Por Davi Zanatta Lacerda Alves[1]
Introdução
A discussão em torno da descriminalização da maconha gera grande debate em diversos países ao redor do mundo à medida em que essas sociedades seguem a tendência de buscarem repensar suas políticas no que diz respeito às drogas. Essa controvérsia transcende fronteiras geográficas e jurídicas, invariavelmente envolvendo questões de saúde pública, de liberdades individuais e de condições socioculturais.
No atual contexto do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando o Recurso Extraordinário n° 635.659, caso que discute se o porte da droga para uso pessoal pode ou não ser considerado crime, além da quantidade que diferencia consumo próprio e tráfico. O julgamento do RE teve início em 2015, mas foi suspenso por diversas vezes e, em março de 2024, o STF o retomou.
Para melhor compreender o cenário que está por se desenvolver no país, utilizaremos a experiência do Uruguai como base de comparação. Está em vigor desde 2013 a lei uruguaia que regula toda a atividade envolvendo a erva, desde o plantio até o consumo de fato – o que, é importante ressaltar, configura uma conjuntura de legalização da maconha.
O cenário brasileiro atual
No Brasil, a norma que atualmente está em vigor e regula as relações no tocante às substâncias classificadas pela Anvisa como drogas ilícitas é a chamada Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Uma vez estando a maconha submetida a essa classificação[2], a lei em questão tipifica como crime o porte, a posse, o cultivo, a produção, a venda e a associação para o tráfico da substância. É importante ressaltar que a Lei de Drogas define que a compra, a posse, o porte e o transporte da droga, quando para consumo pessoal, deverão ser punidos com penas alternativas à reclusão. As penas para esses casos são: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
No entanto, a lei não define critérios objetivos para a determinação de destinação a consumo pessoal, sendo necessária a interpretação do juiz envolvendo: 1. a natureza e a quantidade; 2. o local e as condições da apreensão; 3. as circunstâncias sociais e pessoais; e 4. a conduta e os antecedentes do agente. A partir dos itens 3 e 4, é possível concluir uma grande problemática social do porte criminalizado da maconha: na vida concreta, os indivíduos mais prejudicados na determinação de destino a consumo pessoal ou a tráfico são aqueles que integram comunidades socialmente minoritárias. Em uma sociedade ainda visceralmente elitista e estruturalmente racista, a origem étnica e a condição socioeconômica do agente se mostram fatores cruciais na caracterização de tráfico de drogas ao invés da determinação de porte para uso próprio.
Ademais, a guerra contra as drogas no Brasil gera, ano após ano, impactos negativos na sociedade. Ao combater o porte da droga, atinge-se de maneira desproporcional comunidades marginalizadas, agravando as desigualdades sociais e raciais e reforçando os estigmas a elas sujeitados[3]. Dessa prática também surgem dois grandes problemas: a superlotação das penitenciárias e o gasto extremamente elevado com a chamada “guerra às drogas”. Pode-se ilustrar a magnitude dessas questões ao observar-se dois dados alarmantes: o de que o Brasil se tornou o um dos países mais encarcerados no mundo – mais de 700 mil presos[4] – e o de que os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro gastaram, em um único ano, mais de R$ 5 bilhões apenas com ações voltadas ao combate às drogas[5].
A partir dos fatos e dados hodiernos sobre a situação jurídica e social da maconha no país, podemos observar que a proibição do porte, além de ser ineficiente (pois não diminui ou acaba com o tráfico e os grupos criminosos organizados), é também um fator de reiteração de racismo e estigmas, de estímulo à violência policial e de criação de despesas desnecessárias ao país. Mas qual outro cenário é possível nessa conjuntura?
A experiência uruguaia
O Uruguai legalizou completamente todas as atividades que envolvem a maconha em 2013. A lei uruguaia permite o cultivo, a produção, a venda e o consumo de maconha para uso recreativo.
O processo de legalização da erva foi impulsionado pelo então presidente José Mujica, que afirmava ser “uma medida contra o narcotráfico para tomar o mercado”, sendo uma alternativa à guerra contra as drogas. Nesse contexto, a política da liberação alcançou o resultado desejado: desde a implementação da “lei da maconha”, estima-se que o mercado do tráfico no Uruguai tenha perdido cerca de 22 milhões de dólares[6], dinheiro que deixou de financiar diversos crimes para financiar o aparato estatal de políticas do governo.
Apesar de ter sido exitosa segundo o parâmetro supracitado, a experiência uruguaia sobre a droga apresentou resultados ambíguos. Em primeiro lugar, ainda não existe uma aderência majoritária da população usuária de maconha à compra no mercado legal: cerca de 70% dos compradores o fazem no mercado ilegal[7]. É válido, porém, ressaltar que o fornecimento do mercado paralelo de maconha é feito, predominantemente, por produtores locais que não possuem o registro exigido por lei, e não por traficantes[8].
Outro importante aspecto a ser levado em conta diz respeito ao número de usuários. Entre 2011 e 2018, a porcentagem populacional de pessoas que já experimentaram a droga aumentou de 20% para 30,2%, e segue aumentando progressivamente até os dias atuais. Essa ampliação dos níveis do contato da população do país com a erva é consequência de uma mensagem praticamente subliminar de normalização de seu consumo devido à legalização. Buscando uma redução dos danos desse cenário, existe um grande enfoque dado pelos órgãos públicos uruguaios de regulamentação da maconha visando informar a população dos riscos presentes e inerentes ao consumo da planta.
Apesar de ser benéfico analisar a situação e o contexto do Uruguai no que diz respeito ao cenário legal da maconha, é preciso ressaltar que o Brasil está absolutamente distante de um cenário liberal como o examinado.
O julgamento no STF
O Supremo Tribunal Federal está julgando o Recurso Extraordinário n° 635.659, que discute a tipicidade do porte de droga para consumo pessoal. Esse recurso tem por objetivo definir se existe ou não compatibilidade da Constituição Federal com o art. 28 da Lei de Drogas. Ou seja, embora a lei, ao longo de seu texto, tipifique as condutas de tráfico, cultivo para fins de tráfico, associação ou financiamento do tráfico, induzir outras pessoas a praticar crimes relacionados e posse de drogas para consumo pessoal[9], o julgamento em andamento no STF está avaliando apenas esse último tópico[10].
Não há, portanto, qualquer tipo de discussão acerca da “liberação das drogas”, da legalização ou da regulamentação da maconha; apenas está sendo discutida a possibilidade de descriminalizar o seu porte para consumo pessoal. Nesse sentido, caso seja decidido que esse porte deve de fato ser descriminalizado, caso alguém adquira, guarde ou traga consigo, não estará praticando nenhum crime – portanto, não haverá a possibilidade de ser conduzido a uma delegacia ou de responder como réu em um processo criminal.
Embora haja uma tendência já nítida de decidir-se pela descriminalização do porte da droga, ainda ocorrem grandes divergências de opiniões entre os ministros da Suprema Corte brasileira. Os principais argumentos dos ministros que defendem a descriminalização do porte são: a afirmação de que a criminalização é ineficaz e gera custos sociais e econômicos desnecessários; a interpretação de que a criminalização viola o princípio da proporcionalidade e o direito à privacidade; e o fato já aqui abordado de que a decisão de descriminalizar não significa legalizar a maconha, mas sim afastar a tipicidade do porte para uso próprio.
Por outro lado, os ministros com opiniões contrárias à descriminalização optam, principalmente, por argumentos que levam em conta a questão da saúde pública. Entre esses argumentos, estão os seguintes: o fato de que a maconha é uma droga que pode causar dependência e trazer prejuízos à saúde; a questão de que a descriminalização pode levar ao aumento do consumo da planta; e a crença de que a criminalização é necessária para proteger a saúde pública e garantir a segurança da sociedade.
Conclusão
A complexidade intrínseca à questão da descriminalização da maconha para uso pessoal demonstra a existência de um campo de debate ainda ambíguo. As diferentes perspectivas, desde os defensores da liberdade individual até os que priorizam a saúde pública e a segurança social, contribuem para a construção de um diálogo essencial na busca por soluções eficazes.
No contexto social, a descriminalização oferece a oportunidade de reduzir disparidades e combater estigmas associados ao consumo de maconha, favorecendo uma abordagem mais equitativa. Essas questões são embasadas de maneira empírica pela falha no combate ao crime organizado e pelo reforço ao racismo gerado pela conjuntura atual. Nesse sentido, políticas que priorizem tratar de usuários pela ótica da saúde pública em detrimento de criminalizá-lo podem resultar em uma redução do encarceramento em massa, proporcionando alívio ao já sobrecarregado sistema prisional.
Análises de outros ordenamentos jurídicos, visando observar outros modelos e posturas de se tratar toda a relação legal em torno da maconha, também podem contribuir com a construção de soluções eficientes sobre essas pautas. Ao observarmos o sistema uruguaio, que está do outro lado do espectro em relação à liberação da droga, podemos ponderar de maneira empírica sobre as necessidades, as dificuldades, os cuidados e os acertos que os vizinhos sul-americanos vivenciaram, e procurar absorver os pontos positivos de sua experiência.
Em conclusão, é importante observar que a postura do Brasil em torno das políticas de drogas nas próximas décadas será fortemente influenciada pela decisão do julgamento do RE no STF, que seria um primeiro – embora tímido – passo de nossa sociedade em direção à tendência global de reestruturação das conjunturas quanto às drogas. Além disso, a evolução saudável desses debates dependerá da habilidade de nossa sociedade em integrar abordagens informadas, equilibrando as preocupações éticas, médicas, sociais e políticas. Podemos afirmar que a busca por equilíbrio entre liberdade individual, saúde pública e justiça social será o guia nesse processo.
[1] Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da AdvocattA – Empresa Júnior de Direito da UnB
Referências
[2]Ministério da Saúde. Portaria n° 344, de 12 de maio de 1998. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html
[3] DOMENICI, Thiago; BARCELOS, Iuri. Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em Sã Paulo. Agência Pública, 6 de maio de 2019. Acesso em 8/3/2024. Disponível em: https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/?amp
[4] Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Acesso em 8/3/2024. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf
[5] LEMGRUBER, Julita (coord.) et al. Um tiro no pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do projeto “Drogas: Quanto custa proibir”. Rio de Janeiro: CESeC, março de 2021.
[6] El narcotráfico pierde 22 millones al regularse la marihuana en Uruguay. Iberoeconomía, 2019. Acesso em 10/3/2024. Disponível em: https://iberoeconomia.es/internacional/el-narcotrafico-pierde-22-millones-al-regularse-la-marihuana-en-uruguay
[7] Monitoreo y evaluación de ley 19.172: principales indicadores
del mercado de cannabis en Uruguay. IRCCA, 2019. Acesso em 10/3/2024. Disponível em: https://ircca.gub.uy/wp-content/uploads/2022/09/Indicadores-cannabis-dic2019.pdf
[8] LISSARDY, Gerardo. O que realmente mudou no mercado de drogas do Uruguai após a legalização da maconha? BBC News, 29 de dezembro de 2019. Acesso em 10/3/2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50842940
[9] BRASIL. Lei n° 11.343, 23 de agosto de 2006.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 635.659. Rel. Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506. Acesso em: 10/3/2024.