Entrapment, Flagrante Preparado e Crime Impossível à Luz do RHC n.º 215.579/PR

por Submissões Independentes

Por Grégori Lucas Dias da Silva*

O Ministro Antonio Saldanha Palheiro da Sexta Turma do STJ deu provimento ao RHC n.º 215.579/PR para que fosse trancada a ação penal em que o paciente C. D. M. figurava como réu pela conduta típica do art. 217-A[1] (estupro de vulnerável) na forma tentada do art. 14, inc. II[2], todos do Código Penal.

No caso concreto, o paciente havia adicionado no Facebook uma menor de idade, que prontamente mostrou ao genitor o pedido de solicitação indagando se ele o conhecia. Após tomar ciência, o pai decidiu continuar a conversa com o paciente, instigando a ocorrência de um encontro com ele sob o pretexto de ser um encontro entre ele e a menor de idade, o que fora prontamente atendido pelo recorrente. Alertada a autoridade policial, estes procederam ao encontro, acompanhando-os de longe, e realizando a prisão pelo crime de estupro de vulnerável na forma tentada quando o recorrente fora pego em flagrante.

O caso é um daqueles clássicos reproduzidos no programa To Catch a Predator, um programa policialesco estadunidense em que homens são atraídos a encontros com menores de idade para serem desmascarados na flagrância do ato que supõem-se que iriam cometer.

Sem adentrar no mérito da questão que concerne a segurança do menor, a questão nos traz uma reflexão jurídica interessante para ser debatida.

Na doutrina estadunidense, a figura do entrapment é vedada, sob pena de tornar inválida a pretensão acusatória do Estado de promover a ação penal contra o autor do delito. Em Jacobson v. United States, 503 U.S. 540, 548 (1992), a Suprema Corte dos EUA decidiu que o Estado não poderia produzir as condições e instigar o cometimento de delito com o objetivo de promover a persecução por este mesmo delito. Na opinião majoritária da Corte declamada pelo Justice White, o Tribunal assentou: “In their zeal to enforce the law, Government agents may not originate a criminal design, implant in an innocent person’s mind the disposition to commit a criminal act, and then induce commission of the crime so that the Government may prosecute.”

A partir desses precedentes, tanto o de Jacobson v. United States, 503 U.S. 540, 548 (1992) quanto o de Mathews v. United States, 485 U.S. 58 (1988), a Suprema Corte delineou que para a previsão da defesa de entrapment sobre a conduta, seria necessário haver a presença de dois elementos fundamentais, quais sejam: a indução/instigação estatal sobre o cometimento de ato criminoso e a ausência de predisposição prévia do autor do delito para comissão do crime.

Se houver ambos os fatores, a defesa de entrapment pode ser instruída ao júri, o que nos leva ao caso em comento.

O entrapment, na doutrina americana, foi trazido ao nosso ordenamento jurídico por meio da figura do delito putativo por obra do agente provocador:

Também chamado de crime de flagrante preparado, delito de ensaio ou experiência, ocorre quando a polícia ou terceiro (agente provocador) prepara uma situação, na qual induz o agente a cometer o delito (investigadora grávida pede para médico fazer aborto ilegal e depois o prende em flagrante; detetive simula querer comprar maconha e prende o traficante etc.). (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal-parte Geral: Arts. 1º a 120 -Vol.1 – 29ª Edição 2025. 29. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2024. E-book. p. 233.)

Por ser uma situação preparada pelo próprio Estado, que posteriormente poderá promover a ação penal em benefício de sua própria conduta indutiva, é uma das hipóteses de crime impossível que fulmina a tipicidade da conduta, pois a encenação promovida pelo Estado-polícia ou por terceiro envolvido no caso vicia o iter criminis ao manipular a conduta do agente ativo do delito.

Tal entendimento compõe verbete sumular do Supremo Tribunal Federal, que aduz:

Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação. (Súmula nº 145 – STF)

De igual modo sinaliza a doutrina, entendendo que a proposição do crime pelo Estado ou por terceiro macula a possibilidade de violação a bem jurídico tutelado. Diz Fernando Capez:

O crime é impossível pela ineficácia absoluta do meio empregado, provocada pelo conjunto das circunstâncias exteriores adrede preparadas, que tornam totalmente impossível ao sujeito atingir o momento consumativo. O elemento subjetivo do crime existe, mas, sob o aspecto objetivo, não há, em momento algum, risco de violação do bem jurídico, senão uma insciente cooperação para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores. O desprevenido sujeito opera dentro de uma pura ilusão, pois, ab initio, a vigilância dos agentes policiais torna impraticável a real consumação do crime. (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal-parte Geral: Arts. 1º a 120 -Vol.1 – 29ª Edição 2025. 29. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2024. E-book. p. 234.)

Aduz Rogério Greco:

Por intermédio da Súmula nº 145 do STF foi pacificado o entendimento daquela Corte no sentido de que, em determinadas situações, se a polícia preparar o flagrante de modo a tornar impossível a consumação do delito, tal situação importará em crime impossível, não havendo, por conseguinte, qualquer conduta que esteja a merecer a reprimenda do Estado. Uma vez preparado o flagrante pela polícia, a total impossibilidade de se consumar a infração penal pretendida pelo agente pode ocorrer tanto no caso de absoluta ineficácia do meio por ele utilizado como no de absoluta impropriedade do objeto. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Vol. 1 – 26ª Edição 2024. 26. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. E-book. p. 320.)

O Supremo Tribunal Federal, em sentido convergente, compreende que o ensejo de flagrante preparado é causa para reconhecer a nulidade do flagrante, haja em vista que os ímpetos de controle laboratorial da polícia/Ministério Público sobre a conduta provocam um balão de ensaio para que o delito seja instigado e, possivelmente, vislumbrado como possível unicamente pela ação estatal em favorecer as condições para a sua prática.

Em sede de Habeas Corpus, o Ministro Celso de Mello indicou na concessão da ordem:

Cumpre registrar, neste ponto, por relevante, que a análise da alegada ocorrência de “delito de ensaio” não se mostra superável com a mera prolação da sentença penal condenatória, mesmo porque a eventual constatação do “flagrante preparado” terá como conseqüência a própria invalidação da “persecutio criminis” (Súmula 145/STF). A jurisprudência desta Suprema Corte já firmou entendimento no sentido de que a comprovada ocorrência de “flagrante preparado” constitui situação apta a ensejar a nulidade radical do processo penal (RTJ 130/666, Rel. Min. CARLOS MADEIRA – RTJ 140/936, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RTJ 153/614, Rel. Min. PAULO BROSSARD, v.g.). (HC 84.723, rel. min. Celso de Mello, 2ª T, j. 21-2-2006, DJE 238 de 4-12-2013)

Portanto, ao analisarmos os fatores envolvidos no caso, quais sejam: a conduta do pai de instigar o encontro com o homem, alinhado à conduta dos agentes policiais de acompanharem o encontro com o intuito de prendê-lo por um delito de ensaio do qual eles próprios tomaram parte em preparar, resta prejudicada a possibilidade mínima de lesão ao bem jurídico tutelado, o que envereda a tese de crime impossível.

O art. 17 do Código Penal tem uma redação de clareza solar quanto à punibilidade concreta da forma tentada do delito:

Art. 17 – Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

No caso em comento, por mais abjeta que possa ser considerado o contexto e a conduta ali ensejada, o crime não poderia ser consumado por ter o agente policial se imiscuído e produzido uma situação que ensejaria a crença ilusória no recorrente de que ali estaria posta a condição de vulnerabilidade e oportunidade da vítima para que o crime, possivelmente, se consumasse. Por mais que pareça injusta ao senso comum, a lei e a doutrina, assim como a experiência de Direito Comparado, é bastante clara ao aduzir que o Estado, por ser o lado mais forte da corda, precisa ser controlado na sua capacidade de levar à condenação dos cidadãos.

É importante, portanto, que a despeito dos ímpetos do Estado de promover a persecução penal, que esta persecução se dê conforme os moldes daquilo que a lei e a jurisprudência preveem. Rememora-se que a Súmula nº 145 do Supremo Tribunal Federal fora aprovada em 1963! O art. 17 do Código Penal teve a sua redação incluída na reforma de 1984! Compete às autoridades policiais, também, confirmarem o parâmetro de sua atuação aos moldes normativos e jurídicos já delineados na ordem jurídica, sob pena de fragilizar ainda mais o combate a crimes sexuais contra menores que restam impunes pela conduta da polícia de não obedecer a norma vigente há décadas.

[1] Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

[2]  Art. 14 – Diz-se o crime: […]

II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

[*] Graduando em Direito na Escola de Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa em Brasília. Foi integrante da Clínica de Direitos Humanos do IDP. É membro da Liga LGBT do IDP e fez parte da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). É membro ouvinte da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/DF (2025-2027). É integrante do Grupo de Pesquisa sobre Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da EDAP/IDP e do (R)existir – Núcleo LGBT+ da Universidade de Brasília (UnB).

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