O futuro da justiça fundiária: a vitória do diálogo no caso do Horto

Entrevista com o professor doutor e advogado Rafael Mendonça

por Entre o Abuso e o Abandono

Entrevista por Gabriel Cardoso

 

Após mais de quatro décadas de disputas entre o Jardim Botânico e a comunidade do Horto, um acordo histórico encerrou um dos conflitos fundiários mais emblemáticos do país. O caso, que mobilizou órgãos federais, tribunais e representantes da sociedade civil, tornou-se símbolo de que o diálogo institucional podem resultar em soluções efetivas.
Nesta entrevista, Rafael da Mota Mendonça — advogado, assessor jurídico da Associação de Moradores e Amigos do Horto (AMAHOR), doutor e mestre em Direito pela UERJ e professor da PUC-Rio — analisa os caminhos que levaram a esse desfecho e reflete sobre o papel do Direito e das universidades na promoção da justiça social e fundiária no Brasil.

1) O acordo assinado entre a comunidade do Horto e o Jardim Botânico encerra uma disputa que durou mais de quatro décadas. Contextualiza para a gente como foi essa trajetória até chegar a esse desfecho.

A área onde a comunidade está instalada pertence ao Jardim Botânico. Antes, era da União. Cerca de 621 famílias, descendentes de funcionários ou ex-funcionários do Jardim Botânico, já ocupavam o local. Era uma prática comum no século XIX e início do XX: os funcionários dessas autarquias podiam construir suas casas próximas ao local de trabalho, por conta da dificuldade de mobilidade urbana no Rio de Janeiro.
A convivência entre a comunidade e o Jardim Botânico sempre foi muito harmônica, até o ano de 1986/1987, quando a União, então proprietária da área, começou a propor ações de reintegração de posse contra esses moradores — foram 215 ao todo, todas transitaram em julgado em favor da União.
Em 2016, a área foi transferida para o Jardim Botânico, que começa a propor no ano de 2018 novas ações de reintegração de posse contra esses moradores, com a intenção de retirar a comunidade para ampliar as funções do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico.
Com a pandemia, foi proposta a ADPF 828, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, no STF, que suspendeu as desocupações forçadas no período. Ao fim da pandemia, o ministro estabeleceu um regime de transição, determinando que todos os tribunais do país criassem comissões de soluções fundiárias para tratar de questões coletivas – como a do Horto.
O primeiro caso admitido pela Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal Regional Federal da 2ª Região foi justamente o da comunidade do Horto. Essa comissão foi muito importante, porque centralizou todas as discussões e conseguiu reunir todas as instituições envolvidas e colocar todos os atores para poder tentar construir um acordo coletivo para encerrar o impasse, o que foi feito.

2) Quais foram os maiores desafios enfrentados ao longo do processo?

O maior desafio enfrentado ao longo do processo basicamente foi sensibilizar o Judiciário, já que são mais de 300 ações individuais de reintegração de posse, então era preciso sensibilizar o sistema de justiça sobre a possibilidade da construção de um consenso acerca da matéria do horto, envolvendo todos os órgãos protagonistas nessa discussão: o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério do Planejamento, a Secretaria-Geral da Presidência, o Iphan, o próprio Jardim Botânico e a própria comunidade.
A virada de chave veio com a consolidação das Comissões de Soluções Fundiárias em todos os tribunais do país, em decorrência do julgamento liminar da ADPF 828, relatada pelo ministro Barroso.
A Comissão de Soluções Fundiárias do TRF2 é muito estruturada, sendo o grande instrumento de consenso entre todos esses atores.
Foram realizadas várias audiências, com amplo diálogo, todos perceberam que era possível, sim, construir um consenso acerca dessa disputa fundiária. Esse diálogo permitiu o acordo que temos hoje — um verdadeiro marco para o Direito e para a sociedade.

3) Esse acordo foi descrito por autoridades como um marco de “justiça social, ambiental e patrimonial”. O que ele representa, na prática, para o Direito brasileiro e para as comunidades em situação semelhante?

O acordo representa para o direito brasileiro um símbolo de que a legislação sobre regularização fundiária no Brasil, a partir do marco da Constituição de 1988, que trouxe um arcabouço jurídico muito robusto sobre o tema. Depois da Constituição, vieram o Estatuto da Cidade de 2001, o próprio Código Civil de 2002 e outras legislações específicas sobre o tema, como a Lei nº 13.465 de 2017.
Esse acordo mostra e serve de grande símbolo de que toda essa legislação pode ser aplicada de forma concreta para solucionar conflitos, como o do Horto, a partir de seus institutos, consagrando o direito à moradia em uma convergência de interesses.
O acordo demonstra que é possível uma convergência de interesses sobre a proteção de todos os bens jurídicos envolvidos. Podemos observar com esse acordo a tutela do meio ambiente, a tutela do direito à moradia e da própria regularização fundiária. Bens jurídicos que, em determinado momento, se pensava estar em oposição e na verdade eles estão em amplo consenso, a manutenção da comunidade no local contribui para a preservação do meio ambiente, por exemplo, e não na sua destruição. e assegura a dignidade das famílias, consolidando uma solução justa e equilibrada.

4) Eu conheci o caso da Comunidade do Horto ainda no início da graduação, através do grupo de pesquisa e extensão Terras e Lutas, do qual você é um dos coordenadores. Considero esse período fundamental para a minha formação enquanto jurista. Poderia contextualizar um pouco o trabalho do grupo e comentar de que forma as universidades podem promover uma vinculação mais efetiva entre a luta por direitos e a técnica jurídica?

A universidade teve um papel essencial na construção desse acordo, em duas grandes frentes.
A primeira foi a assessoria jurídica, por meio do Núcleo de Prática Jurídica (PUC-Rio), que ofereceu atendimento inteiramente gratuito e qualificado à associação de moradores e às famílias envolvidas nas ações de reintegração. Esse trabalho permitiu aos moradores a apresentação de uma visão ampla e uma contextualização histórica dos seus direitos. O núcleo de prática jurídica da universidade amplia e qualifica o diálogo com os moradores permitindo uma defesa bem mais robusta.
A segunda frente foi o grupo de pesquisa e extensão Terras e Lutas, que se dedicou a uma análise científica e qualificada da disputa fundiária no Horto, a partir de dados concretos sobre o déficit de moradia. As pesquisas concretas do grupo legitimam a demanda por direito à moradia da comunidade. O grupo também produziu pareceres e notas técnicas, trazendo doutrinas e legislações, tanto nacionais quanto no direito comparado, além de estudos sobre a atuação do Judiciário nesses casos.
Essas duas dimensões, a assessoria prática e a análise de pesquisas efetivas, a Universidade contribuiu muito para legitimar e concretizar o discurso e as reivindicações dos moradores.

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