Escrito por João Vitor Dias Oliveira [*]
Imagem: Lizandra Martins (@lizandramartins_), foto tirada em Petrolina/PE, em 21 de setembro de 2025.
A aprovação da chamada PEC da Blindagem, apelidada por parte da opinião pública de “PEC da Bandidagem”, reacende um debate histórico e simbólico sobre os limites do poder político e a fragilidade das instituições democráticas no Brasil. Sob o pretexto de resguardar as prerrogativas parlamentares, a proposta, aprovada na Câmara dos Deputados em setembro de 2025, reaviva práticas de autoproteção e impunidade que há décadas caracterizam a cultura política nacional (Braun; Mariana, 2025).
Esse episódio evidencia o funcionamento do poder simbólico, entendido, segundo Bourdieu (2007, p. 7-8), como um poder invisível que só se exerce com a cumplicidade dos que o reconhecem e, ao mesmo tempo, não percebem sua própria sujeição. A blindagem institucional dos parlamentares, portanto, não é apenas um ato jurídico ou político, mas a reafirmação de um poder que se perpetua sob o véu da legitimidade e da naturalização social. Representa a continuidade de um padrão histórico de autorreprodução do poder, legitimado por discursos de “autonomia dos Poderes” e “defesa das prerrogativas parlamentares”.
O contexto de tramitação da PEC insere-se num cenário em que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exercido papel ativo no combate a práticas ilícitas envolvendo autoridades, especialmente após os episódios antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 e a condenação de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado. A reação parlamentar, nesse quadro, não se limita a uma divergência entre Poderes: traduz uma disputa simbólica pela hegemonia da interpretação legítima da democracia e do próprio Estado de Direito. O que está em jogo é a definição do “poder legítimo” e da “autonomia institucional”, categorias que, como assinala Bourdieu (2007, p. 11), são fruto da luta entre classes e frações de classes que buscam impor sua visão de mundo, convertendo posições sociais em ideologias naturalizadas.
Ao reivindicar o monopólio da interpretação sobre os limites de sua responsabilização, o Parlamento atua em um campo de produção simbólica que espelha, em escala reduzida, a disputa mais ampla entre forças políticas e sociais pelo controle do significado da democracia. Nesse microcosmo, os agentes, ao defenderem seus interesses internos, acabam por reforçar os interesses de grupos externos que lhes dão sustentação (Bourdieu, 2007, p. 12).
O discurso em defesa ao projeto de emenda, revestido da retórica da soberania popular e da liberdade de voto, reitera a antiga invocação da “vontade do povo” como fonte suprema de legitimidade política. A apropriação da máxima “a voz do povo é a voz de Deus” converte-se em instrumento de blindagem moral, buscando justificar a ampliação das imunidades parlamentares sob o manto de uma suposta proteção da democracia representativa. Entretanto, a democracia só se mantém saudável quando acompanhada de mecanismos efetivos de responsabilização; sem eles, degenera em oligarquia legitimada pelo voto.
As manifestações populares contrárias à PEC, expressas nas ruas e nas redes, refletem um ressentimento cívico acumulado, uma memória coletiva de promessas frustradas de moralização, desde a Lei da Anistia de 1979 até os recentes escândalos de corrupção. O povo, mais uma vez, vê-se excluído dos espaços decisórios que deveriam traduzir sua voz. A “voz de Deus”, evocada pelo discurso populista, acaba silenciada pelo ritual parlamentar da autoproteção.
A reação social, assim, transcende o repúdio à proposta e revela uma crise de confiança nas instituições representativas, elemento central da democracia. Essa erosão, recorrente nas democracias contemporâneas, evidencia o esgotamento do modelo representativo e, no Brasil, agrava-se por uma trajetória histórica de fragilidade institucional, tornando o descontentamento popular expressão de uma persistente sensação de exclusão e de insuficiente representação (Meneguello; Porto, 2022, p. 181).
Ao restabelecer a exigência de autorização prévia do Congresso Nacional para o processamento criminal de parlamentares, o texto apresentado reconfigura a arquitetura institucional da responsabilização política e reinstaura mecanismos de impunidade que a redemocratização e as reformas de 2001 haviam buscado superar. O Legislativo reafirma-se como instância de bloqueio, operando simultaneamente como juiz e parte, numa estratégia de autopreservação corporativa que fragiliza a permeabilidade democrática do poder.
A ampliação do foro especial para presidentes de partidos políticos amplia a blindagem institucional e consolida um sistema político autorreferencial, menos permeável à crítica social e progressivamente imune ao controle jurídico e moral. A proposta não apenas ergue muros simbólicos que separam a classe política da sociedade civil, mas redefine os contornos do poder, convertendo-o em circuito fechado de autorreferência, em que o controle se dilui nas prerrogativas e a responsabilidade se torna residual.
A leitura foucaultiana oferece, nesse ponto, uma chave interpretativa essencial: o poder não é substância nem estrutura fixa, mas uma rede densa e difusa que se infiltra nos discursos e nas instituições, produzindo verdades e legitimidades. Como observa Foucault (1979, p. 221), “o poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado”. Assim, essa super blindagem deve ser entendida não apenas como iniciativa jurídica, mas como sintoma da disseminação contemporânea do poder político nas formas sutis da dominação simbólica, que se mascara sob o manto da legalidade democrática.
Essa dinâmica revela o que Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 240) identifica como a tensão constitutiva da modernidade entre a subjetividade individual e a cidadania regulada pelo Estado. Enquanto o discurso jurídico promete proteção e autonomia institucional, observa-se, na prática, a regulação do espaço político pela lógica da autopreservação, em detrimento da emancipação cidadã. A PEC reforça, assim, a face regulatória do Estado, ao invés de expandir o horizonte da emancipação democrática.
Entretanto, a resistência social que emergiu diante da proposta (as manifestações, as críticas acadêmicas e, por fim, sua rejeição no Senado) revela um movimento inverso: a reapropriação do político pela sociedade. Ecoa, nesse gesto, a reflexão de Santos (2008, p. 256), segundo a qual a difusão social da produção e do conhecimento não apenas desvela novas formas de opressão, mas também propicia o surgimento de novos sujeitos e práticas de mobilização.
Em última análise, a controvérsia evidencia um duplo movimento: de um lado, o fechamento autorreferencial do poder político, que busca controlar a cidadania; de outro, a emergência de uma esfera pública insurgente, que tenta deslocar o eixo da cidadania da regulação para a emancipação, tornando visíveis as fissuras de um sistema que insiste em blindar-se contra o olhar democrático.
A reação popular, nesse contexto, assume caráter histórico e contra-hegemônico: reativa a memória política de um povo que, ciclicamente, assiste ao distanciamento do poder em relação ao seu sentido republicano e à sua captura pela lógica patrimonialista. As manifestações não se limitam à crítica, mas denunciam o esvaziamento ético das instituições, a distorção do princípio da representação e a tentativa de converter a imunidade parlamentar em impunidade institucionalizada.
Essa pressão simbólica e social ultrapassa o espaço público e alcança o campo político, encontrando impacto no Senado Federal, que rejeita a proposta na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) por unanimidade: 26 votos contrários e nenhum favorável (Agência Senado, 2025). A decisão, embora formalmente jurídica, reflete a força simbólica da sociedade, que, ao se manifestar, reivindica o direito de redefinir os limites do aceitável em uma democracia.
Como lembra Szymborska (2011), “o que você diz tem ressonância, / e o que silencia tem um eco / de um jeito ou de outro, político”. O movimento popular, nesse sentido, converte-se em ato de resistência discursiva, uma revolução simbólica contra a dominação simbólica (um pleonasmo necessário), nos termos de Bourdieu (2007, p. 125), ao reapropriar o poder de definir e avaliar a própria identidade política; um poder que, historicamente, os dominados foram levados a ceder sob a promessa de representação.
Não se trata apenas da rejeição de uma proposta legislativa, mas da insurgência de um campo social que reivindica o direito de nomear, significar e limitar o poder, restituindo ao espaço público a densidade simbólica e política da democracia. A reação popular às prerrogativas extraordinárias expressa a imaginação social de novos modos de exercer o poder democrático, de redefinir a participação e de reconfigurar o próprio conceito de cidadania.
Santos (2008, p. 276) observa que “a diferenciação das lutas democráticas pressupõe a imaginação social de novos exercícios de democracia e de novos critérios democráticos para avaliar as formas de participação política”. A experiência recente aponta, portanto, para a urgência de um deslocamento do eixo representativo em direção a formas mais horizontais e coletivas de cidadania, nas quais a participação não se resume à reação, mas se afirma como coautoria dos processos de deliberação e decisão.
Assim, ao contrário do que sustentou seus defensores, a chamada PEC da “bandidagem” não fortalece a democracia, mas a subverte. E, quando o povo, de quem emana todo o poder (art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988), ergue a voz para denunciar esse desvio, essa voz é, de fato, divina, pois ecoa o princípio fundante do Estado Democrático de Direito: ninguém está acima da lei.
Referências
AGÊNCIA SENADO. CCJ rejeita PEC que exige autorização para ação penal contra parlamentares. Senado Notícias, 24 set. 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/09/24/ccj-rejeita-pec-que-exige-autorizacao-para-acao-penal-contra-parlamentares. Acesso em: 7 out. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitucao/constitucao.htm. Acesso em: 7 out. 2025.
BRAUN, Julia; SCHREIBER, Mariana. PEC da Blindagem: o que pode mudar com proposta para dificultar processos criminais contra parlamentares. BBC News Brasil, 16 set. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgmzjkgk188o. Acesso em: 7 out. 2025.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
MENEGUELLO, Rachel; DEL PORTO, Fábíola Brigante. A desconfiança política dos eleitores em relação às instituições representativas. Revista USP, São Paulo, n. 134, p. 179-196, jul./ago./set. 2022. Disponível em: https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2022/08/10-Rachel-Meneguello.pdf. Acesso em: 7 out. 2025.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
SZYNBORSKA, Wislawa. Filhos da Época. In: Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 77-78.
[*] Graduando em Direito na Universidade do Estado da Bahia, campus III. Membro da Rede de Estudos em Direito Educacional e Ensino Jurídico (REDEEJ/UFBA) e do Motim Esperança Garcia Formação Jurídica e Epistemologias Insurgentes (Pós-crítica – UNEB, campus II). E-mail: jovidioliveira@gmail.com.

