Remontada fazendária: a (in)constitucionalidade da redução equitativa dos honorários de sucumbência

Por Benedito Cerezzo Pereira Filho*, Lucas Cordeiro de Sousa** e Leonardo Muhammad Luzente Paulo**

A expressão “remontada” é popularmente conhecida no mundo dos esportes como a grande virada, a reviravolta, a vitória daquele que estava quase derrotado. O termo tem origem na língua espanhola e nos permite definir com clareza um momento singular para a advocacia brasileira. A Fazenda Pública busca uma remontada, um retrocesso ao cenário de incerteza e subjetividade da redução de honorários por equidade, como era até o julgamento do Tema n. 1.076 pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.

Além da própria literalidade do dispositivo do § 8º, do art. 85 do CPC, a matéria já se encontrava pacificada no plano doutrinário, vide o Enunciado n. 6 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal segundo o qual “a fixação dos honorários de sucumbência por apreciação equitativa só é cabível nas hipóteses previstas no § 8º, do art. 85 do CPC”. Mas foi tão somente com a decisão do STJ que a plena aceitação da tese aparentou ser definitiva.

Em 31 de maio de 2022, foi publicado o acórdão do julgamento do REsp 1.850.512/SP, afetado ao regime de recursos repetitivos. A Corte fixou duas teses: (i) declarou a expressa ilegalidade da redução dos honorários de sucumbência por apreciação equitativa em processos cujos valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda fossem subjetivamente considerados elevados; (ii) restringiu o arbitramento de honorários de sucumbência às hipóteses expressas do art. 85, § 8º, do Código de Processo Civil, isto é, quando inestimável, irrisório ou muito baixo o valor da causa. (REsp n. 1.850.512/SP, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 16/3/2022.)

A vitória do sistema de justiça naquele momento parecia consolidada diante do precedente vinculante sobre a matéria, superando a divergência que assolava o judiciário brasileiro.

Afinal, ainda que o tema apresentasse clareza legislativa e consolidação na doutrina, não era incomum a redução equitativa de honorários sucumbenciais em causas de “elevado valor” — se é que sabemos o que isso significa. E para justificá-la, magistrados lançavam mão de critérios alheios à legislação vigente, como o número de diligências e despachos realizados, a realização de perícias, oitiva de testemunhas, entre outros.

Vejamos o exemplo da Ação Cível Originária n. 2.988, proposta no STF pelo Distrito Federal em face da União, para discutir o repasse mensal dos valores do Regime Geral da Previdência Social. Sem dúvida, uma causa delicada, de valor milionário (R$ 740.557.990,40, conforme a petição inicial), e, ironicamente, ajuizada pela própria Fazenda Distrital. Inicialmente, os honorários advocatícios foram fixados em 1% do valor da causa, correspondendo a aproximadamente 7,4 milhões de reais. Contudo, vieram embargos declaratórios da União, e o Tribunal Pleno do STF, sob a relatoria do Min. Roberto Barroso, decidiu reduzir a verba alimentar dos advogados para R$ 10.000,00. O fundamento: a causa era exclusivamente de direito e não exigiu dilação probatória. (EDs na ACO 2988, Relator Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2022.)

É como se a mera oitiva de testemunhas e realização de perícias valorizasse tanto o trabalho dos advogados ao ponto de justificar a diferença entre dez mil reais e sete milhões de reais, ignorando-se a custosa estrutura de um serviço jurídico bem organizado¹. 

Como se vê, essa modalidade de fixação de honorários nas causas de valor “exorbitante” é inerentemente subjetiva e casuística. Uma prática que desafia a cientificidade do Direito, porque se reveste de discricionariedade desregrada. E, mais do que isso, extrai uma interpretação atécnica da legislação por duas principais razões. A uma, por derivar uma interpretação restritiva de direitos via juízo de equidade sem expressa previsão legal, o que é vedado pelo art. 140, parágrafo único, do CPC. A duas, por ir de encontro com a interpretação teleológica da norma, na medida em que extrai do § 8°, do art. 85, do CPC uma autorização para impor um teto sobre o valor dos honorários, quando a finalidade do dispositivo é o inverso: garantir um piso sob o valor dos honorários. No dizer do Ministro de sempre Carlos Ayres Britto, é um salto triplo carpado hermenêutico.

Aqui, vale destacar também a distorção do termo “equidade” que envolve essa discussão. Vejamos: se a redução equitativa de honorários advocatícios depende tão somente da quantidade de trabalho realizado pelo advogado em relação ao valor da causa, então ela se aplicaria tanto aos processos entre particulares, quanto aos processos envolvendo a Fazenda Pública, certo? Errado. Na visão da União, essa redução de honorários somente seria possível para proteger o erário. Ou seja, em processos idênticos — de mesmo valor, complexidade e carga de trabalho —, se a sucumbente for a Fazenda, os honorários poderão ser substancialmente reduzidos por equidade, mas se o sucumbente for um cidadão, terá de pagar o valor integral dos honorários. 

A quebra de equidade é autoevidente. Imaginemos que uma empresa tenha ajuizado demanda para deixar de pagar um imposto, bem como receber de volta os valores pagos nos últimos cinco anos, sem necessidade de realização de perícia, e atribuindo à causa o valor de R$ 10.000.000,00. Se o Judiciário entender que o imposto é constitucional, o particular deverá pagar honorários advocatícios de, no mínimo, R$ 500.000,00 (art. 85, § 3°, III). Mas, se for declarada a inconstitucionalidade do imposto, a Fazenda Pública poderá pedir apreciação equitativa e pagar honorários de R$ 10.000,00, mesmo que o trabalho do advogado particular tenha sido idêntico ao do advogado público. Pior ainda: se fosse uma disputa (exclusivamente de direito) entre empresas sobre, por exemplo, a abusividade de uma cláusula contratual milionária, nenhuma das duas poderia invocar a redução equitativa dos honorários, ainda que não houvesse produção de prova testemunhal e pericial.

É para esse cenário de subjetividade e casuísmo que a Fazenda quer retornar e fazer sua remontada. 

Sua derrota inicial no STJ não a impediu de interpor o Recurso Extraordinário n. 1.412.069, com base na alegação de violação do devido processo legal, na perspectiva da isonomia, razoabilidade e proporcionalidade. E também não impediu a Presidência do STJ de o admitir, já na qualidade de representativo da controvérsia, tendo sido afetado à Sistemática da Repercussão Geral no Tema n. 1.255.

Eis a pretensão da remontada da União: dar interpretação conforme a Constituição Federal, para que seja reconhecida a possibilidade de aplicação da apreciação equitativa dos honorários advocatícios nas situações em que a incidência do § 3º, do art. 85, do CPC/15, gere distorção da remuneração em valores exorbitantes. Ou seja, quer permitir a redução dos honorários por equidade, mas somente nos processos em que a Fazenda é sucumbente.

Entretanto, como bem apontado pelo professor Benedito Cerezzo no parecer que foi juntado nos autos do RE que tramita no STF, não há um sopro de questão constitucional na discussão sobre honorários equitativos. A própria Corte Constitucional, no Tema 660, já fixou que não há questão constitucional na discussão sobre o devido processo legal — que a União entende ter sido violado pelo STJ —, quando a ofensa à norma constitucional for reflexa. Isto é, quando se viola a norma infraconstitucional e, apenas indiretamente, uma norma constitucional. E é esse o caso do Tema 1.255 do STF.

São muitas as normas constitucionais alegadamente violadas, de acordo com o RE da União. Entretanto, é difícil enxergar que o STJ, ao proibir a redução equitativa dos honorários, ofendeu diretamente: i) a separação de poderes; ii) o objetivo fundamental da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária; iii) a isonomia; iv) o devido processo legal; v) o direito de petição; e vi) o princípio da legalidade estrita na Administração Pública. 

A verdade é que, se reconhecida a repercussão geral, o STF terá que rever a interpretação concedida ao art. 85, § 8°, do CPC e, ao assim proceder, terá que usurpar a competência do STJ de uniformizar a interpretação da legislação federal, atribuída pelo art. 105 da mesma Constituição Federal que o STF tem a missão de proteger.

Agora só nos resta aguardar o voto do novo Min. Cristiano Zanin para saber se o STF irá seguir a própria jurisprudência e reconhecer a ausência de repercussão geral da discussão sobre a apreciação equitativa de honorários em razão da natureza infraconstitucional da matéria, ou se irá permitir que a remontada da Fazenda dê mais um passo à frente para, paradoxalmente, retroceder ao cenário de incerteza e casuísmo. Oremos! 

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[1] LOBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao estatuto da advocacia e da OAB. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 128.

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*Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2002). Compôs a Comissão de Juristas responsável pela elaboração e acompanhamento do Anteprojeto do Código de Processo Civil de 2015. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – FD/UnB, ministrando aulas na Graduação e Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado. Professor orientador da Liga Acadêmica de Processo Civil da Universidade de Brasília (LAPROC). Advogado em Brasília/DF, no Escritório Marcelo Leal Advogados Associados.

**Graduandos em Direito na UnB, campeões da V Competição Brasileira de Processo, fundadores da LAPROC e orientadores da Equipe de Processo Civil da UnB.

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Palavras-chave: honorários advocatícios, apreciação por equidade, STF, STJ, Tema 1.076, Tema 1.255, remontada.

 

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