Por Cesar Rodrigues van der Laan*
Recentes julgados avaliaram causas de anulação de casamento por erro essencial a partir da sexualidade do cônjuge. Em 2023, o TJSP, mais restritivo, negou pedido de anulação por homossexualidade omitida, e, em 2020, o TJDFT, flexível, deferiu pedido de anulação por atividade pregressa do marido como “gogo-boy” e garoto de programa. As decisões desvelam que a matéria não é consensual entre os tribunais recursais, inexistindo uma unicidade jurisprudencial.
Em ambos os casos, o pedido de anulação de casamento ocorre por alegado vício de vontade, ou consentimento defeituoso, decorrente de possível erro essencial sobre o cônjuge. O erro essencial que vicia o casamento encontra base no Código Civil (CC), art. 1.550, III, combinado com arts. 1.556 e 1.557, I[i], gerado a partir do desconhecimento sobre o passado (boa fama e honra) e a pessoa (identidade) do cônjuge. A questão é se as situações fáticas nos julgados (garoto de programa e homossexualidade) podem se enquadrar no conceito de erro essencial à luz da Constituição, dado que não houve parametrização do termo pela lei.
O TJDFT exige a acumulação dos seguintes requisitos para reconhecer a relevância do erro essencial: (i) a anterioridade ao casamento dos fatos ignorados pelo cônjuge enganado; (ii) a descoberta do erro posteriormente ao casamento; e (iii) que o erro quanto à identidade, honra ou boa fama do outro cônjuge torne a vida em comum insuportável, autorizando a invalidação do “negócio jurídico traduzido no matrimônio”.
No mérito, a ementa da decisão do TJDFT mostra o seguinte:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE CASAMENTO. ERRO ESSENCIAL QUANTO À PESSOA DO OUTRO CÔNJUGE. DESCOBERTA APÓS O CASAMENTO. FATOS QUE TORNARAM INSUPORTÁVEL A VIDA EM COMUM. […] 2. No caso em exame, o conjunto probatório corrobora a versão do cônjuge enganado quanto ao seu conhecimento posterior ao casamento sobre o passado do ex-marido – acompanhante para encontros íntimos e dançarino em boates LGBT -, bem como acerca da impossibilidade de manutenção da vida em comum, autorizando o acolhimento da pretensão anulatória. 3. Apelação conhecida e provida. (TJDFT, AC 008328-06.2017.8.07.0016, Rel. Des. Fábio Eduardo Marques, J. 29/01/2020, 7ª Turma Cível, P. 10/2/2020, grifos adicionados).
No TJSP, tem-se a seguinte decisão:
ANULAÇÃO DE CASAMENTO POR ERRO ESSENCIAL. ALEGADA HOMOSSEXUALIDADE. ERRO ESSENCIAL NÃ CARACTERIZADO. DESCABIMENTO DA ANULATÓRIA. […] 2. ERRO ESSENCIAL SOBRE A PESSOA. Não caracterização. Pedido de anulação de casamento por erro quanto à identidade do autor. Alegação de que o autor não teria dado qualquer indício da sua orientação sexual antes do casamento, e que não teria interesse em um relacionamento íntimo afetivo, porque teria confessado sua homossexualidade posteriormente ao casamento. Situação que não justifica a anulação. Casamento que, atualmente, não cria a obrigação de ter relações sexuais. Homossexualidade que é forma de expressão, autodeterminação e escolha de vida do indivíduo, não podendo ser enquadrada como um “erro de identidade”. Aceitação atual de vários tipos de casamento e não somente do tradicional relacionamento entre heterossexuais (TJSP, AC 1000615-93.2023.8.26.0348, Rel. Des. Carlos Alberto de Salles, 3ª Câmara D Privado, grifos adicionados).
Como se observa, para o TJSP, o argumento de desconhecimento da orientação sexual do marido e de não desejar ter relações íntimas não justifica a anulação, mas tão somente eventual divórcio.
Análise
A homossexualidade não constitui ato ilícito, nem pode ser considerada erro essencial de uma pessoa no sentido de doença como no passado, pois isso adentra na esfera da vida privada e na autonomia individual. O erro de identidade a que alude o CC é sobre o desconhecimento dessa identidade da pessoa, que gerou vício de vontade na celebração do casamento, e não se relaciona com juízo de valor sobre essa identidade. No caso, o erro essencial relaciona-se com a divergência de orientação sexual legitimamente esperada pela noiva em seu suposto casamento heterossexual. Trata-se de uma omissão enganosa de uma pessoa sobre a outra, prevista em lei como causa de invalidação de casamento. Decisão judicial nesse sentido não significa per se demérito, nem juízo de valor à orientação sexual, mas correção de uma situação envolvendo má-fé e manutenção de outrem em erro.
A anulação do casamento é justificada com base em erro sobre a identidade da pessoa, a partir do desconhecimento ou omissão prévia acerca da identidade sexual do marido, aspecto que inviabiliza o matrimônio constituído como heteroafetivo. Novamente, não há juízo de valor contra a homossexualidade em si na decisão judicial de reparação da situação a partir da consideração de erro quanto à correta identidade (sexual) do cônjuge. O dispositivo do CC sobre erro de identidade não deve ser lido como julgamento de valor sobre a homossexualidade, pois independe de considerações de a causa subjacente ao erro de pessoa ser boa ou ruim para anular o casamento.
Trata-se de situação que tornou inviável a vida conjugal, a partir de fato essencial não demonstrado anteriormente ao casamento e que comprometeu a expectativa de uma vida conjugal heteroafetiva. A questão de mérito não é sobre defender a homossexualidade e formas variadas de casamentos em si, como argumenta o desembargador paulista, protegidas pela Constituição, mas sobre o desconhecimento de parte essencial da identidade do cônjuge alheio, inviabilizando o casamento para um deles. Há omissão dolosa, prática enganosa continuada na relação ao se passar por heterossexual, gerando dano à mulher. É, portanto, justa a demanda de anulação de casamento.
A incompatibilidade sexual entre cônjuges tem sido reconhecida pelos tribunais para anulação de casamento. O acórdão do TJRS frisa a quebra de expectativa legítima do cônjuge a partir do desconhecimento da identidade (sexual) omitida:
APELAÇÃO. ANULAÇÃO DE CASAMENTO. ERRO ESSENCIAL EM RELAÇÃO À PESSOA DO CÔNJUGE. OCORRÊNCIA. A existência de relacionamento sexual entre cônjuges é normal no casamento. É o esperado, o previsível. O sexo dentro do casamento faz parte dos usos e costumes tradicionais em nossa sociedade. Quem casa tem uma lícita, legítima e justa expectativa de que, após o casamento, manterá conjunção carnal com o cônjuge. Quando o outro cônjuge não tem e nunca teve intenção de manter conjunção carnal após o casamento, mas não informa e nem exterioriza essa intenção antes da celebração do matrimônio, ocorre uma desarrazoada frustração de uma legítima expectativa. O fato de que o cônjuge desconhecia completamente que, após o casamento, não obteria do outro cônjuge anuência para realização de conjunção carnal demonstra a ocorrência de erro essencial. E isso autoriza a anulação do casamento. DERAM PROVIMENTO (SEGREDO DE JUSTIÇA)” (TJRS, AC 70016807315, 8ª Câm. Cív., Rel. Rui Portanova, j. 23.11.2006, grifos adicionados).
De fato, a posição dos tribunais recursais apresenta-se nesse sentido, “desde que comprovada de forma inequívoca, assim como o desconhecimento anterior ao casamento, e diante da ausência de aceitação pelo requerente manifesta pela convivência posterior à descoberta”[ii]. Há uma tendência predominante dos tribunais em considerar homo e bissexualidade como causas de anulação de casamento, mas a partir de erro de identidade, o que não pressupõe julgamento moral. Nesse contexto, a decisão restritiva recente do TJSP pode ser vista como uma inovação jurisprudencial ainda incipiente, mais do que algo consolidado nos tribunais.
Por sua vez, o acolhimento da tese de desconforto moral da pessoa enganada pelo TJDFT envolve julgamento moral e preconceito sobre a pessoa humana implicitamente à decisão judicial, algo que não possui mais espaço na sociedade brasileira pós-1988. Aqui, o erro essencial decorreria não de erro de identidade, mas de suposta mácula sobre a honra e boa fama do cônjuge (CC, art. 1.557, I). Porém, o juiz deve ter cautela na parametrização de vício de vontade quando envolve costumes e valores morais. Contraria a Constituição o enquadramento moral de prostituição e orientação sexual como má fama, pois colide com direito de personalidade, de liberdade e dignidade humana.
Em tempos de generalização do OnlyFans como fonte de renda da classe média, a prostituição pregressa já não constitui causa de anulação de casamento. O trabalho sobre o corpo feminino já não possui essa mácula, o mesmo ocorrendo sobre o masculino, o que enfraquece uma decisão judicial pela anulação do casamento com tal fundamento moral. Sob a Constituição de 1988, a subjetividade e moralismo social devem ser bastante restringidos nos tribunais na interpretação dos conceitos de honra e boa fama. Aqui, devem-se adotar parâmetros objetivos como, p.ex., condenação criminal pregressa ou similar, até porque o STJ já reconheceu a prostituição como ato lícito no HC 211.888/TO.
Considerações Finais
A aparente divergência entre os acórdãos recentes envolvendo homossexualidade, corrente e pregressa, como erro essencial sugere, no mínimo, oscilação de mérito entre os tribunais. Porém, ambos os julgados citados podem ser considerados questionáveis.
No TJSP, a decisão contraria a jurisprudência sobre o tema, que admite a anulação por homossexualidade, dada a total incompatibilidade fática e objetiva do casamento, diante de aspecto que lhe é essencial e que independe de juízo de valor quanto à homossexualidade. Há claro vício de vontade envolvido, configurando situação de erro de identidade, assim como seria em uma vasectomia escondida, que constitui empecilho real e objetivo para o projeto de vida em comum da mulher que deseja ter filhos.
Já a decisão do TJDFT considera a homossexualidade pregressa como mácula à honra e boa fama, um claro juízo de valor discriminatório pelo Poder Público brasileiro. Assim, se aquele tribunal fica aquém das hipóteses legais do CC, este tribunal as excede. Diante disso, é oportuno que a Comissão de Juristas que analisa a reforma do CC no Senado Federal parametrize os conceitos subjacentes a erro essencial, afastando subjetividades inconstitucionais nas decisões dos tribunais do país.
* Graduando em Direito (UnB), Especialista em Direito Legislativo, Mestre e Doutor em Economia (UFRGS), com doutorado-sanduíche na Universidade de Cambridge, Inglaterra. É Consultor Legislativo do Senado Federal. E-mail: cesarvdl@yahoo.com.
[i] Art. 1.550. É anulável o casamento: […] III – por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;
Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
[ii] Moraes, 2019.
Referência
MORAES, A. L. F. F. Anulação de casamento por erro de pessoa e homossexualidade: análise jurisprudencial à luz da Constituição Federal. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 5, n. 5, p. 4243-4253, mai. 2019.