Por Sabriny Pereira Leite*
A Constituição Brasileira de 1988 é extensa na sua disposição de direitos e garantias atribuídas pelo Estado. Essa é uma consequência clara da busca de reversão dos efeitos dos anos de ditadura militar que o Brasil vivenciou a partir de 1964, a fim de que a Constituição buscasse proteger e resguardar como invioláveis as garantias asseguradas aos cidadãos brasileiros. Tendo isso em vista, o art. 196 afirma que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”¹. Entretanto, a garantia não é plenamente assegurada.
O sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e carência de políticas públicas efetivas pelo legislativo e executivo vem trazendo uma carência nessa área. Em busca da materialização do direito a população busca o judiciário com objetivo de trazer resolução para a contradição da falta de asseguração do direito dado pela própria constituição². Entretanto, a problemática da divisão de competência e atribuições entre os poderes se estende de forma que é necessário estabelecer outros pontos de vista sobre a discussão, ainda mais no atual contexto pós-pandemia, pois seguindo a tendência que se dos anos anteriores ocorre um aumento de casos sobre saúde no judiciário. Entre os anos de 2008 até 2017 houve uma ampliação de 130% em ações judiciais de primeira instância que abordam sobre o direito à saúde³.
A Constituição da África do Sul também estabelece em seu Art.27:
1. Todos têm o direito de ter acesso a
1. serviços de cuidados de saúde, incluindo cuidados de saúde reprodutiva;
2. comida e água suficientes; e segurança social,
3. incluindo, se não puderem sustentar-se a si próprios e aos seus dependentes, assistência social adequada.
2. O Estado deve tomar medidas legislativas e outras razoáveis, dentro de seus recursos disponíveis, para alcançar a realização progressiva de cada um desses direitos.
3. A ninguém pode ser recusado tratamento médico de emergência⁴.
Porém, mesmo com disposições semelhantes quanto à atribuição de responsabilidade ao Estado em relação à saúde da população, a resposta do Judiciário local é diferente. Existe uma certa cautela para que a delimitação das competências de cada um dos Poderes não seja transgredida. Desta forma, a situação pede mais aprofundamento.
BRASIL E ÁFRICA DO SUL
O conceito de judicialização tem primeira aparição em 1992 em um seminário no Centro de Estudos do Poder Judiciário da Bolonha, na Itália. Logo após, em 1995, Chester Neal Tate e Torbjörn Vallinder publicam “The Global Expansion of Judicial Power” consagrando o termo⁵. Quanto à judicialização na saúde, muitas são as perspectivas. Mapelli Júnior compreende a judicialização como uma difusão judicial gradual de ações que visam a obtenção de medicamentos, insumos e outros serviços de saúde. Já Campilongo afirma que o fenômeno se refere à reivindicação do direito à saúde por meio dos tribunais e de suas decisões que se sobrepõem ao rol normativo do SUS. Por sua vez, Tate e Vallinder acreditam que a judicialização seria uma resposta do Judiciário, que, ao ser provocado por terceiro, retifica a decisão de um poder político realizada com fundamento na Constituição⁶.
Diante disso, surgem as críticas quanto à questão. A instabilidade jurisdicional é apontada pela doutrina, de forma que o Judiciário não tem capacidade de execução gerando assim insatisfação e irresolução da grande quantidade de ações sendo criadas. Consequentemente, há mais morosidade e ineficácia. A esse respeito, De Miranda lista os seguintes aspectos:
i) sua interferência negativa no planejamento e na promoção da igualdade e universalidade do SUS; ii) a existência de falhas estruturais do Judiciário, como a ineficiência, a morosidade e os erros, impedindo-o de conceder adequado acesso à saúde; iii) não ser função do Judiciário criar políticas públicas; iv) o efeito desorganizador do SUS a partir da judicialização da saúde, ao estabelecer a responsabilidade solidária dos entes da federação nas ações de saúde; v) a desconsideração de limites econômicos pela judicialização, ferindo o princípio da reserva do possível; e vi) o uso do Judiciário para atender aos interesses de mercado e não às necessidades sociais⁷.
Diante de tal problemática, se entende a atuação de diversos agentes que integram o sistema, como os grupos organizados da sociedade civil e os próprios Conselhos de Saúde no campo do direito para garantir a saúde. Isso representa uma tendência de mudança do paradigma de cidadania vigente, que antes se baseava principalmente na delegação eleitoral, para uma participação mais ativa ou indireta na definição das políticas públicas. Nesse contexto, destaca-se a forma de atuação do Ministério Público (MP)⁸. O principal instrumento utilizado pelo MP é a Ação Civil Pública, que tem competência para cuidar dos serviços de relevância pública e tem como função principal zelar pela promoção dos direitos constitucionais, incluindo o direito à saúde. O direito à saúde é entendido como um direito individual, coletivo e difuso, conforme o artigo 197 da Constituição brasileira. Além disso, observa-se o papel do MP na busca pelo direito à saúde, tanto como instituição que aciona a Justiça para garantir esse direito, quanto como um espaço extrajudicial para a resolução de conflitos relacionados à saúde. Essa atuação do MP contribui para a proteção e promoção dos direitos dos cidadãos no âmbito da saúde pública⁹.
O processo de judicialização no Brasil pode ser compreendido da seguinte forma:
Infográfico 1
Como observado antes, os Tribunais da África do Sul tendem a um critério maior quanto aos casos que chegam até o Judiciário que fazem referência ao seu artigo já supracitado, mesmo quando encontra violações a direitos, permanecendo conscientes de suas limitações em termos de competências constitucionais e institucionais. Importante jurisprudência a ser citada é o caso Soobramoney. O autor requereu tratamento de diálise renal por apresentar quadro irreversível e por não poder, a longo prazo, ser candidato a transplante de rim, condição necessária para cumprir os critérios médicos para a diálise em hospitais públicos. No entanto, o pedido foi indeferido pela Corte Constitucional com a justificativa de escassez de recursos, alegada pelo Estado, para oferecer tratamento prolongado, dada a capacidade restrita do setor público de saúde de atender apenas 30% da demanda para esse tipo de tratamento¹⁰. A Corte estabeleceu que a norma apresentada na Constituição garante o tratamento médico e emergencial “necessário e disponível” de forma a evitar danos em casos de extrema urgência. Porém, isso não se aplica no caso de fornecimento de tratamento contínuo de doenças crônicas com o propósito de prolongar a vida¹¹.
A Corte Constitucional Sul-Africana utiliza o princípio da razoabilidade como método de controle das políticas públicas, demonstrando deferência aos demais poderes políticos, que têm a prerrogativa de escolher não apenas quais políticas serão adotadas, mas também como os recursos serão alocados. A Corte tende a hesitar em intervir se existir uma política governamental em vigor que seja considerada um meio razoável de progressivamente alcançar o direito à saúde. Em tais casos, sua função é emitir uma declaração de razoabilidade ou não razoabilidade em relação à política em questão¹².
Diante de tudo, há uma insatisfação para com os dois modelos. De um lado, os Tribunais Brasileiros entendem a Saúde como um Direito subjetivo à vida. Entretanto, por mais que essa abertura traga o benefício do reconhecimento e preocupação do Estado para com as questões e nuances da Saúde da população, ocorrem certos perigos de tal discricionariedade, pois “seria ilegítimo para um órgão, que não é sujeito ao mesmo nível de fiscalização e controle do eleitorado, como o Judiciário, fazer valer sua própria visão do bem público em detrimento daquela do Poder Executivo”¹³. Porém, as decisões da Corte Constitucional da África do Sul podem ser vistas como debilitadas, pois são marcadas por uma certa deferência aos poderes políticos¹⁴.
CONCLUSÃO
Em conclusão, a Constituição Brasileira de 1988 demonstra uma preocupação em proteger e garantir os direitos e garantias individuais dos cidadãos, incluindo o direito à saúde. No entanto, a efetivação desse direito enfrenta desafios, como o sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a falta de políticas públicas efetivas. Isso leva muitos cidadãos a recorrer ao Judiciário em busca de soluções para a falta de asseguração do direito à saúde, resultando em um aumento significativo de ações judiciais nessa área.
Por outro lado, a Constituição Sul-Africana também atribui responsabilidade ao Estado em relação à saúde da população, estabelecendo o acesso a serviços de cuidados de saúde como um direito. No entanto, a resposta do Judiciário sul-africano é marcada por uma cautela em relação à divisão de competências entre os poderes, demonstrando deferência aos poderes políticos na definição e implementação das políticas públicas de saúde.
Ambos os sistemas enfrentam desafios na judicialização da saúde. No caso brasileiro, há críticas relacionadas à interferência no planejamento do SUS, à falta de capacidade de execução do Judiciário e sua consequente desorganização no sistema de saúde. Na África do Sul, a cautela do Judiciário em relação aos poderes políticos pode limitar sua intervenção na garantia do direito à saúde.
Essas questões exigem uma análise mais aprofundada, considerando o impacto da judicialização da saúde nos sistemas jurídicos e de saúde de cada país, bem como a necessidade de encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais e as limitações orçamentárias e competências do Estado.
* Sabriny Pereira Leite é Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), integrante do projeto Veredicto no campo de Pesquisa e Diretora-assistente do projeto de Simulação das Nações Unidas para Secundaristas (SiNUS)
[1] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 17 de junho de 2023.
[2] DE SOUZA MACHADO, Felipe Rangel. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, v. 9, n. 2, p. 73-91, 2008.
[3] INSPER (Instituto de Ensino e Pesquisa). Judicialização da saúde no brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Conselho Nacional De Justiça;2019. 174 p.
[4] AFRICA DO SUL [Constituição,1996]. Revisada em 2012, Presidente da República. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97908/constituicao-da-africa-do-sul-de-1996-revisada-em-2012/2. Acesso em 16 de junho de 2023.
[5] DE MIRANDA, Wanessa Debôrtoli et al. A encruzilhada da judicialização da saúde no Brasil sob a perspectiva do Direito Comparado. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 10, n. 4, p. 197-223, 2021.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem.
[8] DE SOUZA MACHADO, Felipe Rangel. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, v. 9, n. 2, p. 73-91, 2008.
[9] Ibidem.
[10] DE MIRANDA, Wanessa Debôrtoli et al. A encruzilhada da judicialização da saúde no Brasil sob a perspectiva do Direito Comparado. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 10, n. 4, p. 197-223, 2021.
[11] ARRUDA, Paula Uematsu. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: AS EXPERIÊNCIAS DO BRASIL E DA ÁFRICA DO SUL. Revista de Estudos Jurídicos da UNESP, v. 24, n. 40, 2020.
[12] Ibidem.
[13] NGWENA, Charles. Escopo e limite da judicialização do direito constitucional à saúde na África do Sul: avaliação de casos com referência específica à justiciabilidade da saúde. Revista de Direito Sanitário, v. 14, n. 2, p. 43-87, 2013.
[14] ARRUDA, Paula Uematsu. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: AS EXPERIÊNCIAS DO BRASIL E DA ÁFRICA DO SUL. Revista de Estudos Jurídicos da UNESP, v. 24, n. 40, 2020.
Referências
AFRICA DO SUL [Constituição,1996]. Revisada em 2012, Presidente da república. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97908/constituicao-da-africa-do-sul-de-1996-revisada-em-2012/2. Acesso em 16 de junho de 2023.
ARRUDA, Paula Uematsu. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: AS EXPERIÊNCIAS DO BRASIL E DA ÁFRICA DO SUL. Revista de Estudos Jurídicos da UNESP, v. 24, n. 40, 2020.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 17 de junho de 2023.
DE MIRANDA, Wanessa Debôrtoli et al. A encruzilhada da judicialização da saúde no Brasil sob a perspectiva do Direito Comparado. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 10, n. 4, p. 197-223, 2021.
DE SOUZA MACHADO, Felipe Rangel. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, v. 9, n. 2, p. 73-91, 2008.
Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Judicialização da saúde no brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Conselho Nacional De Justiça;2019. 174 p.
NGWENA, Charles. Escopo e limite da judicialização do direito constitucional à saúde na África do Sul: avaliação de casos com referência específica à justiciabilidade da saúde. Revista de Direito Sanitário, v. 14, n. 2, p. 43-87, 2013.