O CASO FERNÁNDEZ PIETRO & TUMBEIRO VS. ARGENTINA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO E SEUS HORIZONTES DE POSSIBILIDADES NO CENÁRIO BRASILEIRO DE VIOLÊNCIA POLICIAL


Por: Gisele Vicente Meneses e Maria Adélia Gomes


O presente artigo adota enquanto objeto o estudo dos critérios e protocolos utilizados no controle judicial relativo ao caso de violência policial submetido ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), qual seja, o Caso Carlos Alberto Fernández Prieto e Carlos Alejandro Tumbeiro vs. Argentina (Caso n. 12.315 – Prieto & Tumbeiro vs. Argentina).

Em sentença[1] prolatada na data de um de setembro de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou os eventos ocorridos em maio de 1992 e em janeiro de 1998, nos quais ambas as vítimas foram detidas arbitrariamente sem ordem judicial e, tampouco, situação de flagrante delito. Além disso, não houve sequer, por parte dos policiais, a divulgação adequada das razões e dos elementos objetivos que levaram à detenção dos dois homens.

Insta mencionar que a sentença capitaneada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Prieto & Tumbeiro vs. Argentina é considerada um parâmetro emblemático para que outros países, a exemplo do Brasil, regulem e fiscalizem efetivamente suas polícias. Inclusive, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)[2], organização não governamental brasileira, participou deste julgamento como amicus curiae, enviando para a CIDH dados sobre a letalidade brasileira.

Diante desse cenário, é necessário traçar semelhanças entre os contextos da Argentina e do Brasil, isso porque as abordagens policiais aqui presentes da mesma forma não encontram limites legais no controle judicial, somado a isso, apresentam vícios incompatíveis com os valores constitucionais e configuram abusos condenados diariamente pelos Tribunais Internacionais.

Importante trazer à baila o fato de que o Brasil carrega consigo um legado bárbaro: a polícia brasileira é a que mais mata no mundo, segundo aponta o relatório da Anistia Internacional[3]. Nesse sentido, o desfecho desse caso é de suma importância, já que a sentença condenatória da CIDH, peremptoriamente, determina que sejam adaptados os regulamentos domésticos a fim de que a atuação policial seja balizada por limites objetivos para evitar ingerências arbitrárias nas prisões, revista pessoal ou de veículo.

Um ponto que merece destaque é justamente a recomendação[4] de um plano de treinamento para as forças policiais de Buenos Aires e da Polícia Federal Argentina, o qual deve incluir no seu bojo informações sobre a vedação de basear prisões em fórmulas dogmáticas e estereotipadas. A mesma recomendação deve ocorrer para o Ministério Público e Poder Judiciário, cuja formação deve ter como objetivo a necessidade de avaliar adequadamente os elementos que motivam as prisões e revistas executadas pelas polícias como parte do controle judicial.

No que concerne ao contexto histórico argentino, nos anos 90, o caso eclodiu no momento conhecido como “olfato policial”[5], cujas ações policiais eram bastante truculentas, fomentadas por políticas de segurança pública pautadas no modelo bélico, profundamente ineficiente, da “guerra às drogas”.

Paralelamente, esse também é o retrato do Brasil no qual a guerra às drogas convoca todos os mecanismos do Estado, desse modo, questionar esse modelo de segurança pública genocida torna-se urgente e necessário. É imperioso reconhecer o fracasso dessa atual política brasileira e quantas vidas já foram perdidas envolvidas nela, tanto da sociedade civil quanto dos agentes do Estado.

Nesse ponto, cabe a análise percuciente da professora Ana Flauzina[6] sobre o que movimenta as engrenagens do sistema penal brasileiro:

(…) a forma de movimentação do sistema penal brasileiro, fundamentada na violência e na produção de mortes, tem o racismo como variável central. Atentando para as diferentes facetas dos sistemas penais ao longo do processo histórico no país, o que se percebe é a existência de um padrão que se institui no seio da sociedade colonial e com o qual nunca se rompeu, efetivamente, até os dias atuais. A obsessão pelo controle dos corpos negros e o projeto de extermínio que, com a abolição da escravatura, passa a compor a agenda política do Estado são os vetores mestres que ainda hoje balizam a atuação do sistema penal (FLAUZINA, 2006).

A bem dizer, parafraseando a canção, “a carne mais barata do mercado, indubitavelmente, é a carne negra”[7]. Essa predileção do sistema de justiça criminal pela população negra, pobre e periférica, de acordo com os ensinamentos do sociólogo Luciano Oliveira[8], se explica porque estão abarcados pelas categorias classificadas por “torturáveis” ou “elimináveis” e “não torturáveis”, dentre as quais os corpos negros são potencialmente torturáveis.

Ainda de acordo com o que leciona o professor Luciano, ao historiar o período de Ditadura Civil-Militar brasileira[9], é possível inferir que as práticas de torturas não foram introduzidas nesse contexto ditatorial brasileiro, elas foram implementadas desde muito antes e, atualmente, possuem uma faceta mais sofisticada. 

A par de todas essas discussões, importante sublinhar ainda que, paradoxalmente, no Brasil há uma coexistência entre o Estado Democrático e Estado Policial, quer dizer, não há uma cisão concreta entre essas duas formas de estruturação de Estado. Dito de outro modo: existe um convívio, aparentemente amistoso, entre as regras do Estado de Direito e o funcionamento dos órgãos da justiça criminal à margem da legalidade[10].

Por essa razão, superar a problemática da violência policial demanda esforços conjuntos de diversos atores, já que se trata de uma questão multifacetada. Desse modo, o presente trabalho teve a pretensão de pensar a contribuição circunscrita aos instrumentos do campo jurídico presente no Caso Prieto & Tumbeiro vs. Argentina e seus desdobramentos no Brasil.

Um primeiro olhar indica que há uma potência na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos relativa ao caso em tela, já que, em vários aspectos retro demonstrados, coaduna com o contexto brasileiro. Não obstante as sanções impostas pela condenação estejam relacionadas estritamente ao Estado Argentino, o teor da decisão da Corte pode inaugurar diretrizes e parâmetros no cenário brasileiro no tocante à atividade policial.

Revelou-se oportuno priorizar a discussão sobre os tantos desafios que precisam ser notados e vencidos, o maior deles está no fato de que é necessário haver balizas, por meio do controle judicial, na atividade da polícia. Certamente, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Prieto & Tumbeiro vs. Argentina indica parâmetros e diretrizes para essa problemática. Desse modo, se faz necessário pensar nos horizontes de possibilidades que essa decisão pode causar na realidade brasileira.


Gisele Vicente Meneses é Advogada Criminalista (OAB-PE). Pós-Graduanda em Direito Processual Penal (Faculdade CERS). Graduada em Direito (UNICAP). Coordenadora Adjunta do IBCCRIM/PE. Professora no Laboratório de Ciências Criminais do IBCCRIM/PE. Pesquisadora no Grupo de Estudos Avançados Nacional em Direito Penal Eleitoral (IBCCRIM). Pesquisadora em Ciências Criminais nas áreas de Gênero e Criminologia Crítica. Mediadora Extrajudicial

Maria Adélia Gomes é Advogada Criminalista (OAB/PE). Mestranda em Direito – Jurisdição, Cidadania e Direitos Humanos (UNICAP). Bolsista da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Pós-Graduada em Ciências Criminais (PUC-MG). Graduada em Direito (UNICAP). Pesquisadora em Ciências Criminais, Feminismos, Decolonialidade e Segurança Pública.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença de 01 de Setembro de 2020. https://summa.cejil.org/pt/entity/x6hb2xjp24. Acesso em 02 jan. 2021.

[2]RAHAL, LEONARDO, et al. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/amicus-curiae-iddd-abordagem-policial.pdf. Acesso em: 06 jan. 2021.

[3]Amnesty International releases new guide to curb excessive use of force by police. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2015/09/amnesty-international-releases-new-guide-to-curb-excessive-use-of-force-by-police/. Disponível em: 04 jan. 2021.

[4]COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº 129/17 de 25 de outubro de 2017. https://summa.cejil.org/pt/entity/owimfr81x5j. Acesso em 02 jan. 2021.

[5]Howard Becker caracteriza a categoria nativa “faro policial” para aquilo que diz respeito à “situação de trabalho da polícia” conforme o artigo da professora Elizabete Albernaz, “Faro Policial”: um estudo de caso acerca dos critérios de construção e operação de padrões de suspeição e seletividade na ação policial. Disponível em: https://www.academia.edu/18331201/_Faro_Policial_um_estudo_de_caso_acerca_dos_crit%C3%A9rios_de_constru%C3%A7%C3%A3o_e_opera%C3%A7%C3%A3o_de_padr%C3%B5es_de_suspei%C3%A7%C3%A3o_e_seletividade_na_a%C3%A7%C3%A3o_policial. Acesso em: 06. jan. 2021.

[6]De acordo com os ensinamentos do professor Alessandro Baratta: o modo como o sistema de justiça criminal intervém sobre este limitado setor da violência “construído” através do conceito de criminalidade é estruturalmente seletivo. Esta é uma característica de todos os sistemas penais. (BARATTA, 1993).

[7]Música “A Carne” composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette.

[8]OLIVEIRA, Luciano. Do nunca mais ao eterno retorno : uma reflexão sobre a tortura / Luciano Oliveira – São Paulo : Brasiliense, 1994 (Tudo é história ; 149).

[9]A instituição da Polícia Militar foi criada em 1970, por meio de decreto no regime ditatorial brasileiro iniciado em 1964.

[10]BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Fasc. de Ciênc. Penais. Porto Alegre, v.6, n.2, p. 44-61, abr/mai/jun, 1993.

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