Por Vítor Matias Larrossa*
No dia 17 de abril de 2023 foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados com o objetivo de investigar as supostas práticas de invasão, atribuídas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ocorridas entre janeiro e abril do mesmo ano. Oficializada a partir de requerimento do deputado Coronel Zucco (Republicanos-RS), a CPI tem em sua Mesa Diretora deputados da extrema-direita nacional, vinculados ao agronegócio e ao governo anterior de Jair Messias Bolsonaro (PL-SP), como é o caso do relator Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente.
Apesar de aprovada e instaurada, a CPI do MST, como ficou conhecida, é alvo de muitas críticas por conta do seu inegável caráter político. Membros do governo atual, da sociedade e do próprio movimento acusam a comissão parlamentar de tentar criminalizar os movimentos sociais, protegendo, portanto, os interesses de uma elite econômica do campo que desde a formação da República Federativa Brasileira influencia na política nacional. Nesse sentido, o presente artigo pretende apresentar o porquê dos reiterados ataques direcionados a esse importante movimento social.
Não é segredo para ninguém a existência de uma concentração de terras no Brasil. O país, desde sua formação, nunca passou por uma extensa política de redistribuição de terras de alcance nacional. Isso significa dizer, portanto, que ao longo dos anos, se formou uma elite do campo brasileira que, assim como em qualquer modelo capitalista já existente, utiliza do seu poder econômico, para influenciar as decisões políticas do Estado Brasileiro (LEAL, 2012).
Essa oligarquia do campo influencia a política nacional desde o surgimento da República Federativa Brasileira com a “Política do Café com Leite” e está até hoje representada no centro do ordenamento jurídico pátrio, a partir da bancada ruralista, como ficou popularmente conhecida. Desta forma, faz-se evidente que uma política de reforma agrária plena resultaria em uma completa transformação da dinâmica econômica, social e política da sociedade brasileira; transformação que por sua vez é totalmente contrária aos interesses dessa burguesia rural que se perpetua no Brasil.
É nesta conjuntura em que se estruturou um projeto político de ataque aos movimentos sociais e mais especificamente ao MST, a principal organização que reivindica uma reforma agrária ampla e popular no país. O agronegócio, portanto, utiliza de seus representantes na política institucional para combater o MST e fortalecer a permanência da estrutura agrária desigual existente hoje.
Nesse sentido, Sérgio Sauer (2008) aponta que a política é utilizada por este grupo com o objetivo de criminalizar o movimento. Portanto, nas palavras do autor,
(…) criminalizar não é utilizar a força policial para reprimir manifestações (tratar como “caso de polícia”), mas é transformar (caracterizar ou tipificar) uma determinada ação em um crime. Utilizando mecanismos legais, a intenção é fazer com que ações e pessoas sejam vistas e julgadas (pela opinião pública, pelo órgão estatal responsável) como atos criminosos e bandidos (iniciativas feitas à margem da lei) (SAUER, 2008, p. 2).
Este tipo de ação visa, segundo Sauer (2010), utilizar da legitimidade das instituições democráticas do Estado Democrático de Direito para “denunciar” a luta constitucionalmente assegurada por direitos como criminosa. Ou seja, o autor aponta que houve um aprimoramento das táticas de combate aos movimentos sociais que passaram a ser tratadas dentro das instituições sob falsos discursos democráticos, ao invés de confrontos físicos diretos, com o uso da violência e da força policial, medidas menos aprovadas perante a opinião pública.
Desta forma, vale destacar também que, para além das ações institucionais, a criminalização do MST perante a opinião pública também é outra tática eficiente utilizada pela elite rural para minar o fortalecimento de uma ideologia ao status quo que os privilegia. A utilização da opinião pública, segundo Sauer “tem como um de seus principais objetivos tirar a legitimidade (deslegitimar) das ações, diminuindo sua força política” (2008, p. 9). Em outras palavras, existe um projeto de manipulação das informações que chegam na sociedade para construir uma ideia despolitizada da atuação do Movimento, como se fossem apenas invasores sem pretensões e reivindicações legítimas.
Porém, todo esse fenômeno de criminalização da luta camponesa leva a um questionamento: por que é dada tanta importância ao Movimento dos Trabalhadores Rurais por Direito e suas reivindicações mesmo sem uma representação expressiva desse setor da sociedade nos espaços institucionais, assim como ocorre na famigerada bancada ruralista?
A resposta é dada por José Geraldo de Sousa Júnior e o Direito Achado na Rua, linha da teoria crítica do direito que rejeita as concepções tradicionais nas quais o direito é um produto da atividade legislativa e é exercido a partir do poder judiciário. Para essa corrente teórica, o direito surge da rua, do convívio social e da organização das pessoas (classe) na luta pelos seus direitos, em um exercício autônomo e antecedente ao rito legislativo.
A partir do Direito Achado na Rua nos tornamos capazes de entender a centralidade dos movimentos sociais na concretização de direitos e na organização social e política da classe trabalhadora. Portanto, o protagonismo desses grupos se dá a partir do conceito de “Sujeitos Coletivos de Direito”, conceito originado do pensamento emancipatório de Sousa Júnior (1991) que visa demonstrar na luta organizada e na organização em classes dos trabalhadores, um potencial de transformação social nunca visto na realidade jurídica.
O conceito de “Sujeitos Coletivos de Direito” surge, segundo Apostolova et al (1991) como uma forma de romper com os modelos tradicionais de reconhecimento da capacidade jurídica das pessoas. Estes grupos surgiram a partir de pequenas lutas cotidianas e, a partir de suas experiências, criaram suas próprias identidades e passaram a combater os principais problemas estruturais da sociedade.
Essas novas práticas políticas realizadas pelos “Sujeitos Coletivos de Direito” demonstram, segundo Sousa Júnior (1991), a transformação dos trabalhadores em novos atores sociais – inspirados pelos conflitos e contradições sociais denunciados pelos movimentos sociais – capazes de transformar a ordem social estabelecida. Além do mais, estes grupos surgem nos espaços sociais de forma orgânica, propondo a politização (desenvolvimento de uma consciência crítica nos trabalhadores) das classes mais baixas da sociedade e a atuação coletiva desses grupos em busca da transformação social a partir das experiências compartilhadas por seus membros.
É de suma importância frisar, portanto, que, em decorrência de seu caráter inerentemente político, os “Sujeitos Coletivos de Direito” de forma alguma representam uma universalidade, ou seja, são descentralizados e buscam construir uma identidade coletiva específica para o grupo social em questão (SOUSA JÚNIOR, 1991). Em outras palavras, não é possível se pensar em um sujeito coletivo de direito que englobe toda sociedade, pois ele surge da realidade concreta de uma classe e suas reivindicações sociais.
Outro ponto de destaque na análise sobre os “Sujeitos Coletivos de Direito” é o seu papel na criação de uma identidade coletiva da classe trabalhadora. Tal identidade, serve como uma forma de autoafirmação desses grupos e de suas demandas (Apostolova et al, 1991). Dessa forma, essa categoria possui um papel fundamental na criação de um sentimento de pertencimento e de representatividade – visto que ali são reivindicadas as vontades coletivas dos trabalhadores – que pode ter como resultado, segundo Sousa Júnior (1991), um reconhecimento mútuo que incentiva os trabalhadores a agir e decidir de forma conjunta sobre as pautas defendidas pela organização.
Além do mais, essa identidade coletiva baseada na experiência também dialoga com o conceito de E. P. Thompson de classe, visto que, para o historiador, classe é um processo histórico que depende não só das relações de produção, mas também da forma como os trabalhadores experienciam a exploração por eles sofrida. Nas palavras de E. P. Thompson, “A classe acontece quando alguns homens, como resultado das experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõe) dos seus” (apud POPINIGIS, 2015, p. 166).
Dessa forma, torna-se evidente o papel assumido pelo MST de atuar conforme um “Sujeito Coletivo de Direito” ao forçar o Estado Brasileiro a refletir sobre a necessidade concreta de se pensar em políticas de distribuição de terras mais eficazes. É em decorrência deste papel transformador que o movimento assume que a oligarquia rural se organiza politicamente para frear as conquistas sociais dos trabalhadores rurais e, principalmente a politização da classe como um todo, que passaria a se organizar em busca da consolidação de cada vez mais direitos.
A partir dos elementos apresentados, torna-se evidente concluir que, assim como ocorreu na CPMI do MST em 2009, durante o segundo mandato do presidente Lula, a CPI do MST instaurada dia 17 de abril se trata de mais uma ofensiva de setores da política institucional interessados em criminalizar os movimentos sociais como forma de proteger o status quo e o interesse da elite econômica rural existente no país.
Além do mais, é importante destacar o inerente caráter de dominação de classes existente nesse projeto político de criminalização dos movimentos sociais (SAUER, 2008). O enfraquecimento desses grupos por parte das políticas estatais, portanto, podem ser vistos como estratégias para dificultar a atuação dos trabalhadores rurais nas disputas sociais, que acabam tendo menor poder de barganha e, principalmente, resistência às desigualdades presentes no campo.
Por fim, o presente artigo conclui sua apresentação demonstrando o potencial emancipatório dos movimentos sociais e em especial do Movimento dos Trabalhadores Rurais por Direitos. Segundo Boaventura de Sousa Santos (apud FERREIRA, 2001), a sociedade moderna se funda na articulação entre o trabalho e a cidadania, logo, pode-se concluir que a experiência do MST é a mais perfeita síntese da combinação destes dois conceitos: uma organização de classe sob a qual trabalhadores rurais se organizam politicamente no exercício de suas cidadanias na reivindicação de direitos.
Além do mais, é inegável o caráter emancipador da estrutura organizativa do MST, pois, a partir do apresentado, torna-se evidente neles um espaço que não só luta por demandas concretas, mas também reflete politicamente a conjuntura fática dos trabalhadores rurais brasileiros de todo país e como é historicamente injusta e desigual a distribuição de terras no Brasil.
Neste sentido, compreende-se o que justifica as investidas da oligarquia rural contra o MST, sendo o exemplo mais recente a CPI instaurada atualmente na Câmara dos Deputados. Assim sendo, torna-se crucial compreender que a utilização dos meios institucionais para questionar a legalidade dos movimentos sociais se trata de apenas mais uma tática despolitizada de esconder uma ideologia atrás das estruturas democráticas e da desvirtuação do espírito constitucional (SAUER, 2008).
______________________________________________________________________________________________________________________________________
*Graduando em Direito, membro da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra FilhoAPOSTOLOVA, Bistra; PORTO, Inês da Fonseca; NOLETO, Mauro Almeida. Sujeito de Direito Coletivo. In: Você pesquisa? Então… mostre! Brasília, 1991. p. 72-159.
BORGES, Beatriz, BARBIÉRI, Luiz Felipe, CLAVERY, Elisa, MATOSO, Filipie. Com Salles na relatoria, Câmara instala CPI para investigar invasões de terras pelo MST. G1, Brasília, 17 abr. 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/17/camara-instala-cpi-para-investigar-atuacao-do-mst.ghtml>. Acesso em: 08 de jul. de 2023.
JÚNIOR, José Geraldo de Souza. Movimentos Sociais – Emergência de Novos Sujeitos: O Sujeito Coletivo de Direito, São Paulo, Ed. Acadêmica, 1991. p. 131-142
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Editora Companhia das Letras, 2012.
POPINIGIS, Fabiane. E. P. Thompson e a experiência da classe trabalhadora. In: AMORIM, Henrique; SILVA, Jair Batista. Classes e lutas e lutas de classes. São Paulo: Annablume, p. 163-177.
SANTOS, Boaventura Sousa. Para uma concepção pós-moderna de direito. In: A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4ª Edição. São Paulo: Cortez Editora, p. 119-188, 2000.
SAUER, Sérgio. Processos recentes de criminalização dos movimentos sociais populares. PDF, 2008. Disponível em: <http://terradedireitos. org. br/wpcontent/uploads/2008/10/Processos-recentes-de-criminalização-dos-movimentos-sociaispopulares>. Acesso em: 09 jul. 2023.
SAUER, Sérgio; MACHADO, Diego Donizetti Gonçalves. Direitos humanos, democracia e a criminalização dos movimentos sociais no Brasil. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/SergioSauer/publication/267232525_Direitos_humanos_democracia_e_a_criminalizacao_dos_movimentos_sociais_no_Brasil/links/582b8a6708ae004f74afb978/Direitos-humanos-democracia-e-a-criminalizacao-dos-movimentos-sociais-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 09 jul. 2023.
Imagem disponível em: MST – <https://mst.org.br/ >