Por Ana Beatriz Santiago de Souza*
O mês de outubro foi marcado pelos anúncios dos ganhadores do prêmio Nobel, e uma boa surpresa foi ver uma mulher como vencedora na categoria de Economia: a professora e estudiosa Claudia Goldin. Claudia Goldin foi a primeira mulher a se tornar professora titular do instituto de Economia de Harvard, e seus trabalhos buscaram estudar a economia da dinâmica familiar e compreender a disparidade entre os homens e as mulheres no mercado de trabalho.
Foi justamente por suas contribuições para o entendimento de como a disparidade de gênero tem sua dinâmica e consolidação na história econômica que a professora foi agraciada com a premiação. Os estudos de Claudia Goldin consolidaram imaginários já conhecidos por aqueles que lutam pela igualdade entre gêneros, trazendo, porém, números e conclusões mais profundas do que as até então imaginadas.
Entre os principais resultados de Goldin, está o impacto dos direitos sexuais e reprodutivos no acesso feminino ao mercado de trabalho e à academia e, consequentemente, na disparidade salarial entre os gêneros.
Os trabalhos ganhadores do Nobel apontam que a diferença salarial entre homens e mulheres não é explicada por uma desproporção no acesso à educação e à qualificação em si, o que antes era imaginado pela maioria dos estudiosos, mas possui correlação direta com as escolhas reprodutivas e com o acesso a métodos que proporcionem o planejamento familiar entre meninas e mulheres.
Em outros termos, havia-se uma ideia geral de que a diferença salarial entre homens e mulheres seria explicada, principalmente, por uma histórica menor qualificação feminina, ante a falta de permissão e incentivo aos estudos de jovens e meninas. Assim, o que inicialmente se imaginava era que homens ganhavam mais do que mulheres porque mulheres, historicamente, teriam menos acesso aos estudos e, dessa forma, tenderiam a ocupar posições com menores salários.
No entanto, os estudos de Claudia Goldin trouxeram para a discussão outros aspectos que demonstram que essa não é bem a realidade. Além do inconteste machismo estrutural, que coloca mulheres em níveis profissionais inferiores a homens, apesar das mesmas habilidades, apenas por serem mulheres, a estudiosa mostrou ainda o impacto que o acesso a métodos contraceptivos e a ferramentas de planejamento familiar possuiu ao longo da história da inserção feminina no mercado de trabalho.
A autora destaca como fundamental para a jornada feminina no mercado de trabalho o acesso amplo ao anticoncepcional. Isso porque foi a partir desse momento que meninas e mulheres puderam ter o domínio sob a reprodução e ter gerência sobre o planejamento de uma família. Assim, a possibilidade de ter filhos e casar mais tarde permitiu que meninas e mulheres tivessem tempo para se dedicar aos estudos e à melhoria profissional, ocupando cargos com maiores salários.
O domínio em relação à maternidade possibilitou o direcionamento dos esforços para a melhoria na qualidade dos estudos e, consequentemente, o acesso a melhores oportunidades de emprego.
Mas não é somente isso. Outro ponto interessante da pesquisa foi a comprovação de que o nascimento do primeiro filho é um momento crucial para o aumento na disparidade salarial entre homens e mulheres. É nesse momento que muitas mulheres se veem obrigadas a diminuir suas cargas de trabalho ou a abdicar de posições que as impeçam de cuidar de seus bebês, e assumir o papel de cuidadoras, trabalho esse que não é remunerado e que demanda atenção e foco quase ininterruptos.
O papel do cuidador recai sobre o corpo feminino com impacto absolutamente maior do que sobre o masculino. Há agora um segundo trabalho, cujas cargas horárias e intensidade de atribuições são, por vezes, maiores do que as de um trabalho formal. Havendo um novo turno de trabalho, o caminho encontrado para não se levar à exaustão é a diminuição significativa da dedicação ao trabalho formal, o que, entre outros fatores, aumenta a disparidade econômica entre homens e mulheres.
Os dados coletados e interpretados pela ganhadora do Nobel deixam claras pautas muito discutidas no âmbito da defesa dos direitos sexuais e reprodutivos: o impacto desigual de uma gestação na vida e na carreira de mulheres e a necessidade de se oportunizar a escolha sobre a maternidade.
Não à toa, a autora destaca o papel do acesso aos anticoncepcionais e ao aborto seguro como essencial para a diminuição das desigualdades entre os gêneros. Em seu texto “The power of the pill: Oral contraceptives and women’s career and marriage decisions”, Goldin menciona que:
The pill directly lowered the costs of engaging in long-term career investments by giving women far greater certainty regarding the pregnancy consequences of sex.[1]
Conforme seus estudos apontaram, a parcela de mulheres na graduação aumentou 10% em 1970, ano em que se pode considerar difundido o acesso à pílula anticoncepcional após sua criação, para 36% em 1980.
Foi com a possibilidade de decidir sobre o momento em que querem ser mães que meninas e mulheres puderam adiar a gestação ou até mesmo não serem mães e focarem em suas trajetórias escolares, o que foi essencial para uma diminuição na desigualdade salarial entre gêneros.
Não somente isso, mas a autora ganhadora do prêmio Nobel também aponta especial relevância para o acesso ao aborto nos Estado Unidos, no célebre caso Roe v. Wade, como impulsionador das carreiras femininas e da busca das mulheres por um aperfeiçoamento em suas vidas acadêmicas.
O acesso ao aborto amplo e legal possibilita o planejamento econômico e de vida das mulheres, as quais se vêm com maiores chances e oportunidades de trabalhar fora de casa. Ou seja, a descriminalização do aborto tem consequências não só relativas à saúde, como a diminuição das taxas de mortalidade materna, ou relativas ao combate de uma política criminal racista, uma vez que mulheres negras são as mais criminalizadas pela interrupção da gestação, mas também tem efeitos diretos no aumento da especialização feminina e na redução da desigualdade salarial entre homens e mulheres.
Há de se ter em mente que os estudos da norte-americana por vezes podem carecer de recortes de raça e classe, além de, em alguns momentos, não mencionarem necessárias interseccionalidades. Mesmo assim, os estudos agraciados com o Nobel de economia caminham para uma só conclusão: há de se ter a possibilidade da escolha sobre a maternidade e acesso amplo a formas de planejamento familiar para combater a disparidade salarial de gênero, ante os impactos que a gestação tem na vida e na carreira das mulheres.
A escolha reprodutiva por meio do amplo acesso a métodos contraceptivos proporciona uma abertura de novas possibilidades para jovens e mulheres. O acesso ao aborto seguro possibilita a maternidade como escolha e não como imposição. A gerência sobre quando e se querem ser mães possibilita o planejamento de vida e de carreira e abre a possibilidade de se postergar o desejo da maternidade para aquelas que querem, e, para as que não querem, traz a segurança necessária para se perseguir os desejos profissionais.
O Nobel de Economia nos mostra exatamente isso: não há igualdade entre homens e mulheres sem a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos.
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Ana Beatriz Santiago de Souza é graduanda de Direito na Universidade de Brasília. Membra do Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos
Referências:
[1] GOLDIN, Claudia; LAWRENCE F. Katz. The power of the pill: Oral contraceptives and women’s career and marriage decisions. Journal of Political Economy, Chicago, v. 110, n. 4. pp.730-770, 2002. Disponível em: http://nrs.harvard.edu/urn-3:HUL.InstRepos:2624453. Acesso em 18 out 2023.
GUIDO, Gabriela. 5 descobertas que levaram Claudia Goldin a ganhar o Nobel de Economia. Forbes, 2023. Disponível em <https://forbes.com.br/forbes-mulher/2023/10/5-descobertas-que-levaram-claudia-goldin-a-ganhar-o-nobel-de-economia/>. Acesso em 17 out 2023
MILLER, Claire CAIN. Claudia Goldin’s Nobel-Winning Research Shows ‘Why Women Won’. The New York Times, 2023. Disponível em <https://www.nytimes.com/2023/10/11/upshot/claudia-goldin-nobel-prize.html>. Acesso em 19 out 2023