Análise sobre a interação e acesso de populações periféricas à justiça no Brasil

por Veredicto

Por Gustavo Henrique de Almeida Goulart*

A Constituição Federal de 1988¹ é clara no que se diz respeito aos direitos e deveres que garante a todos em território nacional. A conhecida Constituição Cidadã é, de fato, um grande marco na jurisdição brasileira e o maior alicerce da maioria das decisões judiciais tomadas atualmente. É, no entanto, importante levantar a consciência de que, infelizmente, o Brasil se encontra longe de alcançar a garantia de cidadania plena a todos.

De acordo com dados de pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)², em 2021 o Brasil atingiu recorde de pessoas abaixo da linha da pobreza. No ano, eram 62,5 milhões de brasileiros em situação de pobreza e 17,9 milhões em extrema pobreza. Conclui-se, portanto, que o Brasil possui ainda considerável fração da população em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Neste trabalho, serão analisadas as nuances específicas das relações jurídicas estabelecidas por tal parcela da sociedade e a Justiça.

Entre as diversas barreiras que indivíduos de classes mais baixas encontram no acesso à Justiça estão: a distância geográfica, a ignorância perante o sistema jurídico e/ou seus direitos, a incapacidade de arcar com despesas jurídicas ou a própria negligência da máquina pública. Todos esses fatores são empecilhos que, ao se somarem, alargam o vão que se cria no Brasil no acesso à Justiça³.

Entretanto, não é só no acesso a um tribunal, por exemplo, que a desigualdade judicial se manifesta no país. Em diversos casos, é com a figura da polícia militar que muitos jovens periféricos têm o primeiro contato com o aparato estatal, e essa – por muitas vezes – é catalisadora de uma visão negativa da capacidade geral do Estado de trazer qualidade de vida à população marginalizada. Não é novidade que a polícia brasileira tem má fama em seu tratamento a populações pobres e, geralmente, negras⁴.

O excelente texto: “Pele-Alvo: a cor da violência policial”, elaborado por Silvia Ramos e outros autores, traz uma ampla análise de diversos dados coletados em todo território nacional sobre a violência policial direcionada a grupos negros. No Estado do Rio de Janeiro, apesar de representar 51,7% do total, a população negra estampa 86% das mortes por policiais.

O modus operandi da polícia do Rio de Janeiro é o confronto fundamentado no racismo: o uso indiscriminado da força letal com o emprego de fuzis, helicópteros e veículos blindados por parte das forças policiais, em áreas densamente habitadas em sua maioria por pessoas negras – o território inimigo. Graças a essa lógica, em maio de 2021 assistimos a um dos episódios mais sangrentos da cidade do Rio de Janeiro: a maior chacina policial da história da cidade, com o registro de 27 civis mortos no Jacarezinho⁵.

 Essa interação com o Estado, inerentemente negativa, cria desconfiança por sua capacidade ou, até mesmo, intenção de auxiliar esses indivíduos fragilizados. Isso leva a uma menor adesão e ocupação dos marginalizados nas instituições públicas, incluindo o judiciário. Afinal, por que alguém recorreria de uma decisão se o próprio Estado, na figura da polícia, já se mostrou indiferente?

Em primeiro lugar, muitas vítimas têm medo de sofrer represálias. Em segundo, muitas imaginam que a polícia não irá produzir qualquer resultado; por alguma razão elas não confiam na instituição e imaginam que irão apenas perder seu tempo. Em terceiro, muitas vítimas não desejam o envolvimento da polícia em determinados casos. […] Por fim, o que ocorre é que muitas pessoas não sabem como proceder para registrar uma ocorrência, não têm recursos para se deslocar até uma delegacia ou, mesmo, não têm noção de que foram lesadas em algum direito⁶.

Assim como Rolim comenta brilhantemente, existem outros fatores além da violência policial que atuam na desigualdade judicial. Pessoas de baixa renda costumam viver em áreas mais remotas, de difícil acesso e/ou travessia, ou simplesmente não sabem ao que têm direito. É comum, infelizmente, que um cidadão que more em uma pequena cidade no interior não tenha nenhum tribunal a qual recorrer em um caso de crime trabalhista, por exemplo. Ou que um morador de uma comunidade em São Paulo não saiba que está sendo lesado ilegalmente por seu banco. 

Situações como essas criam empecilhos no acesso à justiça e acabam por minar a ideia de uma justiça igualitária e emancipatória, substituindo-a por um judiciário estático, elitista e segregador. É importante notar, é claro, que o país vem realizando esforços para diminuir as barreiras de seu rígido judiciário. As leis se modificaram, as ouvidorias se fortaleceram e novos tribunais foram abertos⁷.

Alexandre Zarias, doutor em sociologia pela USP, analisa em um de seus textos um denso estudo de dados do Censo em regiões da cidade de São Paulo, com objetivo de determinar como cada uma interage – de forma única – com a Justiça, em especial com o direito de família. Zarias chega à conclusão de que:

As características demográficas, sociais, econômicas, políticas e culturais das regiões de competência dos foros paulistanos determinam a forma pela qual a população residente nessas áreas estabelece contato com os tribunais. Nas regiões mais desenvolvidas do município há uma procura maior da Justiça para a resolução dos conflitos familiares⁸.

O autor, apesar de chegar à mesma conclusão: de um Brasil com justiça desigual, discorre sobre uma adaptação feita em tribunais de São Paulo para melhor atender a população periférica. É criada então a Lei 5.478/1968 que diz “respeito ao pedido de alimentos às pessoas com menos de 18 anos, cujos pais não oficializaram a união ou que, nos casos em que foi oficializada, a união não foi dissolvida judicialmente.”⁹ A lei estabelecia, então, um rito especial, não dependia de prévia distribuição e gozava da gratuidade processual, a fim de incentivar a participação daquela, antes isolada, parte da população paulista.

Ainda nessa visão emancipatória, o professor e ex-reitor da UnB, José Geraldo de Sousa Júnior, foi responsável por um dos mais relevantes projetos de pesquisa em direito no Brasil, o Direito Achado na Rua. Este é um projeto epistemológico que busca abrir as concepções do direito e seus impactos na sociedade. José Geraldo defende uma abordagem do direito como uma ferramenta para construir uma sociedade emancipatória e livre. Um direito que busque construir um novo modelo jurídico no Brasil, que enxergue as demandas populares e que esteja totalmente comprometido com a justiça social¹⁰.

Para Sousa Júnior e seu mentor, Roberto Lyra Filho, o direito – para ser considerado ferramenta emancipatória – deve ser tomado e apropriado pela sociedade em geral¹¹. O que se nota é que, na sociedade brasileira, o direito ainda é um fator que impõe desigualdades em seu gozo. O Direito Achado na Rua pode se mostrar um aliado vital na luta contra tal assimetria, e quem sabe, permita que aqueles que utilizam da Defensoria Pública, por exemplo, tenham as mesmas condições dos que pagam pelos melhores advogados.

É na defesa desta dignidade que a NAIR se apresenta e vem lutando, entre nós, pela redemocratização do país, pela expulsão dos abutres imperialistas, pela extinção da miséria, pelo estabelecimento duma sociedade que se livre de senhores carrancudos, feitores nacionais e estrangeiros, preconceitos, privilégios e discriminações¹².

Em notas finais, o Brasil é um país extremamente desigual. Suas disparidades sociais, econômicas, geográficas e políticas influenciam na forma como a população interage com a Justiça. A violência policial, a ignorância, a barreira financeira e a negligência estatal são apenas alguns dos fatores que dificultam o ingresso de populações marginalizadas no mundo jurídico.

Felizmente, avanços têm sido feitos. A lei de alimentos em São Paulo e o Direito Achado na Rua caminham juntos na luta por uma nação com um judiciário preocupado com a situação social de seu país e população. Um judiciário que não seja meramente um conjunto de normas positivadas, mas, como José Geraldo costuma dizer em suas aulas, um direito não que venha de cima para baixo, mas de baixo para cima.


* Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Projeto de Extensão Veredicto. E-mail: gustavo.goulart.unb@gmail.com


[1] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 07 jun. 2023.

[2] IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Em 2021, pobreza tem aumento recorde e atinge 62,5 milhões de pessoas, maior nível desde 2012. IBGE, 2022. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35687-em-2021-pobreza-tem-aumento-recorde-e-atinge-62-5-milhoes-de-pessoas-maior-nivel-desde-2012. Acesso em: 07 jun. 2023.

[3] NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Revista Cej, v. 1, n. 3, p. 61-69, 1997.

[4] DATAFOLHA. Metade dos brasileiros tem medo de sofrer violência policial. Datafolha, 2017. Disponível em: https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/07/1898059-metade-dos-brasileiros-tem-medo-de-sofrer-violencia-policial.shtml. Acesso em: 18 jun. 2023.

[5] RAMOS, Silvia et al. Pele-alvo: a cor da violência policial. Rio de Janeiro: CESeC, dezembro de 2021. 28 p.

[6] ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2006. 40-41 p.

[7] SILVA, Larissa Tenfen. Cidadania e acesso à justiça: a experiência florianopolitana do juizado especial cível itinerante. Seqüência: estudos jurídicos e políticos, v. 25, n. 48, p. 78-79, 2004.

[8] ZARIAS, Alexandre. A família do direito e a família no direito. São Paulo: RBCS Vol. 25 n° 74, 2010. 71-72 p.

[9] Idem.

[10] SOUSA JÚNIOR, J. G. O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos. Rio de Janeiro: Revista Direito Práx, 2019. 2796 – 2803 p.

[11] Idem.

[12] LYRA FILHO, Roberto. Pesquisa em (Que) Direito. Brasília: Edições Nair Ltda, 1984. 38 p.


Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 07 jun. 2023.

DATAFOLHA. Metade dos brasileiros tem medo de sofrer violência policial. Datafolha, 2017.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Em 2021, pobreza tem aumento recorde e atinge 62,5 milhões de pessoas, maior nível desde 2012. IBGE, 2022. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35687-em-2021-pobreza-tem-aumento-recorde-e-atinge-62-5-milhoes-de-pessoas-maior-nivel-desde-2012. Acesso em: 07 jun. 2023.

LYRA FILHO, Roberto. Pesquisa em (Que) Direito. Brasília: Edições Nair Ltda, 1984. 38 p.

NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Revista Cej, v. 1, n. 3, p. 61-69, 1997.

RAMOS, Silvia et al. Pele-alvo: a cor da violência policial. Rio de Janeiro: CESeC, dezembro de 2021.

ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2006.

SILVA, Larissa Tenfen. Cidadania e acesso à justiça: a experiência florianopolitana do juizado especial cível itinerante. Seqüência: estudos jurídicos e políticos, v. 25, n. 48, p. 73-90, 2004.

SOUSA JÚNIOR, J. G. O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos. Rio de Janeiro: Revista Direito Práx, 2019. 2796 – 2803 p.

ZARIAS, Alexandre. A família do direito e a família no direito. São Paulo: RBCS Vol. 25 n° 74, 2010. 71-72 p.

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