Por Vitória de Macedo Buzzi *
Em 08 de agosto de 2020, uma menina negra dá entrada no hospital estadual de São Mateus (ES) reclamando de dores abdominais. O corpo da criança de 10 anos, já marcado pelo abandono da mãe e a ausência do pai, carregava o resultado de outra violência. Estuprada desde os 6 anos pelo tio, a menina viu-se grávida.
O caso ganhou a mídia nacional nos dias seguintes. Em parte, a atenção se deu porque crimes que vitimam crianças costumam contar com comoção popular. Nesse caso, porém, o interesse público se fixou na longa jornada que se seguiu para que a menina e sua avó conseguissem acessar um direito garantido em lei: a realização do aborto legal, assegurado a todas as vítimas de estupro no Brasil.
Não bastasse o drama da violência sexual, a família se viu obrigada a lidar com a exploração política do fato, somada ao completo despreparo (e a má-fé) da administração pública em tratar do caso. Para interromper a gestação, exigiu-se autorização judicial, uma barreira que não encontra respaldo na legislação. No Brasil, o acesso ao aborto legal não requer a realização de boletim de ocorrência, laudo do IML e tampouco autorização de juiz. Basta a palavra da vítima. A criança, no entanto, foi obrigada a prolongar sua gestação indesejada enquanto aguardava o Poder Judiciário decidir sobre o seu direito de não querer ser mãe aos 10 anos de idade.
A criação de entraves administrativos ou legais para a realização do aborto legal e seguro evidencia o despreparo e a má vontade com que parte das autoridades, instâncias públicas e profissionais da saúde lidam com a questão no Brasil. Desde a década de 40, a legislação brasileira, que proíbe o aborto provocado, abre exceção aos casos em que não há outro meio de salvar a vida da mulher (chamado aborto necessário), ou quando a gravidez resulta de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal adicionou outra exceção, permitindo a interrupção nos casos de fetos anencéfalos. [1]
O caso da menina de São Mateus se enquadrava nas duas exceções legais: a criança tanto foi vítima de estupro – conclusão que independia de investigação, já a lei brasileira presume ser estupro qualquer relação sexual mantida com menores de 14 anos -, como também carregava uma gestação que colocava em risco seu corpo de criança e sua vida. Nem por isso, o caminho foi mais fácil: mesmo após autorizada pelo juiz, o hospital universitário de Vitória (ES) negou-se a realizar o procedimento em razão do tempo da gestação.
É importante mencionar que, em dez anos, 158 meninas de São Mateus com até 14 anos engravidaram e, apesar de terem direito ao aborto legal, não interromperam a gestação [2]. Dados colhidos pela Pública demonstram que o município registra quase um parto de meninas de até 14 anos por mês, e nenhuma dessas gestações é registrada como decorrente de estupro, apesar da presunção legal. As meninas grávidas de São Mateus escancaram um problema muito maior relacionado às altas taxas de casamento infantil no Brasil [3], aliada à falta de educação sexual para meninas.
A história da menina de 10 anos era outra: não havia “união consensual” com o estuprador – como são registradas as uniões de meninas com até 14 anos, apesar da proibição legal. A negativa de atendimento pelo hospital de Vitória também era infundada, já que não consta na lei qualquer limitação temporal para a realização do aborto. Os parâmetros da idade gestacional e do peso do feto aparecem apenas em norma técnica do Ministério da Saúde, de 2005 [4]. Nela, o órgão conceitua que abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª-22ª semana e com produto da concepção pesando menos que 500g. Não faz restrição explícita aos casos que ultrapassam 22 semanas ou 500g, e nem poderia, já que não cabe à norma técnica criar limites a direito previsto em lei.
No entanto, as autoridades do Espírito Santo alegaram que nenhum serviço de saúde do estado possuía condições de realizar o aborto autorizado pelo juiz. O tabu que envolve o tema, e culmina também na falta de informações corretas sobre o aborto legal, coloca mais obstáculos na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas. Por parte do corpo médico, há medo de punição e receio do estigma que sofrem os profissionais que realizam o procedimento.
Isso significa dizer que, mesmo nas situações em que o aborto é permitido, é necessário encontrar um estabelecimento do SUS que ofereça o serviço. O Mapa Aborto Legal, produzido pela Artigo 19 [5], mapeou as 176 unidades de saúde onde o procedimento estaria disponível, segundo dados do governo. Identificou que apenas 76 desses hospitais realizavam a interrupção legal da gravidez. Em tempos de crise humanitária causada pela COVID19, apenas 42 unidades de saúde seguem realizando o procedimento. Em 13 estados brasileiros e no Distrito Federal, atualmente não há qualquer serviço disponível para a realização do aborto legal. [6]
A menina e a avó tiveram então que percorrer 1.800 quilômetros para conseguir exercer um direito previsto em lei. A história de outras meninas e mulheres não têm o mesmo desfecho. O aborto inseguro é o 4º fator de morte materna no Brasil. São aqueles procedimentos realizados por pessoas sem habilidades necessárias ou feitos em ambientes sem o mínimo de estrutura médica adequada [7]. De janeiro a junho de 2020, 751 abortos de meninas de 10 a 14 anos foram registrados no SUS – uma média de quatro por dia. Destes, apenas 34 ocorreram por meio dos protocolos de interrupção de gestação. Os demais representam ou abortos espontâneos, ou tentativas de aborto inseguro. [8]
Apesar da lei severa, a Pesquisa Nacional de Aborto [9] estima que 1 em cada 7 mulheres até os 40 anos já fez um aborto voluntário na vida. Cerca de metade dessas mulheres precisa de internação por conta de aborto inseguro e, apesar do aborto ser uma realidade para meninas e mulheres de todas as idades, classes e origens, no Brasil são as mulheres pobres, pretas, indígenas e nordestinas as mais vulneráveis aos perigos de procedimentos clandestinos e inseguros. [10]
A questão é que a proibição mata [11]. Enquanto mulheres e meninas de famílias com melhores condições financeiras têm acesso facilitado ao aborto seguro, as que são socioeconomicamente vulneráveis precisam recorrer a procedimentos inseguros, e arcam sozinhas com os riscos de morte e a ameaça da prisão. Manter o aborto criminalizado não impede que ele aconteça, apenas agrava desigualdades raciais e de classe. A lei penal é discriminatória, já que onera de forma desproporcional meninas e mulheres pretas e indígenas.
A resposta do governo ao caso da menina de 10 anos que não queria ser mãe veio na forma de mais uma norma retrógrada. No mesmo ano de 2020, o Ministério da Saúde editou portaria [12] que, na prática, tentava inviabilizar o acesso ao aborto legal no Brasil. A norma, revogada somente em 2023 pelo atual governo, fazia da equipe de saúde uma equipe de polícia, e obrigava à coleta de provas, preservação de evidências e comunicação às autoridades da violência sexual. Além de violar a confidencialidade, o procedimento servia para assustar as mulheres que buscavam acolhimento ao exigir assinatura de termos de responsabilidade pelos possíveis crimes de falsidade ideológica e aborto.
À época, no lugar de acolher as meninas e mulheres vulnerabilizadas pela violência sexual, o então governo do ex-presidente Jair Bolsonaro escolheu ignorar que o aborto é um evento frequente na vida reprodutiva das mulheres brasileiras [13], mesmo que isso custasse a saúde física, psicológica e por vezes a vida destas meninas e mulheres. Desprezava as evidências que mostram queda nas taxas de aborto nos países que optam pela descriminalização, e que nos provam que tratar a questão como saúde pública permite o cuidado, o acesso à informação, e a melhora nas políticas de planejamento familiar [14].
Impedir a repetição de histórias como a da menina de São Mateus implica defender a descriminalização do aborto no Brasil, em debate na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 442. A batalha enfrentada pela criança de 10 anos, que teve que deixar sua cidade para entrar no programa governamental de apoio e proteção a testemunhas, vítimas e familiares, reforça que não cabe lei penal ou crença religiosa no debate sério sobre o tema. Mesmo tendo direito ao aborto legal, a criança sofreu um sem fim de violências morais e psicológicas para ver seu desejo pela interrupção respeitado. Em Recife, o obstetra responsável, Olímpio Moraes Filho, famoso pela defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, disse que depois do aborto a menina voltou a sorrir [15]. Os dados nos dizem que o desfecho das histórias de outras meninas e mulheres é, sem dúvidas, menos feliz.
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* Vitória De Macedo Buzzi é advogada no escritório De Macedo Buzzi & Souza Advocacia e Consultoria. É mestra em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), onde atua na assessoria jurídica do projeto clínico Cravinas – Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos. É membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, e consultora na Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública do Conselho Nacional dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Referências:
[1] Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Foi julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, em 2012, garantindo o direito das mulheres gestantes de fetos anencéfalos a interromperem a gravidez.
[2] ANJOS, Anna Beatriz; FONSECA, Bruno; CORREIA, Mariama. São Mateus registra em média um parto de menina de até 14 anos a cada mês: na cidade onde criança de 10 anos foi estuprada e teve o direito ao aborto legal negado, seis meninas não puderam ter a gestação interrompida este ano. 2020. Disponível em: <https://apublica.org/2020/08/sao-mateus-registra-em-media-um-parto-de-menina-de-ate-14-anos-a-cada-mes/>. Acesso em ago. 2020.
[3] Segundo a ONU, “definida como uma união formal ou informal antes dos 18 anos, a prática [do casamento infantil] é considerada internacionalmente uma violação dos direitos humanos e uma forma de violência que afeta principalmente as meninas. Frequentemente, está associada à gravidez precoce, levando a que tenham o primeiro filho antes dos 18 anos de idade.” Disponível em: <https://nacoesunidas.org/artigo-casamento-infantil-o-que-falta-para-erradicar-essa-pratica/>. Acesso em ago. 2020.
[4] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. Atenção Humanizada ao Abortamento: norma técnica/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas – Brasília: Ministério da Saúde, 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf>. Acesso em ago. 2020.
[5] O Mapa Aborto Legal “é uma iniciativa da ARTIGO 19 de monitorar, centralizar e compartilhar informações públicas sobre aborto legal – e direitos sexuais e reprodutivos.” Está disponível em: <https://mapaabortolegal.org/>. Acesso em ago. 2020.
[6] FERREIRA, Letícia; SILVA, Vitória Régia da. Só 55% dos hospitais que faziam aborto legal seguem atendendo na pandemia: levantamento mostra que vítimas de violência sexual, mulheres com risco de morrer devido à gravidez e casos de anencefalia ficam ainda mais desassistidas na pandemia. Apenas 42 hospitais mantêm o atendimento. 2020. Disponível em: <https://azmina.com.br/reportagens/so-55-dos-hospitais-que-faziam-aborto-legal-seguem-atendendo-na-pandemia/>. Acesso em ago. 2020.
[7] CALUWAERTS, Séverine. Consequências do aborto inseguro: entre todas as causas da mortalidade materna, o aborto inseguro é a única que pode ser evitada. 2020. Disponível em: <https://www.msf.org.br/noticias/consequencias-do-aborto-inseguro>. Acesso em ago. 2020.
[8] MARIZ, Renata. Pequenas vítimas da barbárie: crianças que padecem do crime atroz de estupro raramente podem contar com o estado para fazer valer o direito ao aborto. Revista Época: Infância roubada. São Paulo, p. 26-31. 24 ago. 2020. Semanal.
[9] DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2021. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 28, n. 6, p. 1601-1606, jn. 2023 . Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232023286.01892023>. Acesso em set. 2023.
[10] ANIS – Instituto de Bioética. Aborto: por que precisamos descriminalizar?: argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442. Brasília: LetrasLivres, 2019. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>. Acesso em ago. 2020.
[11] Em países em que o aborto é legalizado, o procedimento é realizado de maneira segura. A Suécia, que conta com uma das taxas mais altas de aborto da Europa, não registrou nenhuma morte materna causada por aborto entre 1988 e 2007. Disponível em: <https://super.abril.com.br/saude/8-mitos-sobre-o-aborto/>. Acesso em ago. 2020.
[12] BRASIL. Portaria nº 2.282. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Brasília, DF, 28 ago. 2020. Seção 1, p. 359. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814>. Acesso em ago. 2020.
[13] DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2021. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 653-660, fev. 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016>. Acesso em ago. 2020.
[14] ANIS – Instituto de Bioética. Aborto: por que precisamos descriminalizar?: argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442. Brasília: LetrasLivres, 2019. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>. Acesso em ago. 2020.
[15] GONÇALVES, Eduardo; ROSÁRIO, Mariana; GHIROTTO, Edoardo. Um novo drama, um velho atraso: o caso da menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio traz de volta o debate sobre o aborto – um tema em que o brasil avançou pouco nas últimas duas décadas. Revista Veja: Quando a gravidez é uma tragédia, São Paulo, v. 35, n. 53, p. 34-39, 26 ago. 2020. Semanal.