Autor: Bruno da Silveira Alves
Nesta série, apresentamos debates no modelo parlamento britânico de que participamos na Hermenêutica – Sociedade de Debates da UnB. Nesse formato há duas duplas de Governo, que devem apresentar argumentos para apoiar a moção (proposição tema do debate), e duas duplas de Oposição, que argumentam em sentido contrário. Aqui apresentamos as teses e os argumentos de cada lado.
Antes de adentrar no debate propriamente dito, é preciso destacar que a legitimidade do poder é diferente da legitimidade do uso de fatos externos em um debate. A legitimidade em sentido amplo é aquilo que faz as pessoas aceitarem algo como legítimo, e por legítimo temos algo que é adequado para o que se está realizando. No caso específico da moção, algo que é legítimo ao debate público é algo que encaixaria com a essência de um debate desse tipo e para o que ele serve. É preciso que as pessoas acreditem que essa exposição de fatos da vida pessoal é algo adequado para um debate público ou não. Esses debates públicos são eventos em que candidatos políticos se reúnem para apresentar suas propostas e mostrar aos eleitores que são os melhores para dirigir o Estado a partir das atribuições do cargo para o qual concorrem.
Nos debates públicos, os fatos da vida pessoal que costumam ser utilizados são fatos como traição de companheiro, corrupção em sua profissão, etc., ou seja, escândalos morais que, em geral, são dissociados da sua vida política (dedicada à res publica). Faz-se imprescindível distinguir o que é o político enquanto pessoa e o que é o político enquanto político. Embora a vida pessoal e a vida política possam ser interseccionadas em certos pontos, o ideal é que se distancie o máximo possível um do outro, porque quando uma pessoa é eleita para um cargo político os interesses sociais passam a predominar em detrimento dos seus interesses pessoais.
Antes de partir para os argumentos, é preciso destacar que, no modelo de debates British Parliament, a regra geral é o contexto de democracias ocidentais, então nesta moção estamos debatendo exatamente nesses cenários. Além disso, o que estamos fazendo é valorar (Governo positivamente e Oposição negativamente) o uso desses fatos no debate público, buscando chegar à conclusão de se é legítimo ou não.
Com as definições necessárias e com a ressalva feita, temos o terreno preparado para a apresentação dos principais argumentos que podem ser usados para defender a moção.
A primeira coisa que Governo deve fazer é entender em qual cenário é mais adequado ele trabalhar. Como a moção não delimita tanto em quais debates e de quais políticos estamos falando, para governo basta provar que a proposta pode ser legítima, não que necessariamente seja em todos os cenários. Com isso, vamos rememorar: a função da exposição de fatos da vida pessoal é sinalizar para os ouvintes parte do caráter desse político como uma ferramenta para avaliar o candidato e o quão coerente com suas declarações ele é. Só que, em debates entre políticos que já possuem uma carreira política, é possível apreender tais informações a partir da sua atuação nos outros cargos políticos que ocupou. Sua atuação enquanto político já é conhecida.
Diferente é o cenário dos candidatos iniciantes na vida política, como vereadores ou deputados estaduais, dos quais a população não tem muitas informações ao seu dispor que não sejam da vida pessoal dele. Nesse contexto, a exposição dos fatos da vida pessoal do candidato se mostra bastante legítimo, eis que será uma das principais formas de os eleitores poderem avaliar o potencial do candidato para a atuação no cargo para o qual concorre. Agora, se eu sei que o candidato a vereador tem um comércio e suborna os órgãos oficiais para que a área do seu comércio seja privilegiada enquanto destino de investimentos, eu sei que há um risco (não tão remoto) de ele se aproveitar do cargo para fins individualistas, já que evidentemente esse candidato tem um senso de comunidade prejudicado.
Já Oposição pode seguir a linha de que uma das principais características originais do debate público é defender propostas de governo, as quais geralmente estão alinhadas com algum espectro político ou ideologia. Nesse sentido, talvez importe mais a ideia que um político representa do que a sua atuação no cargo. A ideia se desvincula da pessoa que a carrega, pois um ideal é sagrado e imutável, enquanto a pessoa é corruptível e falha por sua natureza humana. Um grande exemplo disso é Che Guevara, que cometia diversos atos de caráter repugnante, porém ainda assim tais condutas não manchavam a ideia que ele carregava. Nesse sentido, como o debate público é um debate de qual ideologia mais se encaixa com as necessidades da população, a exposição de fatos da vida pessoal acabaria por prejudicar a produtividade do debate, que deixa de ser um debate de ideias de propostas de governo para se tornar um debate de quem é o candidato menos “sujo”. Do contrário, temos um amadurecimento das ideologias (preenchimento da ideia original do debate público), o que acaba por ser legítimo.
Ainda assim, até mesmo no cenário pintado por Governo dos vereadores, Oposição poderia argumentar que as funções exercidas por esses cargos costumam ser bastante limitadas e que os políticos nesses cargos costumam ser representativos de uma parcela muito específica da população, pois formam bancada, como os vereadores eleitos pela carga imagética de “defensor dos animais”. Nesse sentido, como a sua atuação é restrita, e o seu poder é baixo, o seu caráter pouco importa, pois o que ele defende ainda importa para si mesmo e ele continuará votando as suas propostas para o qual foi eleito. No nosso exemplo, o vereador continuará votando a favor de pautas pró-animais. Enquanto isso, no cenário de Governo, as pessoas que muitas vezes se importam bastante com a pauta do movimento animal deixariam de votar nesse candidato simplesmente porque ele traiu a esposa.
É nesse momento que Governo pode voltar ao jogo afirmando que não estamos falando de cargos políticos tão baixos, mas podemos estar falando de prefeituras, por exemplo. Para uma prefeitura, pouco importa a ideologia política, qual o modelo de Estado que devemos implantar, etc. Mais vale um prefeito comprometido com sua população, íntegro, que busque sempre colocar o seu papel enquanto político acima dos seus interesses individuais, um verdadeiro homem do povo.
Obviamente, um artigo, por suas limitações espaciais, não pode apresentar como pretensão o tratamento geral e aprofundado de todo o tema. Contudo, claro está que é possível defender a legitimidade do uso de fatos da vida pessoal do adversário político no debate público, como é possível defender a ilegitimidade disso. Para nós, o que mais importa é instigar o debate e motivar os cidadãos a aprofundá-lo, para que em um geral tenhamos uma sociedade mais independente, livre, e que trilha o caminho do progresso. Esperamos que o presente artigo tenha gerado algumas reflexões produtivas ao leitor. E você? Qual lado gostaria de defender neste debate?
O autor: Bruno da Silveira Alves é graduando em Direito no 8º semestre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Com forte interesse em argumentação e retórica, integra a Diretoria de Módulos da Hermenêutica. Dedicado ao pensamento crítico, busca promover ideias que contribuam para a evolução da sociedade.