrigues, 2015.
[4] Portocarrero, 2014.
[5] Rocha, 2014.
[6] Pecaric, 2017.