Aspectos Autoritativos do Direito e Argumentação Jurídica

Por Matheus Lopes Dezan*

   Para operar o Direito, é preciso argumentar, mas sempre de acordo com regras próprias e particulares da argumentação jurídica, isto é, regras que consideram as particularidades do Direito, na condição de ciência social aplicada, coordenando as interseções entre fatos e normas jurídicas. No entanto, mesmo que a argumentação jurídica seja uma condição natural do fenômeno jurídico, nem sempre as contribuições das regras de argumentação e lógica jurídica para o manuseio do Direito são evidentes.

   Em verdade, a fundamentação do Direito pós-moderno em paradigmas científicos pós-positivistas faz evidente que o Direito é integrado por uma dimensão argumentativa, de forma que operar o Direito demanda ordenar discursos jurídicos em acordo com regras de lógica jurídica.

   Tão-somente por meio da observância dessas regras lógico-argumentativas jurídicas assegura-se a correção, e, portanto, a validade, das proposições jurídicas, que pretendem provocar efeitos reais e transformadores sobre atos e fatos por meio de intervenção jurídica intermediada pelo exercício das funções típicas e atípicas dos Poder do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciária.

   Há, contudo, por força da cultura jurídica brasileira, aspectos autoritativos do Direito, de acorod com Claudia Roesler e Isaac Reis, que se impõem sobre a formação do discurso jurídico persuasivo, mormente das decisões judiciais e que, por vezes, priva-o de logicidade argumentativa.

   Dessarte, este ensaio tem por objetivo apresentar os fundamentos da argumentação jurídica e discriminar os aspectos autoritativos do Direito, bem como analisar de forma crítica a relação que há entre os aspectos autoritativos do Direito e as decisões judiciais.

   Paradigmas científicos são, para Thomas Kuhn, “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade científica”[1]. Significa dizer que paradigmas científicos, quando adotados, orientam empreendimentos científicos, isto é, orientam o exercício da ciência.

   O Direito é uma ciência e, por essa razão, tem como alicerce paradigmas científicos. Cumpre salientar que paradigmas jurídico-científicos guardam relação, em algum grau, com paradigmas de epistemologia científica, de modo que crises de objetividade do conhecimento científico moderno se projetam sobre o Direito moderno. Há, contudo, eventos que conduzem paradigmas científicos a crises, razão pela qual ocorrem, em campos do conhecimento, revoluções científicas.

  Notadamente, o Direito moderno tomou como fundamento paradigmas científicos positivistas, ao passo que, ante a crise dos paradigmas científicos positivistas, assentou-se o Direito pós-moderno sobre paradigmas científicos pós-positivistas[2]. 

   Com a revolução científica que conduz o Direito pós-moderno ao pós-positivismo, alteram-se, em suma, os dogmas do Direito de “[…] completude do ordenamento, da onipotência do legislador e do juízo avalorativo na interpretação legal […]”[3], de forma que há de se falar em direito como ciência sistematizada[4], autopoiética[5] e que se pretende correta, para que seja válida[6], em acordo com critérios de razão, ou racionalidade, jurídica. 

   Ademais, importa destacar o constitucionalismo como dogma do Direito pós-positivista responsável por evidenciar a dimensão argumentativa do Direito[7/8]. Isso porque, para o Direito pós-positivista, Constituições servem de eixo à formação de sentidos pelo operador do direito[9].

   Essas são, pois, as bases de uma dimensão argumentativa do Direito[10]. Argumentar juridicamente é forma de conferir ordem ao discurso jurídico – assim compreendidas as proposições gramaticais em matéria de Direito –, a fim de adequá-lo à ordem jurídica sistematizada sejam postulados, sejam princípios, sejam regras –, para se seja correto e, pois, válido o teor do discurso jurídico[11]. Regras de argumentação jurídica servem para que seja correta a adequação do discurso jurídico à ordem jurídica.

   Nesse sentido, nota-se que o discurso jurídico é dirigido a um auditório qualificado, que recepciona e que processo o conteúdo do discurso em acordo com regras de argumentação, não gerais, mas especiais, jurídicas, que têm como baliza a ordem jurídica. A ordem jurídica, por conseguinte, tem  fontes próprias[12], e os integrantes da comunidade científico-jurídica, que compõem o auditório ao qual se dirige o discurso jurídico, dialogam em acordo com um jogo de linguagem, convenções acerca da relação entre signo, significado e referente[13], próprio. Por essa razão, as regras de argumentação jurídica assumem feição suis generis.

   As decisões judiciais, como espécie de discurso jurídico, devem ser motivadas, isto é, devem expor as razões de fato e de direito que a subsidiam[14], a fim de que sejam socialmente controláveis, devem as decisões judiciais ser motivadas em acordo com regras de argumentação jurídica, a fim de que uma análise empírico-retórica do discurso jurídico é forma de avaliar essa relação de adequação[15].

   Nada obstante, em trabalho acadêmico, Claudia Roesler e Isaac Reis constatam que a cultura jurídica brasileira faz evidentes aspectos autoritativos do Direito. Significa que pouco importam, para a prática judicial brasileira, os componentes lógico-jurídicos, e, pois, argumentativos, do discurso jurídico decisório. 

   Ao contrário, sobrevalorizam-se convicções e valores pessoais dos magistrados, de modo que há de se falar em uma cultura jurídica personalista. As decisões judiciais, portanto, cuidam de ostentar conhecimentos em matéria de Direito, mas não em acordo com critérios de correção e de validade do discurso jurídico, razão pela qual são descontextualizadas doutrina e jurisprudência nacionais e internacionais, por exemplo[16]. 

   Assim, os aspectos autoritativos do Direito, compreendidos elementos personalistas do Direito, fazem com que careçam de fundamentos jurídicos racionais as decisões judiciais de magistrados brasileiros.

   Portanto, em suma, tem-se que se operaram, sobre o Direito hodierno, transformações que o fizeram romper com paradigmas científicos positivistas em benefício de paradigmas científicos pós-positivistas. Por essa razão, evidenciou-se o fato de que o Direito é integrado por uma dimensão argumentativa. A argumentação jurídica ordena o discurso jurídico, a exemplo de decisões judiciais motivadas, para que sejam corretos e válidos, em acordo com a ordem jurídica sistematizada.

   Há, contudo, em razão de elementos da cultura jurídica, aspectos autoritativos do Direito brasileiro, que sobrevalorizam a personalidade dos operadores do Direito, em especial dos juízes, de modo que, comumente, decisões judiciais carecem de fundamentos jurídico-racionais, mas se limitam a engrandecer a personalidade dos magistrados por meio da ostentação, sobretudo, de conhecimentos jurídicos, que, todavia, são imprecisos e reduzem, porquanto objetivam persuadir com amparo em argumentos de autoridade, v.g., a qualidade lógico-jurídica das decisões prolatadas.

 

*Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Editor-Chefe e membro do Conselho Diretor da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB). Membro do Grupo de Pesquisa em Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas (HDAPP/UniCeub), certificado pelo CNPq. Estagiário de Direito no escritório Schiefler Advocacia. Interessado em: Direito Administrativo, Direito Econômico, Direito Monetário e das Criptomoedas, Análise Econômica do Direito e Proteção de Dados Pessoais. Contato: matheus.ldezan@gmail.com.

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[1]  KUHN, Thomas S. Estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2018, p. 53.

[2] DEZAN, Matheus Lopes; PEIXOTO, Fabiano Hartmann. Soluções de inteligência artificial como forma de ampliar a segurança jurídica das decisões jurídicas. Revista Democracia Digital e Governo Eletrônico, Florianópolis, v. 1, n. 18, p. 178-190, 2019.

[3] MOREIRA, Nelson Camatta. Direito e garantias constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 32.

[4] CANARIS,  Claus-Willhelm. Pensamento  sistêmico  e  conceito  de  sistema  na  ciência  do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.

[5] LUHMANN, Niklas. El derecho como sistema social. In: DIEZ, Carlos Cómez-Jara (Ed.). Teoria dos sitemas y derecho penal: fundamentos y possibilidades de aplicación. Granada: Comares, 2005, p. 69-85.

[6] Acerca da tese da correção, ou pretensão à correção, cf. ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. São Paulo: WMF Martins Fones, 2009, p. 92-97;149-155.

[7] REIS, Isaac; ROESLER, Claudia. Argumentação judicial e democracia. In: REIS, Isaac (Org.). Diálogos sobre retórica e argumentação. Curitiba: Alteridade, 2018, v. 4, p. 63-75. (Coleção Direito, Retórica e Argumentação, vol. 4), p. 64.

[8] ATIENZA, Manuel. Curso de argumentação jurídica. Curitiba: Alteridade, 2013. (Coleção Direito, Retórica e Argumentação, vol. 1), p. 19-22;31-33.

[9] Acerca das relações entre pós-positivismo, constitucionalismo e argumentação jurídica, cf. MORAES, George. Rezende. Jurisdição constitucional e racionalidade jurídica no contexto do neoconstitucionalismo pós-positivista. Revista Brasileira de Direito, v. 10, n. 2, p. 16–27, 2014.

[10] ATIENZA, Manuel. Curso de argumentação jurídica. Curitiba: Alteridade, 2013. (Coleção Direito, Retórica e Argumentação, vol. 1), p. 19-34.

[11] ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. São Paulo: WMF Martins Fones, 2009, p. 92-97;149-155.

[12] Acerca de fontes do direito, cf. CASTANHEIRA NEVES, António. As fontes do direito e o problema da positividade jurídica. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume LI, 1975, p. 115-240.

[13]WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 2015, p. 177 e ss.

[14] SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Motivações e fundamentação das decisões judiciais e o princípio da segurança jurídica. Revista Brasileira de Direito Constitucional, v. 2, n. 7, jan.-jun. 2006, p. 356-358.

[15] REIS, Isaac. Análise empírico-retórica do discurso: fundamentos, objetivos e aplicação. In: ROESLER, Claudia; HARTMANN, Fabiano; REIS, Isaac (Org). Retórica e argumentação jurídica: modelos em análise. Curitiba: Alteridade, 2018, v. 2. p. 121-150. (Coleção Direito, Retórica e Argumentação, vol. 2).

[16] REIS, Isaac; ROESLER, Claudia. Argumentação judicial e democracia. In: REIS, Isaac (Org.). Diálogos sobre retórica e argumentação. Curitiba: Alteridade, 2018, v. 4, p. 63-75. (Coleção Direito, Retórica e Argumentação, vol. 4), p. 65;73.

 

 

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