O litígio como representação sociopolítica do acesso à justiça

por Submissões Independentes

Por Anna Irene Nunes Mendes de Paula [1]

O termo “Judicialização” vem sendo cada vez mais pauta recorrente nas discussões a respeito da atuação dos tribunais frente o controle da legalidade, da garantia da aplicação e efetivação dos direitos ordinários dos cidadãos e o combate às “irregularidades”, como por exemplo, a criminalização da irresponsabilidade política. O grande aumento da procura de instâncias judiciais para a resolução de conflitos/injustiças tanto ‘civis’ quanto no âmbito político/administrativo do Estado – como a mediação de questões do consumidor entre pessoas e empresas privadas de fornecimento de produtos e a condenação de um órgão do governo à realização imediata de uma obra pública atrasada, respectivamente – sinalizam o aumento do protagonismo do judiciário no funcionamento das relações públicas, principalmente em comparação com os poderes Legislativo e Executivo.

 

A afirmação de uma Global Expansion of Judicial Power, retomando o título de uma obra que faz referência ao assunto (TATE; VALLINDER, 1995), faz com que se pense que essa importância crescente da justiça forma um sistema com a política, tendo em vista que pode se tratar de uma transição de uma Democracy para uma Juristocracy (GUARNIERI; PEDERZOLI, 2002. HIRSCHL, 2004) ou uma Courtocracy” (COMMAILLE, pág 2,2007).(DIAS, Barbara, pág.5, 2020)

A imagem dos tribunais no passado não refletia a noção de poder de ação que ele possui hoje. Anteriormente, tais órgãos eram associados a instituições engessadas, isoladas, conservadoras, sem intenção de atuação junto a camadas mais progressivas da sociedade ou até mesmo sem capacidade de se envolver em processos de transformação social que exigiam mais esforço e preparação, processos mais longos e de grande mudança no regime vigente – logo, longe das necessidades das populações de camadas mais baixas -. 

Assim, a noção era de que o foco se inseria nas de microescala mais do que as de macro (com potência de grande impacto social e político). A transição para um judiciário mais atento às questões e necessidades da população e mais envolvidos em litígios de cunho público ou da classe política ocasionou certa tensão entre os três poderes – baseado principalmente numa visão mais clássica, em que o Executivo era o responsável em interferir mais diretamente nas outras instâncias políticas, devido a sua figura central dentro da organização estatal –; uma vez que a partir desse momento, medidas contra a irresponsabilidade política, como abusos de poder e infrações tanto de instituições como dos próprios agentes políticos foram sendo aferidas pelo poder judiciário (se firmando, nesse contexto de confronto, como política judiciária). A esse contexto chamamos de judicialização dos conflitos políticos.  

Toda vez que os tribunais assumem tal postura, três aspectos fundamentais de sua fundação são questionados: sua legitimidade (uma instituição política e seus agentes são legítimos escolhidos democraticamente e de forma eleitoral pelo povo para essa ocupação), capacidade (recursos a qual o poder judiciário dispõem para trabalhar de forma eficiente dependem do legislativo para o seu suprimento e o cumprimento de suas funções) e independência, diretamente ligada com as duas anteriores (baseada nos princípios básicos do constitucionalismo moderno; pode ser questionado pelo próprio judiciário frente a medidas do legislativo que julga inadequadas ou a necessitar de mais recursos paralelamente ao desenvolvimento de sua atuação e importância).

A evolução da postura do judiciário e sua própria formação se deu condicionalmente ao surgimento do Estado Moderno, junto às transformações políticas aliadas ao desenvolvimento da economia capitalista a partir do século XV, variando entre os países centrais (desenvolvidos, como os Estados Unidos e os países da Europa) e os periféricos e semiperiféricos (países da América do Sul, Central, África e alguns da Ásia), logo tal ascensão não foi a mesma nesses territórios. 

Nos países centrais, o período de Estado Liberal, a partir da Primeira Guerra Mundial, introduziu o judiciário numa postura pouco atuante nos assuntos administrativos ou públicos do estado, em que o legislativo prevalecia frente os outros poderes – poder judiciário como neutro – e os tribunais atuavam apenas na prerrogativa de que suas funções deveriam ser requisitadas, no sentido de que só atuava quando solicitado pelo Estado ou por outras partes, logo, se encontravam numa posição passiva, sem possuir grande força propulsora de mudanças.  

A partir do Estado de Bem Estar Social ou Estado Providência (segunda metade do séc.XX, pós segunda guerra mundial), a noção de que condições básicas de saúde, infraestrutura, educação, trabalho deveriam ser responsabilidade do estado tomou o lugar da lógica liberal individualista. O Poder Executivo afirma sua posição na tríade e o direito toma uma postura mais instrumental, aliado à promoção de direitos sociais e econômicos que produzem uma explosão de litígios; visto que a divulgação de tais direitos promove uma nova consciência a respeito da violação destes, assim, conflitos judiciais para a reparação daqueles que não estão sendo providos devidamente (causas trabalhistas, de segurança social, de moradia etc.) pelo estado surgem cada vez mais. 

Dentre tais circunstâncias, forma-se uma crise no Estado providência, que se encontra inapto a arcar com as demandas dos direitos sociais e econômicos que foram colocados em sua responsabilidade com a desregulamentação da economia (política neoliberal) e a chamada ‘globalização da economia’, onde o direito econômico internacional diverge com o nacional. 

A área judicial também se encontrou numa situação em que não houve um preparo para que mecanismos para lidar com a explosão de demandas decorrentes do estado de Bem-Estar Social – resolução de litígios e garantia do controle da legalidade – fossem desenvolvidos, de maneira que foi naturalmente desenvolvida uma “legalidade negociada assente em normas programáticas, contratos-programa, cláusulas gerais e conceitos indeterminados originou o surgimento de litígios altamente complexos, mobilizando conhecimentos técnico-sofisticados” (SANTOS, pág 14, 1999), a qual os tribunais de justiça não possuíam condições de atender. Nesse período, se agravam as desigualdades sociais e econômicas e as novas áreas de litígio surgem, como a de proteção ao consumidor e ao meio ambiente. 

Como já supracitado, tais evoluções históricas foram notadas nos estados centrais, mais desenvolvidos do globo. Nos países periféricos e semiperiféricos, como o Brasil, os tribunais tiveram ações diferentes visto que o contexto social e econômico de um estado reflete diretamente nas suas disputas judiciais. Países mais desenvolvidos em sua infraestrutura, por exemplo, não terá as demandas que um país emergente ou subdesenvolvido tem na construção civil. A instabilidade do poder político também influência na atuação dos tribunais em diferentes países, por exemplo, naqueles que passaram por governos ditatoriais e processos subsequentes de redemocratização. 

A periodização da postura sociopolítica se deu de maneira diferente em países periféricos no sentido de que, durante o Estado Liberal dos países centrais, grande parte dos emergentes ainda eram colônias. O Estado de Bem-Estar social não foi implantado nesses países visto que muitos possuem desigualdades sociais alarmantes, de maneira que direitos sociais e econômicos não possuem condições de se estabelecer, ou se fazem de forma não satisfatória.  

A explosão de litígios e novos direitos conquistados e a reestruturação subsequente dos tribunais foram temas de pesquisa acerca de indicadores socioeconômicos, como o movimento acess-to-justice, parte do Florence Project, idealizado por Mauro Capelletti e Bryant Garth. Tal projeto circundou a efetivação dos direitos socioeconômicos propulsionados pelo welfare estate ao redor do mundo. Vários países fizeram parte da pesquisa e ofereceram suas contribuições a respeito do acesso à justiça em seus territórios, porém o Brasil, apresentando uma perspectiva diferente de manutenção desses direitos, não participou. Nota-se, então, que no Brasil, a discussão não era a respeito da execução e do asseguramento de direitos previamente estabelecidos como inerentes do ser humano, e sim relacionado a:

[…]própria necessidade de se expandirem para o conjunto da população direitos básicos aos quais a maioria não tinha acesso tanto na tradição liberal-individualista do ordenamento jurídico brasileiro quanto, como em razão da histórica marginalização socioeconômica dos setores subalternizados e da exclusão político jurídica provocada pelo regime pós-64 (JUNQUEIRA, pág 389, 1996).

Como se daria então o acesso à justiça por parte dos que mais necessitam dela? No Ensaio “Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo”, Eliane Botelho Junqueira analisa em seu estudo que os litígios – ou seja, o ato de, após terem se esgotado as alternativas civis de resolução de conflitos sem satisfação, a parte lesada assim então procura assistência jurídica ou “a transformação judicial a qual se é submetido o litígio começa verdadeiramente quando é consultado o advogado e são contratados os seus serviços” (SOUZA, pág 37, 1999) – acionados judicialmente na sociedade brasileira hoje provém daqueles que possuem condições de bancá-lo, mas ao mesmo tempo possuem conhecimentos suficientes para entender que em determinada situação, teve seus direitos violados a ponto de merecer um ressarcimento. 

Os tribunais considerados como lentos e incapazes de resolver as demandas necessárias são instituições ainda pouco familiares principalmente para a população mais pobre no sentido de sua finalidade e como ela poderia agir em benefício do cidadão. Em situações de desavenças ou violações cometidas por outros, normalmente as partes procuram, antes de tudo, a resolução informal e quando esta não logra êxito, se dirigem a outras paralelas, sendo a polícia como alternativa imediata ao se pensar em “mecanismos do Estado que podem me auxiliar nessa questão”. 

Como já mencionado, é preciso de algumas prerrogativas para que o litígio se forme. Antes de tudo, a parte lesada tem que entender que um direito seu foi violado. Grande parte da população carente não possui consciência a respeito de seus direitos perante a lei, o que lhes é resguardado. Se esse entendimento não for presente, não há configuração do litígio visto que a parte lesada não se manifesta a respeito tal violação, visto que não entende ou percebe a gravidade da situação ou que aquilo pode ser argumento para uma reparação judicial. Ou, quando se há a formação do litígio e a parte autora se dirige as instâncias judiciais, o réu, munido de advogados experientes e instrumentos de defesa, acabam com qualquer perspectiva de êxito por parte do autor, que não possui dos mesmos mecanismos.  

Nota-se, então, como a judicialização dos conflitos políticos e a resolução de litígios se encontram dentro das perspectivas sociais de um território. Mesmo com a atuação dos tribunais no controle da legalidade, na atuação frente a efetivação de políticas públicas promulgadas e o combate a corrupção dentro de próprias instituições governamentais, o acesso à justiça por parte da população possui características fixas daqueles que conseguem chegar a tal grau de assistência. A população menos privilegiada e consequentemente com menos acessos aos direitos dos cidadãos, formularam seus próprios mecanismos informais de resolução de conflitos, visto que o acesso à justiça em seu aporte de altivez e imparcialidade, teoricamente a serviço de todos, não lhes é disponível.  

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[1] Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-presidente e membra do Conselho de Representantes. Coordenadora-discente do projeto de extensão HABEAS LIBER, sediado na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Foi monitora de Teoria Geral do Processo 2, ministrada pelo docente Vallisney de Souza Oliveira na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Membra do Centro de Estudos Constitucionais Comparados (CEEC/UnB). 

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REFERÊNCIAS

COMMAILLE, Jacques. La justice entre détraditionnalisation, néolibéralisation et démocratisation: vers une théorie de sociologie politique de la justice. In: COMMAILLE, Jacques; KALUSZYNSKI, Martine (dir.). La fonction politique de la justice. Paris: La Découverte, 2007. b. p. 295-321. 

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à justiça: um olhar retrospectivo. Revista Estudos Históricos, v. 9, n. 18, p. 389-402, 1996. (http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2025/1164

SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel L., PEDROSO, João, FERREIRA, Pedro L. Os tribunais nas sociedades contemporâneas, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, 1999. 

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