A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA CONSTRUÇÃO DO PLANO DIRETOR DO DISTRITO FEDERAL

por AJUP Roberto Lyra Filho
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Por Beatriz Stephany Carvalho da Silva e Matheus Zchrotke da Silva*

 

INTRODUÇÃO

O Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) é o principal instrumento jurídico dos municípios para estruturação do planejamento habitacional e expansão urbana de seus territórios, sendo previsto na Constituição Federal de 1988 com vistas ao atendimento das funções sociais da cidade e à garantia de bem-estar de seus habitantes, conforme o art. 182, caput, CF[1]. O PDOT abrange todo o território do DF e estabelece critérios e disposições gerais para a utilização e ocupação do solo, apontando também programas e projetos prioritários no âmbito do ordenamento territorial e habitacional, inclusive, as áreas destinadas à habitação, à indústria ou aquelas passíveis de regularização fundiária[2]

Diante disso, em 2019, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDUH) iniciou o processo de revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) com intuito de reformular as políticas de organização territorial e desenvolvimento urbano, adaptando-as a atual na conjuntura urbana e rural do Distrito Federal. O atual Plano Diretor, em vigência desde 2009 por meio da Lei Complementar nº 803, de 25 de abril de 2009 – posteriormente alterada pela Lei Complementar nº 854, de 15 de outubro de 2012 -, não é capaz de abarcar os desafios cada vez mais complexos trazidos pela expansão urbana e rural do Distrito Federal nos últimos anos, por exemplo, a infraestrutura obsoleta, a concentração de oportunidades de emprego e serviços com extensos deslocamentos e, principalmente, a crescente vulnerabilidade socioeconômica de significativa parcela da população (DISTRITO FEDERAL, 2021). 

É possível, portanto, constatar a urgência da revisão do Plano Diretor que, em consonância com o art. 40, § 3º, do Estatuto da Cidade[3], deve e, de fato, necessita ser atualizado a cada dez anos de modo a abarcar porções urbanas mais contemporâneas, como o Sol Nascente/Pôr do Sol que, apenas em 2019, foi considerada uma Região Administrativa dissociada de Ceilândia. Nesse âmbito, é notória a necessidade de se estabelecer uma gestão participativa entre com a população mais severamente afetada pelo ausência de políticas habitacionais e as entidades públicas encarregadas de elaboras o Plano Diretor. 

 

2 O PLANO DIRETOR – A POLÍTICA DE ORDENAMENTO TERRITORIAL DO DF

O Plano Diretor, enquanto ferramenta direta de modificação da dimensão política e social do espaço e da habitação na cidade, representa um espaço de disputa abrangente. Dada a importância do PDOT e sua influência sobre a questões como emprego, transporte, habitação e desigualdade, a participação pública ampla e direta é fundamental para a legitimação do instrumento como uma política pública intervencionista. Caso contrário, o PDOT funcionaria apenas como uma divisão indiscriminada e aleatória do espaço, sem complexidade técnica ou profundidade social nenhuma. Assim, a própria Lei Complementar 803/2009, em seu artigo 7°, inciso VIII, estabelece a “participação da sociedade no planejamento, gestão e controle do território” como princípio do PDOT. A lógica do processo legislativo de construção do planejamento se inverte, então, deixando de tender para uma lógica democrática representativa e se voltando uma lógica democrática direta. Isso, todavia, não importa no poder decisório no âmbito popular, porém sim numa processo de construção permeado por intensa participação popular em diversos níveis, exigindo, no âmbito do DF, um Plano Diretor envolvendo técnica, decisão política e crivo populacional.

A exemplo do processo legislativo do PDOT 2009, o planejamento foi realizada mediante múltiplas etapas, envolvendo agentes técnicos e entidades civis, contudo, as etapas somente avançavam a partir da realização de audiências públicas gerais. No interior dessas etapas, também configuravam-se consultas populacionais específicas, direcionadas a regiões diferentes do DF de maneira a abarcar todas as regiões administrativas. Essa participação, de acordo com o próprio documento técnico do PDTO 2009,  foi fundamentada no “envolvimento da sociedade na identificação de demandas, definição de prioridades e construção coletiva de propostas que visam à promoção do desenvolvimento sustentável;” e também em abordagem metodológica organizada que permitiu a participação diretamente da população e indiretamente mediante associações privadas. Visando uma melhor visualização da estrutura metodológica de construção do PDOT e da presença popular nesse processo, Segue o plano metodológico geral do PDOT 2009:

Figura 1 – Metodologia Geral do PDOT [4]

https://www.seduh.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2017/09/documento_tecnico_pdot12042017.pdf

https://www.seduh.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2017/09/documento_tecnico_pdot12042017.pdf

Pela natureza jurídica e legislativa singular dos planos diretores, essa estruturação complexa de participação social combinada com estudo técnico é possível na definição de normas gerais de urbanização e recortes específico da distribuição do espaço urbano. Nesse contexto, a câmara legislativa do DF propôs eixos temáticos para serem discutidos no âmbito dos estudos e das audiências. Compreendendo o PDOT já como ferramenta de veiculação democrática de pautas econômico-sociais, os eixos propostos foram: gestão social da terra, novas formas e ferramentas de controle social para a gestão do solo; desenvolvimento econômico sustentável e centralidades, estimular novas zonas urbanas que aumentem a oferta de emprego e atividades em regiões fora do plano piloto; acessibilidade e mobilidade sustentável por meio da integração de ordenamento territorial e transporte público de qualidade, priorizando o deslocamento a pé ou por bicicletas; ruralidades, nova abordagem nas relações campo cidade que estimule o desenvolvimento rural, a preservação ambiental e segurança alimentar; habitação e regularização fundiária, debate estratégias para enfrentar o déficit habitacional e as ocupações irregulares, aumentando a oferta de moradias dignas para faixas de rendas mais vulneráveis; meio ambiente e infraestrutura, integrar a rede de infraestrutura urbanas à rede de infraestruturas verdes, promovendo o desenvolvimentos territorial sustentável.[5]

Ainda assim, apesar das oportunidades democráticas únicas ao modelo legislativo dos planos diretores municipais, esses normativos também possuem problemas particulares de legitimidade e aplicação, envolvendo sua natureza jurídica e sua distância com a técnica urbanística. Como ato legislativo, a decisão política fundamental rege nos vereadores (deputados distritais no caso do DF) e, através da prática comum dos planos diretores brasileiros, a intervenção do executivo fica restrita aos decretos, que nada impedem ou alteram a lei[6], apenas determinando o  enquadramento dessas áreas às diversas atividades nos usos previstos em lei. Nos moldes citados, a falta de um processo decisório conjunto muitas vezes relega o plano diretor a interesses dispersos e adversos, transformando o planejamento territorial em uma “concha de retalhos”, ausente de técnica urbanística e vontade popular imbuída. 

Portanto, ainda que presente um processo legislativo diferenciado e participativo, como  utilizado pelo Câmara Legislativa Distrital em 2009, a grande questão se volta para o poder decisório regido exclusivamente pelo poder legislativo local, sem a possibilidade de interação democrática direta através do voto ou veto do plano diretor. Ainda que, no DF, a audiência pública seja um pré-requisito para as etapas do processo do PDOT, tal ferramenta não possui competência para vetar parte ou necessariamente adicionar elementos ao projeto, excluindo a participação popular e técnica à categoria recomendatória. É nesse cenário de exclusão da participação direta que a presença de movimentos sociais no planejamento territorial se torna fundamental.    

 

3 A ATUAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA ELABORAÇÃO DO PDOT 

Para além de uma ferramenta jurídica de organização urbana, o Plano Diretor é uma oportunidade de influencia na concretização do direito à cidade para inúmeras populações que restam invisíveis e abandonadas aos olhos da Administração Pública. A situação de vulnerabilidade social vivenciada por habitantes de Regiões Administrativas, como o Sol Nascente, retratam a precariedade e inépcia das políticas governamentais e de investimentos em infraestrutura básica, como esgoto, asfaltamento e eletricidade, uma realidade absolutamente contrária da verificada em setores habitacionais a cerca de 30km de distância, como o Lago Sul. Tal conjuntura é escancarada na elucidação da moradora do Sol Nascente, Andrea Lopes Mello, que usa a expressão “fora do mapa” para se referir a desigualdade sócioespacial vivenciada pelos moradores da referida Região Administrativa:

Não estamos dentro do mapa. O que significa estar fora. Sem água, sem luz, sem energia, sem esgoto. […] Aqui é um pedacinho da nossa luta. Nós moramos em um lugar longe de tudo. Não temos água encanada, não temos luz, não temos esgoto, não temos ônibus para a gente poder se deslocar. A gente passa dois dias sem uma gota d’água ou mais. Às vezes a gente fica dois, três ou quatro dias sem luz [7]

É evidente, portanto, que efetivo enfrentamento dos desafios delineados nos eixos temáticos do novo PDOT somente se torna possível quando explicitas as verdadeiras demandas dessas populações acerca da pauta habitacional, o que corrobora com a noção de construção do novo Plano Diretor em gestão colaborativa entre os órgãos governamentais e as entidades da luta por habitação e direitos dos trabalhadores, como o Movimento dos Trabalhadores por Direitos – MTD. Este vem promovendo encontros para discutir as reivindicações de moradores do Sol Nascente para o Plano de Ordenamento Territorial, propiciando a oportunidade desses cidadãos terem suas demandas e perspectivas integradas à Oficinas Participativas promovidas pela SEDUH.

Assim, a presença e pressão dos movimentos sociais é essencial para trazer à tona os desafios vivenciados por esses indivíduos em razão da incompletude e obsolescência do atual Plano Diretor, assim como da ineficiência do Poder Público do DF em reduzir as desigualdades sociais e garantir direitos básicos à toda sua população. Nessa linha, a revisão do PDOT representa uma possibilidade de definir a próxima década de políticas públicas referentes à habitação, mobilidade pública, gestão social da terra e, no geral, à qualidade de vida de diversas populações do DF. A participação da sociedade na elaboração do Plano Diretor, mesmo com as limitações já elucidadas, torna-se um fator central para a constituição de cidades cada vez mais justas, inclusivas, sustentáveis e democráticas, tendo em vista o ideal dos indivíduos disporem, habitarem e participarem em igualdade das porções urbanas e rurais . [8]

 

4 CONCLUSÃO

A luz do conteúdo demonstrado, é imperativo a ação popular, organizada em movimentos sociais, na participação direta na produção do Plano Direito do Ordenamento Territorial do Distrito Federal. Como se encontra, o PDOT já esta em sua fase de produção, colhendo a opinião popular e realizando seus estudos técnicos, visando uma aprovação do projeto no primeiro semestre de 2024[9]. Estão programadas, até o final de 2023, 53 oficinas participativas, sendo que 35 ocorrerão de forma presencial em cada uma das Regiões Administrativas do DF, outras 18 oficinas acontecerão por segmentos como, por exemplo, quilombolas e população LGBTQIA+. As datas, horários e locais estão todos disponíveis no painel público do PDOT DF, em específico na parte de Agenda[10]

Ainda que o sistema não possua um correlação direta dos meios de participação popular, as oficinas participativas e as audiências públicas presentes no modelo metodológico do PDOT DF são instrumentos importantíssimos, passíveis de ocupação por movimentos sociais urbanos e rurais. Logo, para a construção de um novo plano diretor abrangente, democrático, plural e com foco no fim das desigualdades sociais, é fundamental a presença de movimentos sociais na formulação política de ideias, diretrizes e conceitos da nova lei.

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*Beatriz Stephany Carvalho da Silva: Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) e membro do Programa de Educação Tutorial do Curso de Direito – PET, ambos da Faculdade de Direito da UnB.

*Matheus Zchrotke da Silva: Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) e membro do projeto de extensão Hermenêutica (Sociedade de Debates da UnB) ambos da Faculdade de Direito da UnB. Ex-Assessor de Negócios na AdvocattA, Empresa Júnior de Direito na UnB. Ex-membro do Conselho de Representantes da Faculdade de Direito durante 2021 e 2022. Ex-membro voluntário do Projeto Tutouros, projeto de tutoria voluntária gratuita para alunos do Ensino Fundamental da rede pública do DF.

[1] BRASIL, 1990

 [2] SEDUH, 2020.

 [3] BRASIL, 2008.

[4] SEDUH, 2009. Disponível em: seduh.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2017/09/documento_tecnico_pdot12042017.pdf

 [5] SEDUH, 2023.

[6] PINTO, 2014.

[7] MELLO, 2023

[8] AMANAJÁS, Roberta; KLUG, Letícia, 2018.

[9] SOUZA, 2023.

[10] Disponível em  Agendas (sistemas.df.gov.br)

 

REFERÊNCIAS

 

AMANAJÁS, Roberta; KLUG, Letícia. A Nova Agenda Urbana e o Brasil: insumos para sua construção e desafios a sua implementação. Revista Direito à cidade, cidades para todos e estrutura sociocultural urbana, 2018. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/livros/180529_a_nova_agenda_urbana_e_o_brasil_cap02.pdf. Acesso em: 7 nov. 2023. 

 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

 

BRASIL. [Estatuto da Cidade] Estatuto da Cidade. – 3. ed. – Brasília : Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008.

 

DISTRITO FEDERAL. Lei Orgânica do Distrito Federal. Brasília, 1993. Disponível em: Lei Orgânica de 08/06/1993 (sinj.df.gov.br)

 

MELLO, Andrea. Sol Nascente: entenda por que crianças da maior favela do Brasil não têm acesso à cidade e ao lazer. [Entrevista concedida a] Fernanda Bastos. G1DF, 12 de out. de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/10/12/sol-nascente-entenda-por-que-criancas-da-maior-favela-do-brasil-nao-tem-acesso-a-cidade-e-ao-lazer.ghtml. Acesso em:

 

PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito a Propriedade. 4. ed. [S. l.]: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/5-regime-juridico-do-plano-diretor-direito-urbanistico-plano-diretor-e-direito-de-propriedade/1212796898. Acesso em: 7 nov. 2023.

 

PINTO, Victor Carvalho. Regime Jurídico do Plano Diretor. Brasília: Senado Federal, Consultoria Legislativa, 2005. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/150. Acesso em: 7 nov. 2023.

 

SEDUH. Apresentação da Leitura Técnica do Território. Brasília: GDF, Dezembro de 2021. Disponível em: https://sistemas.df.gov.br/PDOTSEDUH/Visualizador?PDF_LinksIdentifier=273. Acesso em: 7 nov. 2023.

 

SEDUH. Entenda o que é o Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF, 2020. Disponível em:https://www.seduh.df.gov.br/entenda-o-que-e-o-plano-diretor-de-ordenamento-territorial-do-df/. Acesso em: 7 nov. 2023.

 

SEDUH. Os Eixos Temáticos do PDOT — parte 2. Abril, 2022. Disponível em: https://sistemas.df.gov.br/PDOTSEDUH/OqueeoPDOT. Acesso em: 7 nov. 2023. 

 

SEDUH. PDOT: Documento Técnico. Brasília: GDF, Novembro 2009. Disponível em: http://www.seduh.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2017/09/documento_tecnico_pdot12042017.pdf. Acesso em: 7 nov. 2023.

 

SOUZA, Arthur de. PDOT deve ser enviado à Câmara Legislativa do DF somente em 2024. Brasília: Correio Braziliense, 4 set. 2023. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2023/09/5121717-pdot-deve-ser-enviado-a-camara-legislativa-do-df-somente-em-2024.html. Acesso em: 7 nov. 2023.

 

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