Por Pablo Magno Hernandez Gomes de Moraes*, Moisés de Souza Castelo Branco** e Tiago Siqueira Dias Gomes***
Em 11 de abril de 1974, Ieda Santos Delgado foi presa, torturada e executada pela polícia do Estado de São Paulo. Funcionária pública, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, Ieda era militante da Ação Libertadora Nacional, organização comunista revolucionária que lutava ativamente contra a ditadura empresarial-militar, instaurada no país dez anos antes. Seus restos mortais nunca foram encontrados, de modo que jamais pôde ser sepultada¹, entrando para a extensa lista de desaparecidos políticos do regime militar. Seu legado permanece, como mais uma das mulheres martirizadas ao longo da história pelo governo brasileiro, pelo crime de lutar por um país mais justo.
Cinquenta anos depois, a situação do país não mudou muito. Permeada de violências estruturais de classe, opressão dos povos originários e da população afrodescendente e periférica, a sociedade brasileira é especialmente cruel com suas mulheres. A perseguição política durante o regime militar, com sua instrumentalização do abuso sexual como método de tortura de prisioneiras mulheres, é apenas uma faceta dessa realidade: segundo uma reportagem do Correio Braziliense, a secretaria de segurança pública do Distrito Federal (SSP – DF) registrou uma média de 50 ocorrências diárias relacionadas à Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340), que tipifica violência doméstica contra mulheres².
Em resposta à essa realidade de violência contra a mulher, o Movimento Olga Benário, coletivo feminista marxista, promove a criação de espaços de acolhimento a mulheres vítimas de violência doméstica, as Casas de Referência, onde elas podem encontrar abrigo, e apoio jurídico e psicológico. A primeira dessas Casas, no Brasil e na América Latina, é a Casa Tina Martins, ocupada em 8 de março de 2016, e que, desde então, vem dando apoio a mulheres na capital mineira, Belo Horizonte. O êxito deste instrumento de luta levou a construção de Casas em diversos outros Estados, como a Casa Mulheres Mirabal, no Rio Grande do Sul, e a Casa Carolina Maria de Jesus, em São Paulo.
Com o aumento de casos de feminicídio no Distrito Federal e a falta de espaços de acolhimento, situação agravada pelo fechamento da Casa da Mulher Brasileira da Asa Norte pelo governo Ibaneis Rocha, o Movimento Olga Benário vai recorrer a construção de uma Casa no DF, sendo a sua 13ª ocupação no país³. Resgatando o legado de Ieda Santos Delgado e sua luta, a nova Casa receberá seu nome. A Casa nasceu no dia 24 de outubro de 2022 com a ocupação da antiga Casa de Cultura do Guará II, abandonada há mais de dez anos, garantindo uma função social a esta propriedade. Já no dia 25 de outubro, a Casa é recebida pela Administração do Guará com uma notificação extrajudicial para que fosse desocupado o local, em direto contraste com os interesses das mulheres do Distrito Federal.
A Casa resiste, até o dia 21 de novembro do mesmo ano, quando a Polícia Militar realiza uma desocupação ilegal, sem qualquer ordem judicial, onde também foi presa uma militante e ainda feita a retirada de bens da Casa⁴. Porém, persistem na luta, e no dia 22 de novembro retomam a ocupação amparadas em liminar que reconhece a função social exercida pela Casa, que ao contrário do que alegava o governo distrital, os instrumentos já estabelecidos não eram o suficiente para atender todas as mulheres, e, reconhece ainda a hipocrisia do GDF em não combater invasões em áreas nobres. Apesar disso, nem um mês se passa até que nova liminar revogue essa permissão, e dê respaldo para a Polícia Militar faça nova desocupação do espaço. E assim é feito no dia 21 de dezembro.
A ausência de um espaço físico não desanimou a luta dessas mulheres. A Casa se tornou itinerante, indo em diferentes cidades do DF, como Arapoanga e Sol Nascente, para prestar auxílio às mulheres da região. No entanto, pela necessidade de um espaço que pudesse servir de abrigo para vítimas, entre outras facilidades permitidas pela existência de um local fixo, a busca de uma sede definitiva continuou. Assim, um ano após a primeira ocupação no Guará, no dia 24 de outubro de 2023, uma nova ocupação ocorre, agora na Asa Sul. Tratava-se, na verdade, de uma propriedade do Instituto dos Arquitetos do Brasil, e prontamente concordaram colaborar com a Casa para demandar do poder público uma sede definitiva, desocupando o espaço. Após muita luta, enfim a Casa conseguiu comunicação com a Superintendência de Patrimônio da União para que determinasse uma propriedade para a Casa, e, desde então, esperam a designação de tal local⁵.
É necessária a perpetuação dos movimentos de resistência! Considerando o contexto da Universidade de Brasília e Distrito Federal, acima foi trazida um pouco da história da Casa Ieda Santos Delgado e da própria mulher que lhe deu o nome, pois, é um movimento de resistência contemporâneo e que tem tido impacto no cotidiano da região. Para todos que leram esse artigo, o primeiro passo foi dado, agora que sabem da existência e conhecem um pouco da história, também lhes recaem o objetivo de difundir a luta contra a violência doméstica e a resistência das vítimas.
A Casa de acolhimento acaba por ser um último refúgio para as mulheres vítimas de violência doméstica, é perceptível a ineficácia da legislação para moldar o comportamento da sociedade, que mantém a violência contra as mulheres. A Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340), citada acima, foi sancionada em 2006, fazem 17 anos e alguns meses até o momento, e todos os dias ainda ocorrem diversos casos de violência doméstica, como trazido.
A Lei Maria da Penha é uma importante conquista que demonstra a importância dos movimentos de resistência como a Casa Ieda Santos Delgado. Pois, a formulação dessa lei esteve atrelada à luta de quem lhe deu o nome, Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu violência doméstica e teve que levar sua luta até as instâncias internacionais do continente americano, dada a falta de respaldo do estado brasileiro, mostrando que a resistência traz resultados. Mas a realidade demonstra que ter uma legislação foi um passo, não um fim, ainda é necessária a luta contra a violência doméstica, não obstante, Maria da Penha continuou em seu objetivo e ainda se mantém em movimentos e organizações.
A Casa Ieda Santos Delgado se encontra nesse contexto de importância de manutenção da luta contra a violência, combatendo por intermédio do acolhimento às vítimas, suprindo suas necessidades básicas e atuando em posição que o estado falha em compor a vida dessas mulheres vítimas de violência doméstica. Ainda sim, a luta por vezes tem sido contra o próprio instrumental estatal que insiste em tapar os olhos para a realidade de violência vivida pelas mulheres.
Logo, uma das funções a serem exercidas e aqui se prestou a tanto é de mostrar, publicar, que existe esse contexto de violência no Distrito Federal e uma das formas de luta, a Casa Ieda Santos Delgado, a qual constantemente está sendo atacada e necessita do apoio para se manter forte e possa assim, continuar realizando esse trabalho de acolhimento que tanto importa às vítimas, mudando por completo suas vidas, pois, não se trata de um tratamento frio e indiferente e que compactua com a violência, como normalmente se encontra provido pelo estado. As vítimas são tratadas com o que precisam após sofrerem violência doméstica. Muitas conquistas estão por ser alcançadas nesse âmbito, e cada apoio é um importante catalisador na tão importante luta contra essa realidade de violência doméstica e necessidade de acolhimento das pessoas que sofrem com essa falta.
* Graduando em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB). É membro da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-RLF) e da comissão organizativa do grupo de pesquisa em Geopolítica e Subalternidade do Sul Global (GEOSSUL).
** Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É membro da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-RLF) e estagiário na Defensoria Pública do Distrito Federal.
*** Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Integrante da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho.
[1] COMISSÃO DA VERDADE. Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva, [s.d]. Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/ieda-santos-delgado>. Acesso em: 06 de maio de 2024.
[2] DE SOUZA, Arthur. Lei Maria da Penha registra 50 casos por dia no DF, segundo dados da SSP. Brasília, 15 de novembro de 2023. Cidades DF. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/11/6655412-lei-maria-da-penha-registra-50-casos-por-dia-no-df-segundo-dados-da-ssp.html>. Acesso em 07 de maio de 2024
[3] JORNAL A VERDADE. Movimento Olga Benario realiza 13ª ocupação de mulheres, no DF. Brasília, 24 de outubro de 2022. Disponível em: <https://averdade.org.br/2022/10/43246/>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
[4] RAFAEL VILELA, Pedro. GDF ameaça realizar desocupação forçada em prédio que antes estava abandonado. Brasil de Fato, Brasília, 17 de novembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefatodf.com.br/2022/11/17/gdf-ameaca-realizar-desocupacao-em-ocupacao-de-mulheres>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
RAFAEL VILELA, Pedro. PM prende ativista pelos direitos das mulheres e fecha ocupação no Distrito Federal. Brasil de Fato, Brasília, 21 de novembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/11/21/pm-prende-ativista-pelo-direitos-das-mulheres-e-fecha-ocupacao-no-distrito-federal>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
RAFAEL VILELA, Pedro. Movimento de mulheres do DF corre risco de despejo às vésperas do Natal. Brasil de Fato, Brasília, 20 de dezembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/12/20/movimento-de-mulheres-do-df-corre-risco-de-despejo-as-vesperas-do-natal>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
RAFAEL VILELA, Pedro. Governo do DF realiza despejo de ocupação que acolhia mulheres vítimas de violência. Brasil de Fato, Brasília, 21 de dezembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/12/21/governo-do-df-realiza-despejo-de-ocupacao-que-acolhia-mulheres-vitimas-de-violencia>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
[5] ARAUJO, Camila. Casa Ieda Santos, referência para vítimas de violência no DF, busca sede definitiva. Brasil de Fato, Brasília, 04 de dezembro de 2023. Disponível em: <https://www.brasildefatodf.com.br/2023/12/04/casa-ieda-santos-referencia-para-vitimas-de-violencia-no-df-busca-sede-definitiva>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
Referências
ARAUJO, Camila. Casa Ieda Santos, referência para vítimas de violência no DF, busca sede definitiva. Brasil de Fato, Brasília, 04 de dezembro de 2023. Disponível em: <https://www.brasildefatodf.com.br/2023/12/04/casa-ieda-santos-referencia-para-vitimas-de-violencia-no-df-busca-sede-definitiva>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
COMISSÃO DA VERDADE. Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva, [s.d]. Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/ieda-santos-delgado>. Acesso em: 06 de maio de 2024.
DE SOUZA, Arthur. Lei Maria da Penha registra 50 casos por dia no DF, segundo dados da SSP. Brasília, 15 de novembro de 2023. Cidades DF. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/11/6655412-lei-maria-da-penha-registra-50-casos-por-dia-no-df-segundo-dados-da-ssp.html> . Acesso em 07 de maio de 2024
Movimento Olga Benario realiza 13ª ocupação de mulheres, no DF. A Verdade, Brasília, 24 de outubro 2022. Disponível em: <https://averdade.org.br/2022/10/43246/>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
RAFAEL VILELA, Pedro. GDF ameaça realizar desocupação forçada em prédio que antes estava abandonado. Brasil de Fato, Brasília, 17 de novembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefatodf.com.br/2022/11/17/gdf-ameaca-realizar-desocupacao-em-ocupacao-de-mulheres>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
RAFAEL VILELA, Pedro. PM prende ativista pelos direitos das mulheres e fecha ocupação no Distrito Federal. Brasil de Fato, Brasília, 21 de novembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/11/21/pm-prende-ativista-pelo-direitos-das-mulheres-e-fecha-ocupacao-no-distrito-federal>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
RAFAEL VILELA, Pedro. Movimento de mulheres do DF corre risco de despejo às vésperas do Natal. Brasil de Fato, Brasília, 20 de dezembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/12/20/movimento-de-mulheres-do-df-corre-risco-de-despejo-as-vesperas-do-natal>. Acesso em: 05 de maio de 2024.
RAFAEL VILELA, Pedro. Governo do DF realiza despejo de ocupação que acolhia mulheres vítimas de violência. Brasil de Fato, Brasília, 21 de dezembro de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/12/21/governo-do-df-realiza-despejo-de-ocupacao-que-acolhia-mulheres-vitimas-de-violencia>. Acesso em: 05 de maio de 2024.