Por: Maicon Melito de Souza
A ditadura civil-militar de 1964 a 1985 interrompeu violentamente a curta experiência democrática brasileira e se estendeu por mais de vinte longos anos. Marcada pela repressão, a ditadura atentou gravemente contra os direitos humanos, cometendo verdadeiros crimes de lesa-humanidade. Entretanto, em 1979, a sociedade brasileira assistiu à anistia dos crimes contra a humanidade cometidos naquele período.[1]
Notadamente, a lei de anistia desejada pela maioria da sociedade civil dos anos de chumbo sempre teve como fim anistiar crimes essencialmente políticos. Porém, acabou submetida à anistia de homicídios, torturas, estupros, detenções arbitrárias, sequestros e ocultações de cadáveres. Assim, a indignação social pela ausência de punição a tais crimes levou à sedimentação de movimentos sociais pleiteadores da responsabilização desses criminosos, movimentos que passaram a ser caracterizados como de ideário esquerdista.
As ações coletivas com o objetivo de manter ou mudar situações na sociedade são com certeza o escopo dos movimentos sociais.[2] Essa poderosa força de mudança e de construção de direitos é em geral exercida de baixo para cima, ou seja, a partir da ação de pessoas de classes dominadas em direção às classes dominantes, embora a execução dessa força pelos membros das classes dominantes seja absolutamente possível e comum.
A ação dos movimentos sociais se orienta por repertórios próprios, como a adoção de meios institucionais de luta política[3] e construção de direitos[4], por exemplo. Dessa forma, a relação com o poder estatal não precisa ser necessariamente de confronto. No entanto, quando o poder estatal não é democrático, como durante a ditadura civil-militar supramencionada, a adoção de meios político-institucionais se torna praticamente inviável.
Não são poucas as vezes em que movimentos sociais utilizam repertórios político-institucionais para a concretização de suas demandas em políticas públicas[5], um dos exemplos mais notórios são os próprios partidos políticos. Do outro lado, o Estado também pode usar repertórios para se aproximar dos movimentos sociais, objetivando efetivar as demandas desses movimentos, por exemplo.
Nesse sentido, podemos mencionar como movimento social reformista a Comissão Nacional da Verdade — CNV, tendo em perspectiva sua origem e repertório de utilização da estrutura político-institucional do Brasil para investigar e propor reformas de políticas públicas já instauradas, sedimentando uma relação de colaboração entre Estado e movimentos sociais. É bem verdade que a CNV é um órgão do poder executivo federal, no entanto há movimentos sui generis[6]. A origem e composição da Comissão evidencia seu típico caráter de movimento social, pois foi originada pelo pleito de diversos setores da sociedade civil e é composta por membros de classes sociais variadas, todos organizados por um objetivo que já tinham em comum.[7]
Com efeito, em relatório circunstanciado, a CNV recomendou ao poder público a revisão da Lei da Anistia. Para a CNV, a anistia daqueles crimes é incompatível com as normas e regras do ordenamento jurídico brasileiro e da ordem jurídica internacional, por abranger crimes contra a humanidade — imprescritíveis e não passíveis de anistia —, não havendo possibilidades da lei interna declinar do dever jurídico estatal de investigar, processar, punir e reparar crimes contra a humanidade[8]. Ainda acrescentou entendimento jurisprudencial de que esse tipo de lei causa a perpetuação da impunidade e da injustiça em detrimento das vítimas e de seus familiares[9].
Em outra baila, em relação à perspectiva da tradicional crítica criminológica sobre a esquerda punitiva, a atuação de grande parte dos movimentos sociais é tida como pleiteadora de mecanismos repressores para o enfrentamento da criminalidade do poder político, os mesmos mecanismos que os repreendem[10]. A retórica dessa crítica criminológica se pauta na ideia de reivindicação de movimentos de esquerda pela extensão da reação punitivista às condutas costumeiramente imunes ao sistema penal.
Movimentos sociais de esquerda teriam sido tomados por um certo furor persecutório desenfreado — o qual já se demonstrou como ferramenta de legitimação dos movimentos reacionários nos anos ditatoriais —, motivado por um generalizado e inconsequente clamor contra a impunidade. Dessa forma, não perceberiam ou nem ligariam para a premissa da imposição da pena não passar de pura manifestação de poder, destinada a sustentar os interesses dominantes em uma determinada sociedade por meio da personalização do inimigo, possibilitando a conveniente ocultação das mazelas que sustentam a estrutura de dominação[11].
Por consequência, essa aparente dicotomia explanada até aqui, entre a luta pela responsabilização de crimes na ditadura civil-militar de 1964–1985 e a crítica criminológica do discurso punitivista, recai em uma temática que neste caso em concreto parece buscar a dialética: a justiça de transição.
A proposta de uma visão substancial da justiça de transição parece buscar justamente a solução desse paradoxo de utilização do Estado de direito para a negação dos princípios que o fundamentam, ou talvez melhor dizendo, de anistiar o que seu sistema de direito tem como não passível de anistia. É dessa forma que tal visão substancial do que é o direito opera legitimamente enquanto instrumento democrático e de exercício e observância aos direitos humanos e fundamentais que dão sentido ao Estado democrático de direito.
O ideal de justiça de transição, nesse sentido substancial, atua legitimamente para a consolidação do Estado democrático de direito, ao passo que se torna perceptível o conteúdo político dos acordos e leis conflitantes com os direitos humanos dos cidadãos.
Por fim, o debate sobre a justiça de transição permite maior reflexão sobre as violações e exercícios de direitos em tempos de autoritarismo, viabilizando caminhos concretos para seu estudo em áreas extremamente delicadas[12], como no pleito de movimentos sociais pela responsabilização dos crimes humanitários ocorridos na ditadura civil-militar de 1964 a 1985 e na crítica criminológica sobre a esquerda punitiva.
A justiça de transição tem por escopo lidar com legados de violações aos direitos humanos e fundamentais e as políticas que as tornaram viáveis e aceitáveis em períodos como os vividos no Brasil em décadas passadas. Esse tipo de discussão permite, a um só tempo, a restauração da confiança civil e institucional do país, assim como a equiparação isonômica de todos os membros da sociedade em deveres e obrigações perante às leis e a reprovação por parte do Brasil de todas as atrocidades vividas no passado — inclusive as cometidas em seu nome[13].
Maicon Melito de Souza é advogado e pesquisador nas áreas de direitos humanos e direitos fundamentais. Bacharel em direito pela Faculdade de Direito de Franca — FDF.
Email: maiconmelito@adv.oabsp.org.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de Agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>. Acesso em: 12 fev. 2021.
[2] GOHN, Maria da Glória Marcondes. História dos movimentos e lutas sociais: a construção da cidadania dos brasileiros. São Paulo: Loyola, 1997.
[3] ALONSO, Angela. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua Nova [online], 2009, n. 76, p. 49–86. ISSN 0102–6445, p. 53. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/ln/n76/n76a03.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2021. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452009000100003.
[4] HERKENHOFF, João Baptista. Movimentos sociais e direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 25.
[5] GOHN, Maria da Glória Marcondes. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
[6] TOURAINE, Alain. Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado, v. 21, n. 1, p. 17–28, mai. 2011. ISSN 1980–5462, p. 17. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/5208>. Acesso em: 12 fev. 2021.
[7] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade — CNV. Equipe. [online], 2012. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/equipe.html>. Acesso em: 12 fev. 2021.
[8] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade.v. 1, [online], Brasília: CNV, 2014, p. 965–966. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2021.
[9] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade.v. 1, [online], Brasília: CNV, 2014, p. 966–967. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2021.
[10] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos sediciosos – crime, direito e sociedade. n.1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1º semestre, 1996, p. 79–92.
[11] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Violência policial: uso e abuso. Dossiê: Blog da Boitempo, 2015. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/07/28/a-esquerda-punitiva>. Acesso em: 12 fev. 2021.
[12] ALMEIDA, Eneá Stutz; TORELLY, Marcelo D. Justiça de transição, Estado de direito e democracia constitucional:estudo preliminar sobre o papel dos direitos decorrentes da transição política para a efetivação do Estado democrático de direito. Sistema Penal e Violência, PUCRS, v. 2, n. 2, p. 36–52, jul./dez. 2010. ISSN 2117–6784, p. 50. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/8111>. Acesso em: 12 fev. 2021.
[13] ALMEIDA, Eneá Stutz; TORELLY, Marcelo D. Justiça de transição, Estado de direito e democracia constitucional:estudo preliminar sobre o papel dos direitos decorrentes da transição política para a efetivação do Estado democrático de direito. Sistema Penal e Violência, PUCRS, v. 2, n. 2, p. 36–52, jul./dez. 2010. ISSN 2117–6784, p. 50. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/8111>. Acesso em: 12 fev. 2021.