(IN)APLICABILIDADE DO IN DUBIO PRO SOCIETATE NA DECISÃO DE PRONÚNCIA

A (im)possibilidade de mitigação do princípio do in dubio pro reo no fim da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri

por Equipe de Processo e Direito Penal

Escrito por Rafael Foschetti Meirelles*

O procedimento especial do Tribunal do Júri, com competência constitucional para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, aborto e auxílio ao suicídio), é dividido em duas fases. A primeira consiste no juízo de acusação, fase muito semelhante ao procedimento comum ordinário, momento em que é realizado o juízo preliminar da denúncia por um magistrado. Essa etapa é voltada, em síntese, para que o magistrado realize um juízo de admissibilidade da acusação, para identificar se todos os requisitos legais e constitucionais necessários para o julgamento pelo Tribunal do Júri estão presentes. 

Essa decisão é chamada de pronúncia, em que tradicionalmente é aplicado o instituto do in dubio pro societate, em detrimento do conhecido in dubio pro reo. Ou seja, mesmo que existam dúvidas em referência à participação do réu no crime (autoria), é comum que os juízes pronunciem os réus, levando em consideração o interesse da sociedade em ver o crime doloso contra a vida ser processado pelo Tribunal do Júri.

Dito isso, o Código de Processo Penal elenca os pressupostos legais que devem estar presentes para que haja a pronúncia do acusado quando do final da primeira fase do Tribunal do Júri, estando esses previstos no art. 413, caput [1]

São, assim, dois requisitos básicos para a pronúncia: a certeza quanto à ocorrência do crime, e a presença de “indícios suficientes” de que o acusado foi o autor de tal delito. Observa-se, dessa maneira, que é dado um tratamento diferente para a materialidade e para a autoria da infração: enquanto que em relação à primeira se exige uma certeza, a segunda demanda uma conclusão menos firme.

Dessa forma, o juiz deve apenas identificar “indícios suficientes” da autoria, não sendo necessário um juízo de certeza. Tal expressão é objeto de muita discussão e divergência, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, no que se refere ao grau de incerteza e probabilidade efetivamente exigido pela lei. 

Mesmo assim, a doutrina tradicional aponta que, nessa fase do procedimento do júri, em relação à decisão feita acerca autoria do delito, deve ser aplicado o in dubio pro societate, o qual representa que o juiz precisa “guiar-se pelo ‘interesse da sociedade’ em ver o réu submetido ao Tribunal do Júri, de modo que, havendo dúvida sobre sua responsabilidade penal, deve ser pronunciado” [2].

Essa expressão corresponde a uma contrapartida ao princípio do in dubio pro reo. Dessa forma, a mera exigência por parte da lei em relação à suficiência de indícios em relação à autoria leva à conclusão de que, “existindo possibilidade de se entender pela imputação válida do crime contra a vida em relação ao acusado, o juiz deve admitir a acusação, assegurando o cumprimento da Constituição, que reservou a competência para o julgamento de delitos dessa espécie para o tribunal popular”[3]. Isto é, na dúvida, existindo indícios suficientes, é caso de pronúncia, em razão do in dubio pro societate.

A jurisprudência tradicional dos tribunais brasileiros é nesse sentido, como se observa do julgamento unânime proferido pela Quinta Turma do STJ em 2019 no AgRg no AREsp 1.276.888/RS [4], em que se decidiu que “a pronúncia não demanda juízo de certeza necessário à sentença condenatória, uma vez que as eventuais dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se em favor da sociedade – in dubio pro societate”.

No entanto, ainda que o entendimento tradicional seja no sentido de se aplicar o in dubio pro societate diante de situações de existência de dúvidas quanto à autoria do crime doloso contra a vida, forte e crescente é a corrente que não aceita a aplicação desse instituto.

Isso se deve ao fato de que, mesmo tendo o legislador optado por não demandar a certeza da autoria do crime para a pronúncia, isso não pode significar que o juiz se ausente de justificar sua decisão em um “conjunto probatório que indique, com alto grau de probabilidade, que foi o acusado o autor do delito” [5]. Corrobora com essa ideia as palavras de Renato Brasileiro [6]:

[…] ainda que não seja exigido um juízo de certeza quanto à autoria, é necessária a presença de, no mínimo, algum elemento de prova, ainda que indireto ou de menor aptidão persuasiva, que possa autorizar pelo menos um juízo de probabilidade acerca da autoria ou da participação do agente no fato delituoso. Apesar de não se exigir certeza, exige-se certa probabilidade, não se contentando a lei com a mera possibilidade.

Assim, percebe-se que, ao se prever a necessidade de “indícios suficientes” de autoria, o texto da lei permite que a decisão seja pautada em provas indiretas, sem valor probatório de total certeza. Contudo, a suficiência descrita pelo legislador indica exatamente que esses indícios não podem ser rasos, mas sim devem permitir que uma probabilidade, para que se pronuncie apenas nos casos em que realmente possa haver uma condenação futura.

Nota-se, portanto, que não se permite a existência de dúvidas por parte do juiz, mas sim é preciso haver a utilização de provas mínimas, com menor valor probatório. Como bem explica Rangel, “se há dúvida, é porque o MP não logrou êxito em demonstrar materialidade e autoria” [7].

Ou seja, é necessário que haja um lastro probatório em relação à autoria. Claro é que não se exige uma certeza além da dúvida razoável, como se espera para uma condenação. Todavia, deve existir um elementos suficientes de prova, formados por indícios, que sejam capazes de demonstrar a autoria, mesmo que com um standard probatório inferior ao que se espera para a materialidade do crime.

É nesse ponto que surgem as críticas quanto à aplicação do in dubio pro societate, porquanto, tradicionalmente, diante da existência de dúvidas em relação à autoria, prevaleceu o entendimento de que dever-se-ia pronunciar o réu em prol da sociedade, mantendo a competência dos jurados para decidir acerca da autoria do delito. Ocorre que tal instituto não pode ser usado na pronúncia, porque é totalmente contrário às normas constitucionais e legais acerca do tema.

Acerca disso, é fulcral se entender que o processo penal possui como uma de suas bases primordiais a presunção da inocência. Por isso, parte considerável da doutrina vem sustentando pela ilegalidade e pela inconstitucionalidade da aplicação do in dubio pro societate no processo penal, tendo em vista a sua não previsão no ordenamento jurídico brasileiro. Sua aplicação, com isso, pode ocasionar situações de clara injustiça ao acusado, em razão de possibilitar processos sem base probatória suficiente, violando a presunção de inocência.

Ou seja, como se faz durante qualquer outra etapa e qualquer outro procedimento do processo penal, diante de dúvidas quanto ao envolvimento do réu no crime em questão, deve-se entender em favor do réu, diante da prevalência do princípio do in dubio pro reo. É incabível, pois, que se deixe de lado esse valioso instituto quando da decisão de pronúncia, em decorrência da insuficiência de provas por parte do órgão acusador.

Tal entendimento foi firmado durante o julgamento paradigmático do ARE n° 1067392, pela Segunda Turma do STF, em 2019. Em sua fundamentação, o Ministro Relator Gilmar Mendes explica que a decisão de pronúncia, no que diz respeito à autoria, exige um standard probatório inferior, mas, mesmo assim, exige uma “preponderância de provas incriminatórias”. Logo, concluiu que a dúvida quanto à preponderância de provas da autoria deve resultar na impronúncia, em clara aplicação do princípio constitucional do in dubio pro reo, em contrapartida ao in dubio pro societate, o qual, segundo o Ministro, não possuiria base legal e constitucional no país.

Portanto, diante do exposto, é possível se concluir que a decisão de pronúncia não é compatível com o instituto do in dubio pro societate, seja em relação à materialidade, a qual exige um juízo de certeza, seja em referência à autoria, a qual demanda um juízo de probabilidade, pautado em provas indiretas suficientes para suprimir o estado de dúvida do juiz togado, não permitindo que uma dúvida existente seja resolvida em prol da sociedade.

Por fim, conclui-se com uma frase de Lenio Streck [8] que bem explica a crítica existente ao in dubio pro societate: “de há muito advirto para a inadequação da “tese” in dubio pro societate. Não é que ela não tem guarida na CF: ela não tem é guarida na civilização ocidental”.

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* Rafael Foschetti Meirelles, graduando em direito pela Universidade de Brasília. Integrante da equipe de Competição de Processo Penal da UnB e do Grupo Candango de Criminologia.

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[1] CP, art. 413, caput:“O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”.

[2] LOPES JUNIOR, 2020, p. 1254.

[3] TAVORA, 2017, p. 1238.

[4] AgRg no AREsp 1.276.888/RS.

[5] BADARÓ, 2020, p. 776.

[6] LIMA, 2022, p. 1269.

[7] RANGEL, 2019, p. 1012.

[8] STRECK, 2021.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

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STJ. AgRg no AREsp nº 1.276.888 – RS. Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS. Órgão Julgador: QUINTA TURMA. Data de Julgamento: 19/03/2019. Data de Publicação: 25/03/2019.

STRECK, Lenio Luiz. Polêmica no STF: No princípio, por princípio, era o in dubio pro reo!. Consultor Jurídico, Opinião, 30 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/ 2021-nov-30/lenio-streck-principio-principio-in-dubio-pro-reo. Acesso em 02/09/2022.

TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal / Nestor Távora, Rosmar Rodrigues Alencar – 12. ed. rev. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm. 2017.

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